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A Inglaterra como vilã: Sebastião José de Carvalho e Melo e o discurso da anglofobia

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Academic year: 2021

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III

Luiz Eduardo Oliveira

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A Inglaterra como vilã:

Sebastião José de

Carvalho e Melo e o

discurso da anglofobia

O mito da Inglaterra, em Portugal, inscreve-se no próprio mito de origem do reino lusitano, uma vez que remonta à época da chamada fundação da nacio-nalidade, quando ocorre o que talvez seja o primeiro momento de emergência de uma consciência europeia no mundo, pois é nesse período que os europeus, tal como se fizeram conceber, confrontam-se com um Outro, seja ele representa-do pelo munrepresenta-do eslavo representa-do até então desconhecirepresenta-do Leste europeu, seja pelo inimi-go muçulmano, contra o qual as Cruzadas tinham sido planejadas e organizadas. Em tal confronto, delineia-se a sua identificação com a Cristandade, que pode ser tida como precursora da ideia de Europa1. Com efeito, já no ano de 732, quando

a vaga da conquista árabe tinha atingido a Europa ocidental, um cronista, ao es-crever sobre a vitória de Carlos Martel em Poitiers, opunha os “muçulmanos” aos “europeus”.2

No caso de Portugal, é a busca de distanciamento com relação aos de-mais reinos da Hispânia que vai caracterizar os primórdios da nacionalidade, a partir de uma política diplomática “europeia”, por assim dizer, que tinha como objetivo garantir sua autonomia e independência perante os frequentes conflitos com os reinos vizinhos. Como salienta Luís Machado de Abreu3, é esse o sentido

da vassalagem prestada por D. Afonso Henriques à Santa Sé e às alianças matri-moniais com a nobreza de além-Pirinéus. Assim, é nesse contexto que se inicia a aliança anglo-portuguesa, que remonta, portanto, aos tempos da Reconquista Cristã, quando houve participação de ingleses na conquista de Lisboa, a qual é coroada com a nomeação de um inglês como seu primeiro bispo.

O processo de mitificação da Inglaterra, contudo, configura-se literaria-mente depois do Tratado de Windsor, celebrado em 1386, que prepara as nego-ciações do casamento entre o Mestre de Avis, D. João I (1357-1433), e D. Filipa de Lencastre (1359-1415). A união das duas casas dinásticas, com efeito, vai suscitar uma série de representações da rainha e de sua origem inglesa, bem como um momento de influência da Inglaterra em Portugal na arte da guerra, na organiza-ção militar, nas letras e nos costumes, para não mencionar o fato de que o casal de monarcas dá origem à chamada “ínclita geração”, responsável pelo início da expansão colonial portuguesa4. Desse modo, em textos quatrocentistas, como a

Crónica do Rei dom Joan I da boa memória, de Fernão Lopes (c. 1380-c. 1459), a

Crónica da Tomada de Ceuta por el-rei D. João I, de Gomes Eanes Zurara (1410-1474), e o Leal Conselheiro, de D. Duarte (1433-1438), assistimos não somente à mitificação da tomada de Ceuta e do destino do reino de Portugal na conquista de domínios ultramarinos, mas também a um processo de divinização dos sobe-ranos, algo reforçado pelos adjetivos que acompanham a caracterização da rai-nha, em cuja imagem destaca-se o comedimento, a simplicidade, a castidade, a abstinência e sobretudo o rigor de suas práticas religiosas, que lastreia a santida-de santida-de sua morte. Assim, a par santida-de sua imagem santida-de esposa e mãe exemplar, emerge o modelo de uma “rainha santa” que influi decisivamente nos destinos políticos de Portugal, pois, além de legitimar a dinastia de Avis, sacralizando-a, consolida a aliança luso-britânica, que sobreviveu até o século XXI.5

Mas o mito da Inglaterra, em Portugal, não é somente um mito de ori-gem, mas também um mito de fim e renovação, com o qual se relaciona e se confunde. Nesse sentido, a ideia de criação, ao se configurar, nas comunidades primitivas ou modernas, em momentos de crise, seja ela militar, política ou reli-giosa, é motivada por um desejo ou recordação imaginária de uma Idade de Ouro primordial ou de um “Paraíso Perdido”. Assim, a escatologia constitui-se como a

* Este artigo é um dos resultados de uma pesquisa de pós--doutoramento, intitulada “Entre a anglofobia e a anglofilia: as letras inglesas e a intelectualidade luso-brasileira (1750-1873)”, financiada pela CAPES e desenvolvida em 2011 no CLEPUL, sob a supervisão do Prof. Doutor José Eduardo Franco.

1 Ver, sobre o modo como a ideia de Europa afirma-se em concorrência com o conceito medieval de Cristandade, José Eduardo Franco, “Século XVI”,

in José Eduardo Franco e Pedro Calafate (coords.), Séculos de ideias: ideias de Europa na cultura portuguesa, século a século, Lisboa, Gradiva, 2012.

2 Uma reflexão sucinta e interessante desse processo encontra-se em Jaques Le Goff,

A velha Europa e a nossa, trad. de Regina Louro, Lisboa, Gradiva, 1995. 3 Cf. “Idade Média”, in José Eduardo Franco e Pedro Calafate (coords.),

op. cit., p. 27.

4 D. João I foi o primeiro rei estrangeiro a tornar-se Cavaleiro da Jarreteira, Ordem fundada pelo rei inglês Eduardo III (1312-1377), pai do duque de Lencastre e avô de Filipa. Tal condecoração parece ter contribuído para a criação da imagem dos ingleses, em Portugal, como paradigmas da cavalaria. 5 Cf. Amélia Maria Polônia da Silva, “D. Filipa de Lencastre: representações de uma rainha”, in

Actas do Colóquio Comemorativo do VI Centenário do Tratado de Windsor (de 15 a 18 de outubro), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1988, pp. 309-310. Texto disponível em http://ler.letras.up.pt/site/default. aspx?qry=id03id1210&sum=sim (acesso a 2 de janeiro de 2012). Convém ressaltar que o mito de Filipa de Lencastre ainda persiste com vigor, despertando muitos admiradores portugueses, como comprovam as vinte e quatro edições do romance histórico Filipa de Lencastre: a rainha que mudou Portugal, escrito pela jornalista Isabel Stilwell (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2011).

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prefiguração de uma cosmogonia do futuro, como sugerem não somente os mi-tos do Fim do Mundo, tanto nas religiões orientais quanto nos milenarismos pri-mitivos e nos apocalipses judaico-cristãos, mas também nas sagrações dos reis e nos ritos do Ano Novo, em que a renovação cosmogônica do mundo busca resgatar a perfeição dos primórdios. Vale ressaltar que a mitologia escatológica e milenarista emerge em vários períodos históricos, chegando ao século XX, por exemplo, sob a forma secularizada do Nazismo e do Comunismo.6

Durante a Idade Média, não só as famílias ou casas dinásticas e nobi-liárquicas reivindicaram tradições mitológicas próprias, mas também os grupos sociais, como os artesãos e os cavaleiros, que buscavam seus modelos nas histó-rias do romance arturiano, especialmente no episódio da busca do Santo Graal. Em tais narrativas, os heróis e reis assumem função escatológica, apresentando--se, mais do que como reformadores ou revolucionários, como fundadores de uma nova era, e assim como renovadores ou salvadores cósmicos ou sagrados. Tal foi o caso do Sacro Imperador Romano-Germânico Frederico II (1194-1250), mas também, no caso português, o de Afonso Henriques, D. João I e, sobretudo, D. Sebastião (1554-1578). A funcionalidade política da mitologia escatológica faz com que ela transcenda os limites do período medieval e estenda-se ao mundo moderno. Isso porque o mito, para além do seu caráter fundamentalmente dis-cursivo e narrativo, possui, como já se afirmou, uma dimensão performativa que, embora busque raízes em um passado longínquo, confronta-se reiteradamente com o presente e se projeta para o futuro. É nesse sentido que Barthes7 afirma

que ele tem um poder imperativo e interpelativo, pois, partindo de circunstâncias históricas, atira-nos a sua força intencional diretamente, intimando-nos a receber a sua ambiguidade expansiva. Desse modo, sendo o significante do mito um todo inextricável de forma e sentido, recebemos uma significação ambígua, tonando--nos parte de sua própria dinâmica.

No caso dos mitos do fim do mundo, seja pelas águas, como os mitos di-luvianos, seja pelo fogo, através de incêndios catastróficos, sua simbologia, como já foi dito, configura-se como um retorno ao Caos e à cosmogonia, fazendo renas-cer, consequentemente, as esperanças no reaparecimento de uma terra virgem e de uma humanidade nova. Nos apocalipses judaico-cristãos, a chegada do Mes-sias ou o segundo advento de Cristo precedem o Juízo Final e o Fim do Mundo, mas implicam também a restauração do Paraíso, tal como prevê a História Sagra-da. Com efeito, o Cristianismo, sendo herdeiro do Judaísmo, adota o tempo linear da história, que substitui o tempo circular da liturgia, pois o mundo, na mitologia cristã, foi criado somente uma vez e terá um fim único, assim como a Encarnação. Assim, como afirma Eliade8, a “judaização” do cristianismo primitivo equivale à

sua “historicização”.

Com o regresso ao Caos está relacionado o Anticristo, falso Messias representado por um dragão ou pelo demônio, cujo reino é marcado pela des-truição dos valores sociais, morais e religiosos. Do enfrentamento e da vitória do Salvador sobre as forças do Mal vai depender a paz e a prosperidade do novo recomeço. Essa é mais ou menos, do ponto de vista estrutural, a “morfologia do conto”, tal como demonstrou Vladimir Propp (1895-1970)9: a uma “procura” ou

“aventura”, como a busca do Santo Graal, por exemplo, seguem-se as “funções”, representadas por heróis cuja missão é enfrentar o oponente com a ajuda de um talismã ou de uma espada sagrada, vencê-lo, libertar o povo e ascender ao trono. Como notou Walter Burkert10, o opositor do herói deve ser poderoso e causador

de medo, devendo ser “mau” no sentido mais verdadeiro da palavra.

É desse modo que, aos mitos, por assim dizer, positivos, como, no caso da história de Portugal, o da sua eleição por Deus, na Batalha de Ourique, ou, em sua perspectiva utópica, o mito do Encoberto, no movimento messiânico do Sebastianismo, ou ainda na ideia de um Quinto Império, correspondem os mi-tos negativos de feição “anti”, fomentados e utilizados, como nota José Eduardo Franco11, com vistas à monopolização e instrumentalização coletiva, seja para

preservar a sua autonomia e garantir a sua regeneração, seja para promover a sua renovação ou o seu progresso. Assim, na medida em que se configuram no

ima-6 Cf. Mircea Eliade, Aspectos do mito, trad. de Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 2000, pp. 48-49, 62-63.

7 Cf. R. Barthes, Mitologias,trad. de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 2007, pp. 277, 281. 8 Mircea Eliade, op. cit., p. 143. 9 Cf. Vladimir Propp, “As transformações dos contos fantásticos”, in Teoria da Literatura: os formalistas russos, 4.ª ed., trad. de Ana Maria Filipovsky, Maria Aparecida Pereira, Regina Zilberman e Antonio Carlos Hohlfeldt, Porto Alegre, Globo, 1978, pp. 245-270.

10 Walter Burkert, Mito e mitologia, trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 23.

11 José Eduardo Franco, O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX), Lisboa, Gradiva, 2006, vol. 1, p. 24.

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ginário popular, os mitos negativos institucionalizam-se politicamente, como foi o caso da figuração negativa do castelhano, da perseguição aos judeus e da lenda negra dos jesuítas, a partir do período pombalino (1750-1777). Nesse contexto insere-se também a anglofobia, pois a aliança com a Inglaterra, a partir do século XVIII, especialmente depois do Tratado de Methuen (1703), vai ser interpretada, em perspectiva histórica, como uma das causadoras de todos os males do reino e depois da nação portuguesa, atingindo seu ápice com o Ultimato de 1890, num movimento crescente de mitificação em negativo.

Convém ressaltar, nesses casos, o caráter etiológico do mito, uma vez que ele busca identificar as causas da decadência moral, social ou religiosa de um determinado povo ou reinado, para o que se propõe a substituição do “esquema da descida” pelo da “ascensão”12, que se apresenta como a utopia de uma nova

era, ou como a reconquista de uma Idade de Ouro perdida. Em tal processo, o “mito de complot” desempenha um papel fundamental, dada a sua função mobi-lizadora para atender a fins ideológicos. Com efeito, o discurso do complot, que pode ser entendido como um dispositivo retórico que possibilita a figuração do inimigo como uma ameaça global destituída de qualquer sentimento de huma-nidade, dá origem a uma teoria da conspiração que acaba por confundir o opo-nente com o próprio Mal, mesmo que ele apareça transfigurado sob a forma de um monstro, de um dragão ou de Satã.13

É possível identificar, como faz Eliade14, uma linha de continuidade entre

as concepções escatológicas medievais e as filosofias da história iluministas do século XIX, ou em vários outros mitos do mundo moderno. É o caso da Refor-ma religiosa, que, mediante um regresso à Bíblia, busca reviver a experiência da Igreja primitiva; da Revolução Francesa, cujas principais lideranças procuravam restaurar as virtudes dos romanos e espartanos, do modo como são exaltadas por Tito Lívio (c. 59 a.C.- 17 d.C.) e Plutarco (46-126); do racismo arianista, que resgata, através de uma suposta linha ascendente de pureza de sangue, o herói nobre pri-mordial; e do comunismo marxista, cuja projeção de uma sociedade sem classes nos remete de imediato ao mito da Idade do Ouro, que seria alcançada com o “fim da história”. A mitologia escatológica pode ser encontrada também nos cha-mados “mitos de elite”, como se nota nas experiências vanguardistas da arte das primeiras décadas do século XX, marcadas por experimentos estéticos de artistas que tinham como objetivo destruir a linguagem convencional e fundar uma ou-tra, original e às vezes “primitiva”15, ou no mito do artista maldito e

incompreendi-do, e nos mass media, seja através dos super-heróis das histórias em quadrinhos, seja nas grandes produções cinematográficas.

No caso do mito da Inglaterra em Portugal, podemos identificar uma dupla funcionalidade. Se, por um lado, ele se inscreve nas origens do reino ou nos momentos de refundação da nação, configura-se discursivamente em ter-mos positivos, o que faz com que as narrativas de Portugal que o levam em conta sejam caracterizadas por um movimento de anglofilia. Se, por outro lado, ele se inscreve nos mitos apocalípticos, em períodos de crise e decadência financeira, política e militar, emerge como um Outro demonizado, tal como um Anticristo, que é geralmente representado sob a forma de um monstro ou dragão16,

simbo-lismo que sumariza, conforme Gilbert Durand17, todos os aspectos negativos do

regime noturno da imagem. Nesses casos, portanto, trata-se de um movimento de anglofobia, que podemos conceber como um processo de demonização do Outro que teve como corolário a constituição discursiva da identidade nacional portuguesa, através de uma comparação em negativo. É preciso ressaltar, no en-tanto, que tal processo decorre de circunstâncias históricas concretas, marcadas por uma relação de dependência suportada porque necessária à autonomia e à legitimação do reino que depois se transformou em nação.

O momento inaugural de tal processo ocorre durante o período pomba-lino (1750-1777), no qual se desenvolveu, como política de Estado, embora vela-da, uma certa anglofobia da parte de alguns intelectuais portugueses, mediante a legislação que regulamentava as Aulas e as Companhias de Comércio então criadas, bem como os intentados incrementos à indústria e à instrução pública,

12 Cf. Gilbert Durand, As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral, trad. de Hélder Godinho, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

13 Cf. José Eduardo Franco, O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos XVI a XX),

op. cit., pp. 38-39. 14 Mircea Eliade, op. cit., pp. 150-160.

15 Barthes (op. cit., p. 287) afirma que o que denomina “o grau zero da linguagem”, assim como o estilo individual do autor, não passam de mitologias literárias.

16 Mircea Eliade, op. cit., p. 61. 17 Gilbert Durand, op. cit., pp. 100-105.

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mesmo que para tanto o país fosse obrigado a contar com o auxílio inglês. Com efeito, o reinado de D. João V (1689-1750) foi marcado, dentre outras coisas, pelos efeitos do Tratado de Methuen, tendo Portugal adquirido, na memória histórica portuguesa, a imagem de um reino afastado tanto dos seus vizinhos ibéricos – mesmo depois dos casamentos reais entre as duas Casas peninsulares – quanto da Europa ilustrada, sob a liderança de um rei tido por lúbrico e beato18. Todavia,

do ponto de vista cultural, o período joanino caracteriza-se pela importação de ar-tistas e intelectuais estrangeiros, especialmente de músicos italianos, bem como pela encomenda sistemática de pinturas e obras arquitetônicas, graças ao incre-mento financeiro advindo do ouro do Brasil. A construção do palácio e convento de Mafra, de 1713 a 1730, a fundação da Real Academia da História Portuguesa, que funcionou de 1720 a 1776, a tradução e a impressão de obras portuguesas e estrangeiras, inclusive de periódicos, e a constituição da figura do homem de letras “estrangeirado”19, representado por escritores que tiveram experiências

di-plomáticas ou formativas internacionais, tais como o já referido D. Luís da Cunha (1662-1749), Alexandre de Gusmão (1695-1753), Martinho de Mendonça de Pina Proença (1693-1743), António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), Luís António Verney (1713-1792) e Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), mais tarde Marquês de Pombal.

Assim, nos discursos político-econômicos pré-pombalinos, isto é, nos estudos produzidos pelos intelectuais estrangeirados do reinado de D. João V, como Alexandre de Gusmão, D. Luís da Cunha e Sebastião José de Carvalho e Melo, podemos perceber o caráter destrutivo que é atribuído à aliança inglesa, que havia sujeitado a nação portuguesa à humilhação de ter que depender da Inglaterra até mesmo para os cereais necessários à sua subsistência. Segundo K. Maxwell20, na primeira metade do século XVIII, apenas a Holanda e a Alemanha

sobrepujavam Portugal como consumidores das exportações inglesas, e apenas nos momentos mais críticos da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), os navios bri-tânicos no porto de Lisboa ficaram aquém de 50% do total. O embaixador francês Étienne-François, conde de Stainville e duque de Choiseul (1719-1785) escreveu, cinco anos depois do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, que Portugal tinha de ser considerado como uma colônia inglesa. João Lúcio de Azevedo21, por sua

vez, afirma que, depois do Tratado de Methuen, Portugal, como principal consu-midor das manufaturas inglesas, era “a mais excelente colônia da Grã-Bretanha”. Seu comércio era praticamente monopolizado pelos súditos britânicos, que vi-nham fazer fortuna no Porto ou em Lisboa, mas também trabalhar como tanoei-ros, sapateitanoei-ros, alfaiates e cabeleireitanoei-ros, de modo que a imigração abarcava todo o tipo de gente, desde o “inglês falido” ao irlandês fugido da forca de Londres. Ademais, com a intensa produção das minas do Brasil, escasseava o numerário, o que fazia com que as moedas com a efígie de D. João V fossem mais comuns na Inglaterra do que as do rei Jorge I (1660-1717).

Os principais argumentos do Testamento Político de D. Luís da Cunha, bem como dos Apontamentos Históricos, Políticos e Cronológicos sobre as fá-bricas do Reino, de Alexandre de Gusmão, foram reaproveitados, desenvolvidos e até aplicados por Sebastião José de Carvalho e Melo, que, vindo de uma mo-desta família de pequenos fidalgos que serviram como soldados, sacerdotes e funcionários públicos, por intermédio do seu primo, Marco Antônio de Azevedo Coutinho, tornou-se diplomata em Londres (1738-1744) e em Viena (1745-1749), chegando a Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra com a ascensão de D. José I ao trono português, e a Secretário dos Negócios do Reino em 1755, quando exerceu controle quase absoluto dos assuntos relativos ao governo. Em 1759, recebeu o título de Conde de Oeiras e em 1769 o de Marquês de Pombal, como ficou conhecido na história portuguesa. De acordo com K. Maxwell22,

Pom-bal “para todos os efeitos governou Portugal entre 1750 e 1777”. Sua autoridade consolidou-se depois do terremoto de Lisboa, em 1755, quando assumiu o proje-to de reconstrução da cidade, dando-lhe uma nova arquitetura, e da restauração da ordem, com uma política autoritária, rígida e radical em seus objetivos.

18 Voltaire (1694-1778), por exemplo, descrevia assim o monarca português: “Quando queria uma festa, ordenava um desfile religioso. Quando queria uma construção nova, erigia um convento. Quando queria uma amante, arrumava uma freira” (apud

K. Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, trad. de Antônio de Pádua Danesi, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 17). 19 Para Francisco J. C. Falcon (A época pombalina, 2.ª ed., São Paulo, Ática, 1993, pp. 204 e 320), “o fenômeno do ‘estrangeiramento’” pode ser definido como “o produto de uma cisão entre aqueles que, viajando e que vinham de fora, militares e diplomatas de outras nações, puderam mudar suas maneiras de ver e de sentir, e os demais que, insulados, ficaram impermeáveis a tudo que viesse do estrangeiro. Foi este o ponto de partida para a divisão ideológica entre os nacionais ou ‘castiços’ e os ‘estrangeiros’, questão magna da Ilustração portuguesa, [...]”. Desse modo, os estrangeirados podem sê-lo pelo sangue ou pela educação: “O sangue é hebraico, é o que une os judeus e cristãos-novos, separando-os dos castiços. A educação é a cultura absorvida no exterior, desnacionalizante, contrária à formação castiça”. 20 Cf. K. Maxwell, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal, 1750-1808, trad. de João Maia, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995, p. 25.

21 Cf. João Lúcio de Azevedo, O Marquês de Pombal e a sua época, São Paulo, Alameda, 2004, p. 220. 22 Cf. K. Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo,

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Falcon23 classifica os textos escritos – ou pelo menos assinados ou a ele

atribuídos – pelo Marquês de Pombal em sete grupos temáticos, os quais incluem as peças legislativas expedidas durante a sua governação. Conforme o autor, o primeiro grupo, que compreende o período que vai de 1738, ano de sua chega-da a Londres como diplomata, ainchega-da durante o reinado de D. João V, até 1778, quando o Marquês, depois da morte de D. José I e de sua queda do ministério, se defendia dos seus adversários políticos, é composto pelos escritos sobre as rela-ções econômicas anglo-lusitanas. O segundo grupo compõe-se das Instrurela-ções produzidas durante os primeiros anos de sua governação e destinadas a diver-sas autoridades, como as Instrucções regias publicas e secretas encaminhadas ao seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), em 31 de maio de 1751, mesmo ano de sua nomeação como Capitão-General e Governador do Pará; o terceiro refere-se às suas obras polêmicas, tais como o Compêndio his-tórico da Universidade de Coimbra, publicado em 1771; o quarto à legislação; o quinto é composto pela sua correspondência diplomática em geral; o sexto pelas suas Observações secretíssimas e o sétimo, finalmente, pelo material produzido após a sua queda, em 1777, no qual se encontram inclusive seus discursos de lou-vação do próprio governo. O primeiro grupo temático, que aqui mais interessa, se apresenta sob várias formas e abrange diversos tipos de documentos, que vão desde relatórios, instruções, correspondências e pareceres diplomáticos até algu-mas peças legislativas, constituindo-se como uma espécie de súmula de todos os argumentos que compunham o discurso luso-britânico do século XVIII, que era ao mesmo tempo político e econômico.24

Os primeiros textos desse primeiro grupo foram produzidos durante o tempo que Sebastião José de Carvalho e Melo passou em Londres como diplo-mata, de 1738 a 1742. Em 8 de outubro de 1738 partiu para a Inglaterra, a bordo do navio britânico King of Portugal, como novo enviado extraordinário de Portu-gal à corte de Jorge II (1683-1760), por indicação de D. Nuno, o cardeal da Cunha (1664-1750), para substituir seu primo Marco Antônio de Azevedo Coutinho, que, estando em Londres desde 1735, voltou ao reino português, a pedido de D. João V, para exercer o cargo de Secretário de Estado. Sua primeira missão era pedir au-xílio militar ao governo inglês para defender as possessões portuguesas da Índia, que estavam ameaçadas pelos maratas, que haviam tomado a ilha de Salsete, e pelos bonsulós, que assediavam Goa. O gabinete britânico, chefiado à época por Robert Walpole (1676-1745), assim como na ocasião dos ataques espanhóis na fronteira da colônia de Sacramento, mesmo sem se negar ao cumprimento do Tratado da Liga Defensiva de 1703, usava de vários subterfúgios para se eximir de tal responsabilidade, alegando que não poderia fazer nada sem ouvir a Compa-nhia das Índias Orientais – fundada em 1698 por Guilherme III (1650-1702) –, que por sua vez tinha muito interesse na derrota dos portugueses, como veio provar a posterior anexação da ilha de Salsete ao seu império, bem como de outras praças portuguesas vizinhas de Bombaim. O problema foi resolvido com o envio de uma esquadra portuguesa, em 1740, na qual estava D. Luís Carlos Xavier de Meneses (1689-1742), quinto conde da Ericeira, que ia assumir, pela segunda vez, o cargo de vice-rei da Índia. No entanto, o conflito deixou vários soldados portugueses mortos, entre eles José Joaquim de Carvalho (c. 1712-1740), irmão mais novo de Pombal.25

Seus escritos dessa época, que, pela sua extensão, enfastiavam tanto D. João V quanto o duque de Newcastle26, longe de se filiarem ao grupo de escritos

genérica e pejorativamente classificados como “estrangeirados”, produzidos por emigrados portugueses que, de forma quase irresponsável, escreviam livremente sobre os atrasos e mazelas de Portugal27, buscam explicar as causas profundas

do estado de decadência do comércio e da economia portuguesa, o que é sem-pre contraposto ao desenvolvimento da Inglaterra e de outras “nações polidas da Europa”, através de uma comparação em negativo na qual o Outro, como um espelho invertido, aparece como um modelo a ser imitado.

23 Francisco J. C. Falcon, op. cit., pp. 280-285.

24 Ibidem, p. 281.

25 Cf. José Barreto, “Sebastião de Carvalho e Melo enviado de Portugal em Inglaterra”, in

Sebastião José de Carvalho e Melo,

Escritos econômicos de Londres (1741-1742), seleção, leitura, introdução e notas de José Barreto, Lisboa, BNP (Série Pombalina), 1986, pp. 8, 12-13.

26 Conforme João Lúcio de Azevedo (cf. op. cit., pp. 45-46), seus despachos, além de serem longos, eram emaranhados e prolixos, tendo o diplomata, por conta disso, ganhado o irônico apelido de “ministro letrado”, pela grande quantidade de citações e abuso de fórmulas de jurisprudência, o que tornava seu estilo pedante e confuso. Com efeito, sua ostensiva erudição, que se manifestava em suas notas escritas ao rodapé de seus ofícios, tornou-se uma marca registrada do discurso pombalino, especialmente em sua legislação (cf. Luiz Eduardo Oliveira,

A legislação pombalina sobre o ensino de línguas: suas implicações na legislação brasileira (1757-1827), Maceió, EDUFAL, 2010).

27 Cf. Jorge Borges de Macedo,

Estrangeirados: um conceito a rever, Lisboa, Edições do Templo, s.d., e O Marquês de Pombal (1699-1782), Lisboa, BNP (Série Pombalina), 1982.

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Embora sua função não permitisse fazer análises ou dar sugestões aos governantes em matéria tão delicada, como lhe aconselhava o Cardeal da Mota, receoso de desagradar D. João V, que considerava o novo diplomata “novato” e capaz de cometer imprudências, Sebastião de Carvalho teve oportunidade de expor suas ideias sobre as relações político-diplomáticas luso-britânicas quando recebeu de Lisboa, em 15 de outubro de 1740, um ofício com a contraproposta portuguesa ao projeto de convenção inglês contra a Espanha. No ofício, exigia-se a relação das negligências ou contravenções do Artigo XV do Tratado de Aliança Defensiva de 16 de maio de 1703 e do Artigo Secreto do Tratado de Paz de 10 de julho de 1654, que garantiam aos portugueses na Inglaterra a reciprocidade de privilégios e liberdades do comércio que os ingleses tinham em Portugal. Ao representante do governo português em Londres cabia instruir-se a respeito da questão, antes de emitir seu parecer, o que fez no mesmo ano, ao interromper as negociações e começar a redigir uma Relação dos gravames que ao Comércio e Vassalos de Portugal se tem inferido e estão atualmente inferindo por Inglaterra com as infrações que dos pactos recíprocos se tem feito por este Segundo Reino; assim nos Atos do Parlamento que publicou, como nos costumes que estabe-leceu; e nos outros diversos meios de que se serviu para fraudar os Tratados do Comércio entre as Duas Nações.28

Antes de escrever a Relação dos gravames, que só foi enviada a Lisboa no dia 2 de março de 1741, o diplomata havia redigido uma longa Carta de Ofício sobre a questão, datada de 2 de janeiro de 1741 e dirigida a Marco Antônio de Azevedo Coutinho. Ao contrário de Alexandre de Gusmão, que chegou a pro-por a anulação dos tratados com a Inglaterra em proveito de uma aliança com a França, o enviado português defendia a manutenção da aliança, pois, em seu entender, não era o Tratado de Methuen a principal causa da ruína da economia portuguesa, mas a sua infração pela ambição, cobiça e soberba dos ingleses, que invejavam o “nosso Brasil” e eram considerados como os “tiranos do comércio”. Assim, antes se devia tolerar “um mal grande, que nos tem com sossego, do que expormo-nos a muitos maiores, que nos trariam fatais perturbações”. Nesse sen-tido, Sebastião José de Carvalho e Melo inaugura o discurso oficial da anglofobia, que mitifica a Inglaterra como uma encarnação do mal, uma vez que, nos escritos dos outros intelectuais do período, o caráter malévolo da aliança inglesa é atribu-ído à conjuntura político-econômica da Europa, e não à má índole ou à ganância do seu “gênio”.

Apesar de inacabada, a Relação dos gravames é um texto bem estrutura-do e apresenta suas teses econômicas de forma sistematizada, como o resultaestrutura-do de inquéritos e averiguações. Após expor os “Motivos da obra”, que se justificam pela importância da regulamentação do comércio para qualquer nação, o autor faz um “Juizo geral do comercio de ambos os reynos”, no qual, com base na análi-se dos tratados firmados entre os dois paíanáli-ses, busca mostrar como Portugal sus-tenta todo o peso das convenções, que se tornaram muito onerosas, enquanto a Inglaterra, tendo pouco ou nenhum encargo, recolhe delas todo o proveito:

O aperto das conjunturas em que se fizerão os tratados he certo que não permitia que nelles fosse igual nosso partido. Não obs-tante porem serem celebradas aquellas convenções em tempos tam calamitozos, sempre contudo foi a sua stipulação fundada sobre o pé de um comercio com liberdade reciproca. Esta foi a que não permitio a ambição dos mercadores ingleses que con-servassem os de Portugal na parte que lhes pertencia. Em ordem poes ao fim de os provarem della, idearam Actos que fizerão pas-sar pelo Parlamento com títulos diversos e paliados para disfar-çarem a nossa jactura a que se ordenavão, inventaram fraudes e subterfúgios para infringirem sem razão ou ley as convenções antigas e, por concequencia, reduziram em Portuugal não só os negociantes a não poderem transportar a Inglaterra e mais parte

28 Cf. José Barreto, op. cit., pp. 27-28.

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do Norte os seus efeitos e géneros, mas tambem os labradores à impossibilidade de uzarem ainda dentro em sua caza dos fructos que cultivão e de terem o livre arbitrio deles sobre a mesma terra em que são produzidos.29

Em seguida, é diposta a divisão e a ordem em que é tratada a matéria, valendo-se o autor de doze “reflexões”. Na primeira, são expostas algumas “máxi-mas geraes do comercio que rezidem comummente nos corações ingleses”, no intuito de fazer ver seus objetos de cobiça, tal como se manifestam nos Atos do Parlamento. A segunda trata da navegação, bem como das infrações das liber-dades que competiam a Portugal pelos tratados. A partir da terceira reflexão, o autor passa a tratar de alguns gêneros específicos, a começar pelo vinho, “o mais importante entre os produtos das nossas terras”. Assim, na quarta reflexão, trata--se do azeite, na quinta do sal, na sexta do açúcar, na sétima do tabaco, na oitava do “fruto de expinho” [limão, laranja], na nona da fruta seca do Algarve, na décima das carnes de porco secas e na décima-primeira da lã. Na décima-segunda re-flexão, há uma “ponderação sobre os seus remedios segundo o prezente estado da Inglaterra”, os quais são divididos em duas classes: a dos possíveis e dos im-praticáveis. Como prova de seus argumentos, Sebastião de Carvalho acrescenta “taboadas” correspondentes a cada uma de suas reflexões, além de uma espécie de epílogo dividido em três partes: a primeira é uma carta com a relação dos im-postos pagos pelos mercadores portugueses e ingleses, para mostrar a diferença que fazem as infrações do Artigo XV do Tratado da Grande Aliança de 170330. A

segunda é um plano dos direitos que se pagavam até 1660 e dos que passaram a pagar-se depois, para mostrar a disparidade advinda do não cumprimento do Artigo Secreto do tratado de 1654, que regula o modo como os comerciantes ingleses deveriam pagar os direitos e taxas em territórios portugueses. A terceira parte, finalmente, apresenta uma explicação da origem e estabelecimento dos direitos que constituem cada uma de suas reflexões.31

Sobressai na Relação dos gravames a imagem negativa com que são re-presentados os ingleses, pela sua cobiça e prepotência. Assim, buscando descre-ver os “humores que formão o carácter dos que habitam e os costumes que nelle se observão como regras, que são inalteraveis” o enviado português afirma que, apesar de os britânicos não serem sanguinários, eram saqueadores das fazendas alheias, o que se justificava pela sua pretensão de assenhorear-se do mundo. O trecho a seguir é bastante significativo por consolidar um mito em negativo da Inglaterra, na medida em que considera os ingleses de todos os grupos sociais como membros de um complot, ou conspiração para arruinar e destruir todos os estrangeiros que se opusessem aos seus interesses. Apesar do seu tom ao mesmo tempo caricatural e rancoroso, que em alguns aspectos chega a ser exagerado, o texto não deixa de documentar a experiência de um diplomata que representa um país frágil e dependente na capital do reino que vivia um momento de crista-lização das ideias e mitologias expansionistas e imperiais32:

O inglez imagina por prevenção innata que nasceo para ser se-nhor dos cabedais do mundo; que he necessario ser Bretão (como elles dizem) para ser hábil e capaz de possuir riquezas; que por consequencia lhes andam usurpadas aquellas que possuhe qual-quer outra nação; que quando vexão a hum estrangeiro para lhe extorquirem o cabedal ou lhe divertirem o lucro que deveria ter, não he isto hum roubo que cometem, mas huma reivindicação, porque se risdtituem do que lhes pertencia. Isto que assim passa nos corações do comum, se observa no particular de cada inglez no que lhes he possivel. Logo que se trata de interesses, se pode haver meyo para os conservar ou para os adquirir à sua patria ou a qualquer individuo della em damno de outro Estado ou sujeito es-tranho, não ha em Inglaterra quem não coopere para o projecto, sem exepção de alguma pessoa ou estado. A regateira, o homem do mar, o cidadão, o mercador, o nobre, o ministro cível e do

Es-29 Sebastião José de Carvalho e Melo, Escritos Económicos de Londres (1741-1742), selecção, leitura e notas de José Barreto, Lisboa, BNP (Série Pombalina), 1986 p. 34.

30 Texto do referido Artigo: “Que os privilégios das pessoas e as liberdades do comercio que têm ao presente os ingleses e holandeses em Portugal terão reciprocamente os portugueses no Reino de Inglaterra e Estados da Holanda” (apud José de Almada, A Aliança Inglesa: subsídios para o seu estudo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1946-1947, p. 63).

31 Cf. Sebastião José de Carvalho e Melo, op. cit., pp. 34-98.

32 Conforme K. Maxwell (Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, op. cit., p. 4), entre 1739 e 1743, a Grã-Bretanha passou por momentos críticos, marcados pela Guerra da Orelha de Jenkins (1739-1748), entre as tropas coloniais britânicas e franco-espanholas no Caribe, e pelo ataque de Edward Vernon (1684-1757), em 1741, a Cartagena, que era o grande baluarte para o controle da Espanha sobre as rotas de comércio originárias de seus domínios na América do Sul. Não era sem razão, portanto, o temor de Sebastião de Carvalho e Melo, que afirmava que a inveja do Brasil levaria os ingleses a atacar a América portuguesa.

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tado, todos em cauza commúa e commú acordo conspirão e se unem, não só para fazer aos estrangeiros interesse, que possa aliás acordarse a qualquer natural, mas para antes arruinar e destruir por todos os modos o mesmo estrangeiro. Quando aqui apare-ce qualquer homem de outra nação para exercitar hum artificio ou fazer hum interesse, o povo miudo descobertamente o insulta com maldiçoes e às vezes com pedras, dizendolhe grosseiramente que vá para a sua patria, que esta lhe não he pertencente. As gen-tes mais polidas o vexão com objeções e com projectos, para que encontre a ruina onde vinha buscar o interesse.33

Ainda como prova ao ofício de 2 de janeiro de 1741, Sebastião de Carvalho escreveu uma Exposição dos fundamentos por que El-Rei Nosso Senhor se acha hoje desobrigado da observância dos artigos 11.o do Tratado de 1654 e 11.o e 13.o do Tratado de 1661, que permitem os navios e mercadores ingleses no porto do Brasil e que em Inglaterra é hoje impraticável a redução da tarifa da Alfândega aos termos do artigo secreto de 1654. O documento, datado de 6 de janeiro de 1741, desenvolve os argumentos da Relação dos gravames, no que critica, como Alexandre de Gusmão, a perpetuidade dos tratados de 1703, firma-dos num momento de fragilidade militar e econômica de Portugal. Segundo o autor, até mesmo os ingleses, com o passar do tempo, perceberam a exorbitância de tais convenções, uma vez que, exigindo o seu estrito cumprimento, dariam oportunidade aos portugueses de exigirem o acesso à América inglesa. Ademais, as circunstâncias econômicas e políticas que tinham levado à assinatura dos refe-ridos tratados haviam mudado de maneira significativa, especialmente depois da descoberta das minas de ouro e diamantes do Brasil, tendo os ingleses já arrui-nado os gêneros principais do comércio colonial português – o tabaco e o açúcar – quando passaram a plantá-los em suas próprias colônias.34

Além de tais peças, que têm uma importância inquestionável na história do pensamento econômico português, suas correspondências oficiais – na dição de diplomata – e particulares abordam dois temas importantes para o con-texto da época. O primeiro é o receio de que a cobiça e a falta de escrúpulos dos ingleses os levassem a ocupar Buenos Aires, o que levaria os portugueses a terem perigosos “vizinhos de portas a dentro” – daí a sua rejeição da oferta de auxílio militar da Inglaterra no conflito com a Espanha sobre a colônia de Sacramento. O segundo é a presença universal dos judeus, que, com seus cabedais, desempe-nhavam a função de banqueiros, comerciantes, advogados e médicos em países como a Inglaterra e a Holanda, para onde levavam seus cabedais, como era o caso de Jacob de Castro Sarmento (1691-1762), médico português de origem judaica residente em Londres, que foi responsável por introduzir em Portugal as teorias de Isaac Newton (1643-1727), com a sua Teórica verdadeira das marés, conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton (1737). Sua preocupação era de que, havendo muitos cristãos-novos no Brasil e nas colônias espanholas, eles provavelmente apoiariam os ingleses, tanto por suas relações familiares e pessoais em Londres quanto quanto pelo ressentimento de terem sido expulsos de seu país de origem, o que o levaria a, já como ministro de D. José I, referir-se às manobras de um “monopólio internacional anglo-judaico”.35

Apesar de considerar mitificar Inglaterra como encarnação de um mal à economia e à prosperidade portuguesas, Sebastião José de Carvalho e Melo, em seus escritos produzidos durante o tempo em que esteve como diplomata em Londres, manifesta um certo fascínio pelo desenvolvimento comercial e ma-rítimo dos ingleses, assim como pela simplicidade, flexibilidade e eficácia do seu sistema de manufaturas. Tal fascínio, no entanto, não impedia que o diplomata português criticasse asperamente o sistema político inglês, dado o conflito de prerrogativas entre a coroa e o parlamento, bem como a preponderância dos in-teresses pessoais sobre os da nação. Com a morte de D. João V e a ascensão de D. José I ao trono português, ele vai se tornar Secretário dos Negócios Estran-geiros e da Guerra, o que vai lhe possibilitar pôr em prática muitas das ideias e

33 Cf. Sebastião José de Carvalho e Melo, op. cit., p. 52.

34 Cf. Francisco J. C. Falcon, op. cit., pp. 288-289.

35 Cf. Sebastião José de Carvalho e Melo, op. cit., pp. 289-291.

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convicções adquiridas em sua experiência diplomática, expedindo uma série de medidas tendentes à proteção do comércio e da economia portuguesa, em opo-sição ao que considerava “usurpações” dos tratados firmados com a Inglaterra. No entanto, tais medidas, em muitos casos, eram subreptícias e até mesmo veladas, dada a importância, por ele reconhecida, da manutenção da aliança perante as constantes ameaças espanholas aos domínios portugueses na América, o que não o impedia de sugerir aos aliados, sempre que podia, a possibilidade de uma aliança com a França, como um meio de barganha em suas negociações políticas e diplomáticas.

Resumo:

Este artigo investiga o modo como o discurso oficial da anglofobia, no contexto por-tuguês, se configura nos escritos econômicos de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que mitifica a Inglaterra como uma encarnação do mal, uma vez que, nos escritos dos outros intelectuais do período, o caráter malévolo da aliança ingle-sa é atribuído à conjuntura político-econômica da Europa, e não à má índole ou à ganância do seu “gênio”.

Palavras-chaves: Anglofobia; conspiração; cultura portuguesa; Inglaterra; mito.

Abstract:

Based on the Portuguese context, this paper studies the shaping of the Anglophobia’s official speech in the economical writings of Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), who mythicizes England as an incarnation of evil, while in the writings of other intellectuals of the same period the malevolent feature of the English alliance is attributed to the political-economic conjuncture of Europe, instead of to its greed “genius”.

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