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Novos Brinquedos Para Crianças Mortas

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Academic year: 2020

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NOVOS BRINQUEDOS

PARA CRIANÇAS

MORTAS*

THIAGO DE BARROS ESPÍNDOLA AMARAL**, ANTONIO MASPOLI DE ARAUJO GOMES***

O

etnógrafo pode ser surpreendido pelo campo de estudo e ter seu objetivo de pes-quisa alterado. Em princípio, o objetivo de pespes-quisa de campo era de assistir uma das missas realizadas durante o dia de Finados, em 2015, no Cemitério Parque, na cidade de Limeira no interior de São Paulo.

Limeira é uma cidade do interior paulista com cerca de 260 mil habitantes loca-lizada próxima a cidade de Piracicaba. Fundada no século XIX, possuiu grande identidade católica até a segunda metade do século XX, devido a ser tradicionalmente povoada por imi-grantes italianos. A exceção era de uma presença pequena de imiimi-grantes alemães luteranos que moravam na zona rural (BRUSCH 1967, p. 42). Somente na década de 1960, com a vinda maciça de imigrantes principalmente do estado de Minas Gerais, para suprir a de-manda de mão de obra da crescente citricultura e das industrias. Essa nova população povoa inicialmente a região norte cidade e o protestantismo e movimentos evangélicos finalmente

Resumo: este trabalho descreve o resultado de uma pesquisa de campo e de observação etno-gráfica, realizada no Cemitério Parque, no dia 02 de novembro de 2015, em Limeira/SP. O pesquisador foi até o local observar os eventos da religiosidade produzida no evento e a relação dos parentes com seus mortos e a função da religião neste dia.

Palavras-chave: Finados. Crianças Mortas. Brinquedos. Ritual.

* Recebido em: 25.02.2016. Aprovado em: 27.03.2016.

** Mestre e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (PPGA/UFPR). Professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG-Uruaçu). Bolsista Capes. E-mail: spiess. spiess@gmail.com.

*** Mestre e doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR/UFJF). Professor no Colégio Militar de Juiz de Fora (CMJF). Bolsista Capes. E-mail: mmfilo09@gmail.com

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conseguem a inserção no contexto urbano a princípio em regiões periféricas até chegar a re-gião central (BRUSCH, 1967, p. 65).

O dia de finados, ou fieis defuntos é uma tradição da Igreja Católica Apostólica Romana, que remonta o século X (CASCUDO, 1999 p. 397). Trata-se de tradição em que os fieis reservam um dia para rezar por seus mortos. Segundo dados noticiados na imprensa local, a data atraiu mais de 25 mil pessoas segundo cálculos da polícia militar. Com o passar dos anos, este evento predominantemente católico assumiu um caráter popular que abrange as mais diferentes vertentes religiosas, e sobre uma destas vertentes que se debruça essa ob-servação.

A MORTE COMO A MÃE DO RITUAL DAS “MÃES”

A morte é o fator causador de muitos aspectos da religião, como registra Durkheim, em “As formas Elementares da Vida Religiosa”. Onde a religião oficial não fornece respos-tas, a magia e a feitiçaria tomam conta como fornecedora de respostas para aplacar o medo (LEVI-STRAUSS, 1970, p. 201). Nesse sentido, Malinowski (1984, p. 11) afirma que “as fases fisiológicas da vida [...] acima de tudo suas crises constituem núcleo de inúmeros ritos e crenças”.

Mesmo com o crescimento da população evangélica e não-católicos, conforme Censo de 2000, observamos um aumento na participação de eventos culturalmente originá-rios da religiosidade da Igreja Católica Apostólica Romana.

Após a tomada de notas da missa, com um discurso direcionado a questões trans-cendentais, o pesquisador percebeu um grupo marginal ao ofício católico realizando um ri-tual diferente. Após um tempo, o pesquisador saiu da missa e observou evangélicos fazendo apresentações artísticas para anunciar a morte dos vivos que ainda ali estão. Um terceiro grupo à parte da cerimônia oficial tornou-se o objeto da atenção após aproximação, sendo que seus participantes, mulheres, se auto identificam como “mães que ajudam mãezinhas.”

Essas mulheres, um grupo de três idosas, se identificam como católicas, cujo filhos moram no cemitério. Isto acontece desde pelo menos vinte anos. Devido ao pertencimento destas mulheres à classe social baixa, seus filhos falecidos, em sua maioria, estão no ossuário do cemitério, que nada mais é do que uma vala comum verticalizada com a identificação dos corpos ali depositados de maneira inexata.

UM CEMITÉRIO QUE TEM ESPAÇO PARA AS CRIANÇAS (MORTAS) BRINCAREM Começa-se a observação no Cemitério Parque, localizado na região oeste da didade de Limeira, SP. Esta região começou a ser povoada com a chegada dos imigrantes, vindos principalmente do estado de Minas Gerais. Mantido pelo poder municipal, ele apresenta duas categorias de jazigos: uma à população de baixa renda e outra à classe-média baixa. Conforme averiguado junto à administração do cemitério, os mais pobres são enterrados em jazigos temporários, e após o período de três anos tem seus restos mortais exumados e depo-sitados no ossuário vertical em galerias comuns. As pessoas de melhores condições financeiras recorrem à compra de jazigos de gaveta.

A arquitetura do Cemitério segue o modelo popularmente conhecido como o nor-te-americano, onde os corpos são sepultados em uma área gramada e bem ajardinada e os

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jazigos são identificados com a colocação de uma placa de alumínio fundido com os dados sobre o nascimento, morte e nome do sepultado.

Não são permitidas a construção de túmulos com chamarizes arquitetônicos, como estátuas e símbolos religiosos. Isso propicia ao visitante uma visão vasta, uma perspectiva fluí-da e de tranquilifluí-dade. Oficialmente é tolerado apenas o deposito de flores. As velas só podem ser queimadas no “velário” junto ao cruzeiro colocado no centro do cemitério. Diante deste cenário não foi difícil perceber, destoando nesse campo bucólico, alguns brinquedos colori-dos em meio a movimentação intensa de pessoas, algumas das quais carregavam brinquecolori-dos em embrulhos para presente.

AS MÃES ENTREGAM OS BRINQUEDOS ADQUIRIDOS PELAS MÃEZINHAS Neste funério ritual observam-se dois status com papeis bem definidos: as mães e as mãezinhas. As “mães” são mulheres na faixa etária de 60 anos e que perderam seus filhos pelo menos há 15 anos e ficam, neste dia, à espera de jovens enlutadas para auxiliarem na superação da morte de seus filhos. As “mãezinhas” são mulheres que perderam seus filhos recentemente ou há alguns anos, tendo como principal diferença a faixa etária por volta dos 30-40 anos. Percebeu-se que as mães estavam ansiosas. Sua preocupação maior era auxiliar o que elas chamam de “mãezinhas” que estão visitando o lugar de sepulcro de seus filhos. Sobre isso a “mãe” informou que poucas conseguem vir mais de duas vezes, como se percebe em uma das falas: “Normalmente pegam (sic) barriga e esquecem dos que ficam aqui”.

Pelo que pode ser observado, essas “mãezinhas” são mulheres ainda em idade repro-dutiva, e de melhor condição familiar, evidenciado na posse e ajardinamento do túmulo dos seus filhos. Contudo, não possuem prestigio social, pois seus filhos não foram sepultados no Cemitério da Saudades, o primeiro na cidade, destinado para seus habitantes tradicionais ou para pessoas com mais poder aquisitivo.

Um primeiro momento foi observado: uma dessas “mãezinhas”, aproximou-se do grupo das “mães” com uma sacola de uma loja conhecida de brinquedos e entregou esse pa-cote. A líder do grupo de “mães” toma a frente e agradece pelo brinquedo, como se fosse um presente dado a ela.

A este ato segue-se um ritual. Inicialmente a “mãe” garante a “mãezinha” que so-nhou com o filho dela e que esse era o brinquedo que ele queria brincar no céu com os anjinhos. Ao mesmo tempo, garante que no cemitério há espaço para brincar também. Em um esforço do que pode ser classificado como Magia de Continuidade (FRAZER, 1982, p. 43), ali mesmo esse brinquedo ainda embrulhado para presente é desembrulhado e colocado completamente fora da embalagem sobre o túmulo da criança. Um dos túmulos, junto ao qual se observou este doloroso ritual, era de uma menina que morreu aos dois anos de idade. Na placa do túmulo havia apenas seu nome. Logo, infere-se que não havia nenhum outro parente ou conhecido ali sepultado, ou que pelo menos seu memorial não foi confeccionado. Embora houvesse morrido aos dois anos, já passavam nove anos de sua morte. Sua mãe havia tido outros filhos, mas naquela semana havia sonhado com sua filha falecida, e diariamente, como nos informou. O relato da “mãezinha”, a respeito dos sonhos, demonstrou que, mesmo com o passar dos anos, sua filhinha morta ainda conservava, em sua memória, os traços de físicos de uma criança. O que causou-nos estranhamento foi o fato de que, ao longo das narrativas sobre o diálogo entre mãe e filha, foi um descompasso percebido: Os diálogos

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que a “mãezinha” e sua filha falecida estabeleciam eram de mulheres, como se fossem grandes amigas, o que trouxe profunda perturbação àquela “mãezinha”. Na conversa, percebemos que o conceito de sonhos se aproxima daquele em “Antropologia Estrutural”, um estágio diferenciado da vivência, mais próximo da morte (LEVI-STRAUSS, 1970, p. 218). Assim, a filha no sonho “dizia que a mãe havia esquecido dela, que um tatu ia comer os “ossinhos” dela se nada fosse feito”. Desesperada, essa mãe dirigiu-se, uma semana antes, ao cemitério e encontrou ali o grupo de “mães” que se ofereceram para ajudá-la.

No ritual observado, o presente oferecido à criança foi um boneco da “Galinha Pintadinha”, oriundo de um projeto lançado em 2006, portanto, após a morte da criança. Interessante foi notar a crença de que a criança morta se desenvolveu, e que acompanha o mundo dos vivos.

Depois disto, rezou-se um Ave-Maria e o brinquedo que até o momento estava na mão de uma das “mães” é entregue para a “mãezinha” que ouve as palavras: “Minha filha agora ocê (sic) pode presentear sua filha para que ela possa brincar com os anjinhos e aqui também”.

O brinquedo foi colocado ali, bem como nos outros três túmulos, junto aos quais esse ritual foi observado, rente ao quadrante esquerdo superior, com a frente do brinquedo voltada para a primeira letra do nome. Segundo a “mãe”, ele tem que ser colocado assim para ficar bonito. Percebeu-se, nesta ocasião, a relação da religiosidade com a estética na contem-poraneidade, na qual o divino é sujeitado ao belo (MOREIRA, 2014, p. 307). Perguntou-se a uma das “mães” pelo motivo de rezar com o brinquedo, ao que a resposta foi para que o brinquedo não seja roubado. A isto acrescenta:

Douto (sic) – digo que não sou ela continua - olha aí em volta, nenhum brinquedo colo-cado ano passado foi mexido. Aqui em volta mora um tanto de menino (sic) e ninguém pega. Por que? Respeita a reza. Se tolir (sic) morre. E se for o adulto, morre o filho. Nem o povo da dengue (agentes de saúde) mexe porque respeita a reza.

Perguntado, então, se ela sabia qual a religião da “mãezinha” que nesse momento sai em prantos, afirma “ela não é católica nem espírita não. (sic). Não tem religião definida, o importante é ter fé, é buscar... – pensa um pouco mais e diz - mas ela é evangélica, não deu pra ver pelas roupas?”

BRINQUEDOS: DO LÚDICO AO PROTETOR

Assim o efeito do ritual assumiria, aqui, um papel de conferir segurança evidencia-da com a preocupação de que os corpos de seus filhos sejam usados em rituais de magia. Isto está melhor descrito no trabalho “Dedo de Anjo e Osso de Defunto: Os restos Mortais na Feitiçaria Afro-Luso Brasileira” (MOTT, 1996, p. 115). A eficácia ritual é múltipla, medida que traz aos pais a certeza de que como o brinquedo é guardado também são guardados os restos mortais das crianças. A “mãe” mais uma vez adverte: “com corpo de criancinha pode fazer de tudo. Usar pro (sic) bem ou pro mal”. Nas palavras de Mott (2004, p. 34):

não só as tripas e mãozinhas de crianças eram consideradas matéria-prima valiosa na elaboração de bruxarias: na Fazenda de Tabacos, na freguesia de São Felipe, no Recôncavo Baiano, a preta Tereza, “tida, havida, reputada e temida por feiticeira”, foi acusada de

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ter provocado, através de suas maldades, a morte de um crioulinho de quinze dias – e como prova de sua maldade, atestaram os denunciantes terem encontrado debaixo da cama da feiticeira o umbigo seco e o cinteiro do infeliz “anjinho”.

Conversando com a “mãezinha”, percebemos que parte desse ritual é também para proteger o corpo de seus filhos da violação do túmulo e para amenizar o próprio pavor de saber que parte de seus filhos podem ser usados em rituais de contra magia. Pelo que foi ob-servado, o ritual atinge eficácia, pois pelo menos dois túmulos sem brinquedos com crianças sepultadas apresentavam indícios de violação, enquanto que os que possuíam brinquedos mostravam-se inviolados.

CONCLUSÃO

Neste artigo, apresentamos resultado de observação realizada em cemitério, por ocasião do Dia de Finados. Descrevemos o surgimento de uma nova crença que demonstra o espírito secularizado brasileiro. A morte é percebida de maneira secular, translúcida e com solu-ções mágicas e imediatas para aplacar o sofrimento inerente da perda causada por ela. A eficácia do ritual está no seu poder simbólico e nos efeitos que ele alega produzir, não necessitando de grandes garantias ou provas de sua eficácia, lembrando que “o vocábulo importa menos que a estrutura. Quer seja o mito recriado pelo sujeito, quer seja tomado de empréstimo [...] ele só absorve o material de imagens que ele emprega” (STRAUSS, 1970 p. 209).

DIED CHILDREN STILL PLAYNG WITH YOURS NEWS TOYS

Abstract: this paper describes the results of a field survey and ethnographic observation, held in

Ce-mitério Parque on November 2 of 2015, in Limeira/SP. The researcher went to the site to observe the events of religiosity produced the event and the relationship with their dead relatives and the role of religion on this day.

Keywords: All Souls. Death of Children. Toys. Ritual. Referências

BRUSCH Reinaldo Kuntz. História de Limeira. Publicada particularmente. Limeira, 1967. CASCUDO Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro, 1999. FRAZER, James George. O Ramo de ouro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

LEVI-STRAUSS Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. MALINOWSKI Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Rio de Janeiro: Edições 70, 1984. MOREIRA, Alberto da Silva. A religião sob o domínio da estética. Horizonte, Belo Hori-zonte, v. 13, n. 37, p. 379-405, 2015.

MOREIRA, Alberto da Silva; LEMOS, Carolina T.; QUADROS, Eduardo de G. (Orgs.).

A religião entre o espetáculo e a intimidade. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2014.

MOTT, Luiz. Dedo de Anjo e Osso de Defunto: Os restos Mortais na Feitiçaria Afro-Luso Brasileira. Revista USP Setembro-Novembro 1996, São Paulo, 1996.

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