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E as Crianças Podem Falar?

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ARTIGOS

E AS CRIANÇAS

PODEM FALAR?

*

KARLA TEIXEIRA DIAS VON HAUER**

Resumo: as crianças sempre foram vistas e ainda são, como seres incompletos, em formação,

o que acabou silenciando a “voz” das crianças. Devido a uma visão desenvolvimentista a criança é vista como o futuro da nação e não o presente, o que mais uma vez não as deixa falar. Contudo, nas últimas décadas essa visão tem começado a mudar e as crianças têm encontrado mais visibilidade e “começado a falar”, ou a serem ouvidas. Entretanto, a representatividade disso ainda é muito pequena, e a Antropologia pode ajudar a construir esse espaço onde a criança consiga sair de sua subalternização e se representar no discurso.

Palavras-chave: Crianças. Subalternidade. Representatividade. Voz.

N

as últimas décadas houve um enorme aumento da visibilidade do “ser criança”, sobre a voz da criança na sociedade e conseqüentemente nas pesquisas de cam-po dentro das Ciências Sociais (CALAF, 2007; GOULART, FINCO, 2010; PROUT, 2010).

Segundo Calaf (2007), em 1973, Charlote Hardman é a primeira a perguntar de forma bastante direta Can there be an Anthropology of children? Frase que intitula seu artigo, no qual sugere que a antropologia deixe de ver as crianças como receptáculos de ensinamentos e devir de adultos.

Na tentativa de provocar uma discussão similar e propor desde o título um ques-tionamento sobre a subalternidade da “voz” da criança dentro da sociedade e das Ciências

* Recebido em: 11.08.2012. Aprovado em: 21.08.2012.

** Mestranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás. Especialista em Psicologia Jurídica pelo IPES/ Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e em Psicodrama Psicoterapêutico pela SOGEP/PUC Goiás. Graduada em Psicologia pela PUC Goiás. Bacharel em Teologia pelo SEID-GO. Psicóloga. E-mail: karlaencontro@ hotmail.com.

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Sociais; este artigo faz uma paráfrase do título da obra de Spivak (2003) “Can Puede hablar el

subalterno?”, onde a autora discute sobre a representatividade que se faz em relação às

“mino-rias”, como estas são “subalternas” e que de fato suas vozes são dificilmente ouvidas.

Para uma abordagem apropriada do assunto, proponho que se entenda melhor so-bre “socialização” da criança e para tal façanha é importante uma perspectiva integrativa das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia e história). Para Belloni (2009) falar de infância, do ponto de vista sociológico/macrossocial, é utilizar a categoria geração para entender os fenômenos sociais. De modo, que é preciso estabelecer relações entre estruturas sociais e essa categoria, no sentido de compreender quais as determinações sociais e qual o grau de autonomia no processo de socialização dessa geração.

Este artigo pretende focar a criança brasileira, porém se esbarra na limitação que a maioria dos estudos se referem às pesquisas com crianças dos países ocidentais desenvolvidos (BELLONI, 2009). Aqui já começa a ser mostrado o quanto da voz da criança “subalterna” dos países “subalternos” emergentes são limitadas em termos do discurso de representação.

Assim, este estudo prossegue tendo em vista que no processo de socialização da criança existem muitas interferências das diversidades sociais, regionais e até nacionais. De modo que não existe uma infância universal, uniforme; embora haja certa identificação pelas questões biológicas, esta não compensa as diferenças históricas, sociológicas e antropológicas.

Segato (1998) alerta para essa tendência de homogeneizar as culturas, que emerge junto com a globalização; para não perdermos a dimensão da diferença radical entre as cultu-ras e a pluralidade dos mundos onde essas diferenças cobram seu sentido.

Dessa forma, é importante abordar o pensamento de Bhabha (2003), o qual nos desperta para a tendência contemporânea de uma concepção unidimensional da cultura, que ao tentar uma coesão social provoca riscos de estereotipias e de preconceitos. Contrariando essa essencialização, é proposto uma leitura da nação a partir de suas margens (minorias, conflitos sociais, etc.).

Deste modo, este artigo tem a mesma proposta de evocar ou provocar a voz das crianças, as quais por muito tempo tem sido minoria enquanto “vozes” sociais; pois são “ob-jetos” de pesquisa, ao invés de “sujeitos” ativos/agentes.

Segato (1998) destaca que a globalização, por um lado, possui dificuldades, justa-mente por trazer essa tendência à universalização; mas por outro lado, ela acaba por ajudar a afirmar os direitos das minorias num contexto de representação ligada ao discurso europeu.

Zizek (1998) vai além e nos fala da tentativa de universalização que tem ocorrido na sociedade moderna, mas para esse autor a noção ideológica universal é hegemonizada porque carrega algum conteúdo particular, o qual é responsável pela eficiência dessa universalização. Podemos citar aqui o exemplo da “erradicação do trabalho infantil” que, segundo Belloni (2009), era um valor dos países ocidentais ricos, fundamentada na ideia da universalidade dos direitos humanos e da visão de que as crianças são um ser em formação. Esta autora até levanta um questionamento do que seria mais legítimo, se a luta pelos valores universais (er-radicação do trabalho infantil) ou pelos valores locais onde famílias dependem seu sustento e sobrevivência desse trabalho.

Zizek (1998) fala que o multiculturalista não é um racista direto, pois não chega a opor ao outro seus valores particulares de sua cultura, mas acaba por manter a posição vazia da universalidade. Quando esse autor fala de vazio, se refere à falsidade da neutralidade no discurso universalista e a falta de raízes que é provocada pela própria tentativa de

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universali-zar. Desse modo, o multiculturalismo traz também estereótipos e muitas vezes dificuldades para as minorias que já estão subalternizadas em sua própria regionalidade e acabam sendo universalmente subalternizadas.

Essa universalização acaba favorecendo a ideologia hegemônica, a qual nem sempre é real para as minorias. Spivak (2003) debate sobre a representatividade da minoria dentro desse social hegemônico, pois para ela a representação do subalterno está atravessada pela hierarquia opressora dominante. Isso se dá de tal forma que o discurso fica enraizado no pensamento dos “mais fracos”. De modo que, sempre fica a dúvida se o subalterno de fato se representa, ou se quando este fala, já vem carregado do discurso hegemônico.

Partindo desse pressuposto, surgem mais questionamentos dentro da temática aqui proposta: Como se pode dar voz às crianças no contexto brasileiro? Mas quanto das “vozes delas” é verdadeiramente delas e não desse social que já as engloba desde o nascimento? Como dar “voz” à criança sem subalternizá-la?

Abramowicz (2011) nos diz que no geral são os adultos que falam das/sobre as crianças, mas quando a criança “fala” se dá uma inversão hierárquica discursiva que faz fa-lar todas as falas que não são levadas em consideração. Dessa forma se dá uma inversão no processo de subalternização. Portanto, para essa autora pesquisas que dão voz à criança se inscrevem em uma micropolítica.

De acordo com Nascimento (2011) é um paradoxo ver as crianças como “cidadãos do futuro”, enquanto estas são afastadas dos espaços públicos no presente. Cita o exemplo da instituição escola onde há o predomínio da voz do adulto, o que contraria o princípio de que crianças e adultos teriam direito de serem ouvidos individual e coletivamente.

A HEGEMONIA SOBRE AS CRIANÇAS AO LONGO DA HISTÓRIA

Segundo Goulart e Finco (2010) o conceito de infância não foi muito discutido dentro da sociologia, embora se perceba a infância como uma transição da natureza à cultura; e o conceito de socialização acabou deixando a criança como passiva aos elementos da cul-tura, e focando na criança como ser social apenas quando esta deixava de ser “natural”. Essas autoras mostram que é preciso pensar a infância dentro do mundo contemporâneo com uma concepção anti-essencialista, para que assim não abafemos a “voz” das crianças e nem tiremos a autonomia delas, de modo a vê-las como protagonistas de suas vivências sociais.

Segundo Calaf (2007) as primeiras afirmações sociológicas no que se refere às crian-ças podem ser vista em Durkheim com a preocupação deste autor com a socialização, que seria o processo de assimilação dos indivíduos aos grupos sociais. Segundo Calaf (2007) as crianças seriam focadas em seus desejos e vontades, mas o imperativo social disciplinar viria transformá-las em seres sociais.

Já na Antropologia a singularidade acadêmica da infância e da adolescência começa a se delinear na Escola de Cultura e Personalidade, com Margareth Mead (1920-1930), a qual tenta entender o processo de socialização e aqui as crianças e adolescentes são vistos como construtores de sentidos e subjetividades (CALAF, 2007; COHN, 2009).

Mas de acordo com Cohn (2009) a possibilidade de estudar a criança, como sujeito social, se abrangeu desde 1960 quando houve mudanças em alguns conceitos fundamentais da antropologia, como: cultura (passa a ser vista como algo além de crenças, costumes e va-lores, mas como sistema simbólico acionado pelos atores sociais); sociedade (não mais uma

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totalidade a ser reproduzida, passa a ser um conjunto estruturado em constante produção das relações e interações que a formam); entre outros. Ela menciona ainda alguns trabalhos pioneiros no Brasil que ajudaram a perceber a criança como atores sociais e não apenas re-ceptáculos, os quais foram: Schaden (1969-1974) que trabalhou com crianças Guarani e Fernandes (1961), o qual realizou uma pesquisa sobre a socialização entre os Tupinambás.

Silva e Nunes (2002) afirmam que de modo explícito somente em 1973 surge a proposta inicial de uma antropologia da criança, com o artigo Can there be na Anthropology

of Children, de Charlotte Hardman, onde a autora destaca a necessidade de se ultrapassar a

visão de que criança é receptáculo de ensinamentos de adultos; e que as crianças são um grupo social por si só e deve ser estudado especificamente.

A partir da década de 1980 que se estabelecem os primeiros fóruns de discussão da infância no âmbito das ciências sociais, e as crianças começam a ser vista nas práticas sociais como um ser de discursos e, portanto construtores de visões de mundo (CALAF, 2007). Somente no início dessa década que ocorrem as primeiras reuniões científicas interdiscipli-nares e internacionais, com o objetivo de discutir a infância a partir do campo das Ciências Sociais (SILVA; NUNES, 2002). Para essas autoras, esse período foi marcado pela militância de movimentos políticos e sociais e por criações de muitas ONGs voltadas para a proteção da infância. Seria nos anos 90 que a antropologia da criança ganharia ebulição na Inglaterra, Noruega e Dinamarca.

De 1987 à 1990, em dezesseis países1 do hemisfério Norte foram desenvolvidas

pquisas tendo a criança como um “fenômeno social”, os quais resultaram em publicações e em es-pecial na revista Eurosocial. Essas pesquisas foram lideradas pelo sociólogo dinamarquês Qvor-trup e reconheceram as crianças a partir da ideia de um grupo social (NASCIMENTO, 2011). Em 1990, ocorreu a primeira Cúpula Mundial pelas Crianças, das Nações Unidas, a qual definiu objetivos para a melhor qualidade de vida das crianças no mundo em desen-volvimento. E a UNICEF relata que aproximadamente 2,5 milhões de crianças deixaram de morrer em 1996 em relação a 1990; e a taxa de desnutrição caiu a ponto de aproximadamente 500 mil crianças deixarem de ser incapacitadas, cegas, aleijadas ou nascer com retardo mental (UNICEF apud CORSARO, 2011, p.279).

Corsaro (2011) nos fala de dois autores que em suas pesquisas realmente deram voz às crianças; que seria Hecht (1998) que em sua pesquisa com meninos de rua no Brasil, utilizou se de crianças como entrevistadoras e estas fizeram perguntas que não haviam sido imaginadas pelo pesquisador, como também receberam respostas que ele como adulto não iria receber. Essas crianças tinham conhecimento da vida de rua, o qual ele não possuía. Entre outros trabalhos está o de Ferguson (2000) que se utilizou de uma criança de 12 anos como assistente de pesquisa, pois essa criança conhecia melhor sua cultura e seu grupo de pares e pode ajudar grandemente na preparação das entrevistas e na compreensão do mundo dos meninos inacessíveis à pesquisadora.

Em 2001 foram publicados as traduções dos trabalhos de Sirota e Montandon, que apresentava o trabalho de campo de sociólogos de língua francesa e inglesa respectivamente (NASCIMENTO, 2011). Em 2002 dois jovens “falaram” em uma sessão especial sobre crian-ças nas Nações Unidas, e um pequeno trecho nos mostra que as criancrian-ças conseguem falar, portanto devem falar:

Nós não somos a fonte dos problemas, somos os recursos necessários para resolvê-los. Nós não somos despesas, somos investimentos. Nós não somos apenas pessoas jovens; somos

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pessoas e cidadãos deste mundo. [...] Vocês nos chamam de futuro, mas nós somos também o presente (UNICEF apud CORSARO, 2011, p.280).

Em 2003 Quinteiro apresenta seu texto sobre a emergência da sociologia da in-fância no Brasil na 26ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), que ocorreu em Poço de Caldas, Minas Gerais (NASCIMENTO, 2011).

Outras formas de conceber o estudo sobre a criança passam a ser propostos, e um deles é o de Milstein (2008), que mostra o valor da participação das crianças como sujeito em sua pesquisa, e como essa participação lhe permitiu preencher os espaços vazios nos relatos dos adultos. Possibilitando perceber os usos simbólicos da sociedade na visão das crianças e dos adultos, pois não só os adultos, mas também as crianças são membros da sociedade e contam com um manejo particular da cultura.

Porém, no âmbito da Antropologia, como um todo, as crianças tendiam e ainda tendem a aparecer como figurantes e não como protagonistas (CALAF, 2007).

Na etnologia brasileira, apesar do esforço de alguns antropólogos, ainda não se consolidou um espaço legitimado de reflexões. Mas nos últimos cinco anos, tem havido fre-qüentes reflexões, discussões mais sistematizadas e o esforço parece ajudar por consolidar as contribuições da etnologia brasileira para uma Antropologia feita com crianças (NUNES, 2002). Esta autora diz que não identificou se é falta de interesse pelo tema que provocou a falta de pesquisa etnográfica focando as crianças, ou o contrário. No entanto, ela afirma que um estudo de uma sociedade sem abordar as crianças dessa, é um estudo incompleto; e ainda mais grave, pode perpetuar opiniões inconseqüentes sobre a infância nesses grupos.

Essa autora faz uma releitura de trabalhos importantes da Antropologia realizados em sociedades indígenas brasileiras e constata que nestes continham informações sobre as crianças da sociedade estudada, variando de superficial a mais perspicaz. No entanto, a maio-ria refere-se à cmaio-riança em capítulos que fala sobre organização do grupo doméstico, focando as fases do ciclo de vida.

Esse breve histórico nos possibilita perceber que a ideologia dominante de que a criança é um ser em formação, portanto um ser passivo, um receptáculo; só começa a se modificar quando há uma quebra da hegemonia de alguns conceitos dentro da antropologia, também ao longo da história dentro da própria sociedade e nas academias.

A REPRESENTATIVIDADE DAS CRIANÇAS

Lee (2010) fala que na perspectiva de um Estado desenvolvimentista o que importa em relação à criança é um crescimento apropriado em relação a um futuro produtivo. Essa percepção biopolítica da criança se encontrou nos séculos XIX e XX com as emergentes ci-ências sociais e humanas, as quais ao invés de investigar como melhor se comunicar com as crianças, através da psicologia do desenvolvimento e da socialização, focou as crianças como seres vulneráveis que precisavam ser orientadas, moldadas rumo à fase adulta, caracterizando um processo de “vir a ser humano” e não de “ser humano”.

E como ser incompleto, com mentes incompletas que não são capazes de falar por si próprias, portanto as crianças não teriam direito ao discurso. O que tornou os adultos media-dores das crianças e provocou que as crianças fossem vistas, porém não ouvidas. Mas para essa autora tem ficado claro na atualidade que criança, adulto e Estado, têm interesses diferentes.

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Terrin (2004, p.373) consegue explicar bem esse momento:

O verdadeiro problema não consiste mais num simples pensar diversamente, mas numa crise de todo o mundo representado e representável. [...] é a crise do pensamento objetivo, definitivo, estatutário, monopolista, onde, antes de tudo vê-se caírem todos os ídolos do moderno e se pulverizam os edifícios que antes se julgava indestrutíveis.

Segundo Baumam (2005) na sociedade contemporânea caracterizada pela vida lí-quida não há atores e a suposição do direito de escolher torna essa ficção na realidade do mundo vivido num fato social. Para este autor o mundo e todos seus fragmentos são meros objetos de consumo que vão perdendo sua utilidade. Em uma sociedade onde nem o adulto é ator, como fica a criança?

Belloni (2009) afirma que o social impõe sua realidade, mas a criança ativamente faz dele seu campo de ação e representação. E do mesmo modo que, varia o conceito de in-fância acontece com a ideia de ela ser fruto das representações da sociedade.

Nascimento (2011), por outro lado, nos fala que as crianças não são reconhecidas em seus direitos e não têm voz, mas são sempre “representadas” pelos adultos. Essa questão da representativi-dade nos revela a desigualrepresentativi-dade na distribuição de poder, recursos e direitos entre adultos e crianças.

Prout (2010) afirma que tanto na representação cultural, como na política o dis-curso público sobre a infância alterna entre estereótipos: anjinhos/diabinhos, criminosos/ vítimas. Para esse autor por algum tempo o discurso sobre a criança variou entre elas estarem em perigo e/ou serem perigosas. E no meio disso as crianças continuam lutando contra esses estereótipos, para obterem sua própria representação social.

CONSIDERAÇÕES

Percebemos que ao longo da história o discurso hegemônico é que a criança é um ser em formação, portanto incompleto. Deste modo, elas não puderam se representar e pre-cisaram do adulto exercer tal tarefa. Contudo, em um contexto de mudanças as crianças conseguem se representar e conseguem falar do mundo social que a engloba. Precisamos de pesquisas com esse intuito.

A pesquisa2 que estou desenvolvendo se dá no Aterro Sanitário de Aparecida de

Goiânia e pretende dar “voz” a essas crianças subalternizadas por sua condição de criança, pobre, vivendo à margem, no “lixão”.

No dia das crianças de 2010, estive visitando o Aterro Sanitário de Aparecida de Goiânia, onde foi feito um trabalho assistencialista e ali estando, me aproximei das crianças, as quais, de muito fácil acesso, começaram a falar sobre suas famílias, suas vidas escolares (a maioria não estuda, mesmo as crianças maiores de 10 anos) e sobre os grupos religiosos que vão lá toda semana. Quando foi perguntado sobre a alimentação, uma delas respondeu: “Não tia... aqui tem o dia do sopão que vem os espíritas, tem o dia dos católicos e tem o sábado que vem umas três igrejas dos evangélicos” (sic).

Essas crianças se representaram. Falaram de sua condição subalternizada na econo-mia, na educação e até nas necessidades básicas de alimentação. Em pouco tempo que estive ali elas falaram e me despertaram. Espero que meu trabalho dê mais “voz” a elas e contribua para essa linha de pesquisa que têm tentado trazer essa mudança para o “ser criança”.

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Um exemplo disso é o que Corsaro (2011) conta sobre as crianças escravizadas no período posterior à Guerra Civil norte-americana. Elas brincavam de leilões de escravos e de “esconder o chicote” que consistia em procurar um chicote escondido e quem achasse corria atrás das demais para tentar acertá-las. Essas brincadeiras falam da vida particular da escravi-dão vivida por essas crianças. Porém, através dessas brincadeiras, as crianças estão falando da estrutura hierárquica de poder vivenciada por essa comunidade, fala da economia da venda de escravos, fala da coerção vivenciada, etc.

As crianças conseguem falar e parece que estão começando a poder falar. Outro exemplo é o que Florestan Fernandes (2004) em sua pesquisa observou que as crianças são agentes sociais, quando ele mostrou que elas transmitiram a cultura luso-brasileira paras seus pais imigrantes.

Lembrando da metodologia trazida por Malinowski (1984), que pretende compre-ender a visão do povo estudado sobre o seu próprio mundo, é preciso deixar isso acontecer com as crianças, é preciso deixar que a fala delas seja explicitada.

Nota-se que a luta para que as crianças tenham “voz” está apenas começando. Mas o início, ou o ponto de partida é a quebra dessa visão adultocêntrica que a criança precisa de que alguém fale por ela. E a percepção de que enquanto ser social, ela é completa.

Um exemplo desse respeito das diferenças sem haver hierarquização é narrado por Galeno (2004) que ao relatar porque os patos voam em V, diz: “Todos vão se alternando, atrás e adiante, e nenhum se crê ‘super-pato por voar adiante, nem ‘subpato’ por machar atrás [...]. Os patos não perderam o senso comum” (GOULART; FINCO, 2011, p.14). Será que alcançaremos isso?

AND CHILDREN CAN TALK?

Abstract: the Children have always been and still are viewed, as incomplete beings, in training,

which eventually silencing the voice of children. Due to a developmental view the child is seen as the nation’s future and not the present, which once again will not let them talk. However, in recent decades this view has begun to change and the children have found more visibility and “started talking”, or to be heard. However, this representation is still very small, and anthropology can help build that space where the child can leave their subordination and be represented in the speech.

Keywords: Children. Subalternity. Representativeness. Voice.

Notas

1 Canadá, Tchecoslováquia, Dinamarca, Inglaterra e País de Gales, Finlândia, Alemanha, Grécia, Irlanda, Israel, Itália, Noruega, Escócia, Suécia, Suíça, Estados Unidos e Iugoslávia.

2 Pesquisa em andamento no mestrado em Antropologia Social pela UFG e está subsidiada pela Capes.

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