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DOS FENÔMENOS AO NADA: UM ESTUDO SOBRE A LIBERDADE EM SCHOPENHAUER ANDRÉ HENRIQUE M. V. DE OLIVEIRA

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DOS FENÔMENOS AO NADA: UM ESTUDO SOBRE A LIBERDADE EM SCHOPENHAUER

(2)
(3)

Em memória de Edimar Viana, que ao fazer a tarrafa, na beira da calçada, apontava um futuro para seu neto.

(4)

AGRADECIMENTOS

Ao desconhecido que nos rege e que faz do mundo o que ele é.

Aos professores do Mestrado em Ética e Epistemologia da UFPI, principalmente ao professor Luizir de Oliveira, cuja orientação foi de fundamental importância para a realização deste trabalho.

(5)

“A mente vê, a mente ouve, e as outras coisas são surdas e cegas”

(6)

SUMÁRIO

RESUMO...7

ABREVIATURAS...8

INTRODUÇÃO...9

1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E METAFÍSICA...13

1.1- A ANTINOMIA LIBERDADE – NECESSIDADE DO PONTO DE VISTA EPISTEMOLÓGICO: A DISCORDANCIA ENTRE SCHOPENHAUER E KANT...13

1.2- A METAFÍSICA DA NATUREZA ENQUANTO FUNDAMENTO DE UMA ÉTICA DESCRITIVA...28

2- ÉTICA DESCRITIVA E LIBERDADE PRAGMÁTICA...42

2.1- A ÉTICA DESCRITIVA: REFUTAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA...42

2.2- A LIBERDADE PRAGMÁTICA...55

3- A LIBERDADE COMO NEGAÇÃO DA NECESSIDADE...60

3.1- A REFUTAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO A PARTIR DO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE...60

3.2- CARÁTER INTELIGÍVEL: O NÚCLEO DA VONTADE INDIVIDUAL...72

3.3- CARÁTER ADQUIRIDO: O CAMINHO PARA NOS TORNARMOS O QUE SOMOS...82

3.4- O CONHECIMENTO DE “OUTRA ORDEM”: NEGAÇÃO DA VONTADE E LIBERDADE...86

CONSIDERAÇÕES FINAIS...106

(7)

RESUMO: O presente trabalho propõe fazer um exame sobre a noção de liberdade a partir da obra de Arthur Schopenhauer. Nesta investigação tentamos preservar o caráter “orgânico” de sua filosofia estudando a noção de liberdade a partir das relações que esta estabelece com os âmbitos epistemológico, metafísico e ético do conjunto geral de sua obra, dando ênfase, todavia, à definição de liberdade enquanto negação de toda necessidade. Neste sentido, partiremos da crítica que Schopenhauer faz à resolução kantiana da antinomia liberdade versus necessidade, presente na Crítica da razão pura, para em seguida mostrar como a resposta dada por Schopenhauer a esta antinomia se baseia na sua concepção metafísica do mundo, ou seja, do mundo como objetivação da Vontade. Tal metafísica dará suporte à sua formulação de uma ética descritiva, que refuta qualquer possibilidade de um melhoramento do caráter dos indivíduos a partir de doutrinações morais. Por fim, apresentamos nossa interpretação do que Schopenhauer chama de “aparição da liberdade no fenômeno”, de acordo com sua definição de liberdade enquanto negação de toda necessidade.

Palavras-chave: Caráter inteligível; Necessidade; Negação da Vontade.

ABSTRACT: This paper proposes an examination of the notion of freedom based upon the philosophy of Arthur Schopenhauer. Herein we try to preserve the “organic” character of his philosophy by means of a close approach of the notion of freedom from the relations that it establishes with the epistemological, metaphysical and ethical aspects of Schopenhauer’s thought. The emphasis, however, is placed on the definition of liberty as a means of denying all necessity. In this sense we depart from the criticism that Schopenhauer directs to the resolution that Kant offers to the antinomy freedom versus need, present in the Critique of Pure Reason. Moreover we also aim at stating how the answer given by Schopenhauer to this antinomy is based on a metaphysical conception of the world, ie, the world as objectification of the Will. Such metaphysical will supports its formulation of a descriptive ethics, which refutes any possibility of an improvement of the character of individuals from moral indoctrination. Finally, we present our interpretation of what Schopenhauer calls “the appearance of freedom in the phenomenon”, according to its definition of liberty while denying every need.

(8)

ABREVIATURAS

MVR = O mundo como vontade e como representação [Edição utilizada nas citações: O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.]

MVR II = O mundo como vontade e como representação volume II [Edição utilizada nas citações: The World as Will and Representation vol. II. Trans. By E. F. J. Payne. New York: Dover Publications, Inc. 1966.]

(9)

INTRODUÇÃO

Uma das primeiras preocupações de Schopenhauer ao apresentar sua filosofia é a de esclarecer ao leitor que essa filosofia na verdade consiste em um pensamento único, querendo com isso dizer que toda a extensão e desenvolvimento de seu pensamento perfazem a expressão de uma única ideia que se desdobra e se espalha sem que em momento algum seja perdida sua unicidade. Tal pensamento, prenhe de implicações epistemológicas, estéticas, éticas e até políticas, mantém em todos os âmbitos que alcança uma relação de fidelidade com certa intuição única que se reafirma em cada aspecto e em cada detalhe que compõe seu pensamento, o que leva o mesmo a receber com propriedade o adjetivo “único”.

Aquela preocupação de Schopenhauer a observamos no prefácio à primeira edição de O mundo como vontade e como representação, quando o filósofo afirma que o que deve ser comunicado por ele, isto é, pelo livro, é um pensamento único, e que “um pensamento único, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade”.1

Devemos considerar a unicidade do pensamento de Schopenhauer não só como um recurso estilístico, mas principalmente como uma importantíssima chave de leitura para sua obra, pois tal unicidade revela a composição orgânica de sua filosofia. Por “composição orgânica” entendemos aquilo que o filósofo diz a respeito do modo como as partes (“órgãos” e “membros”) de sua filosofia se concatenam, a saber: um modo “tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente”.2

Estas considerações são expostas no prefácio ao Mundo como vontade e como representação, mas elas podem ser aplicadas a todo o conjunto de sua produção filosófica, uma vez que toda ela representa um desdobramento daquela intuição original.

Cientes da organicidade do pensamento de Schopenhauer não podemos negligenciar a ligação vital que há entre os órgãos e membros que compõem o todo deste organismo. Sendo assim, se o problema ao qual voltamos nossa atenção, a saber: como é possível a liberdade no fenômeno, liga-se de modo mais imediato ao aspecto ético de sua filosofia, não deixa ele em nenhum momento de influenciar e ser

1

SCHOPENHAUER, MVR, p. 19.

(10)

influenciado por outros “órgãos” do organismo. Sendo a questão da liberdade uma questão ética, para investigá-la a fundo teremos que passar obrigatoriamente pela metafísica que a sustenta e antes pela epistemologia, da qual Schopenhauer parte para decifrar o “enigma” do mundo, enigma que, aliás, é decifrado no próprio corpo; lugar onde também se levanta o problema da liberdade.

Não há, pois, como escapar do modo de funcionamento que é próprio deste organismo. Assim, se trataremos inicialmente do que se considera epistemologia, e depois da ética, para em seguida perscrutarmos especificamente o problema da liberdade fenomênica, isto se deverá ao fato de trabalharmos com um sistema filosófico que exige uma compreensão mínima de toda sua amplitude, o que perfaz uma condição essencial para uma exposição mais consistente do nosso problema central. Decidimos não dedicar qualquer capítulo a um exame das considerações estéticas do filósofo a fim de não nos estendermos muito no desenvolvimento de nosso tema; ainda assim, em alguns momentos aparecerão traços que se referem diretamente àquelas considerações, o que reafirma a organicidade da filosofia schopenhaueriana.

É sabido que em sua obra magna Schopenhauer apresenta a tese de que o mundo se constitui de dois modos: como representação e como Vontade. O filósofo se apropria da distinção feita por Kant entre fenômeno e coisa-em-si e reelabora estes conceitos como representação e Vontade, sendo que o primeiro destes aspectos, a representação, se refere a tudo que é conhecido pelo sujeito por meio de sua faculdade cognitiva, que configura o modo como percebemos o mundo; já o segundo aspecto se refere ao que o mundo é em si mesmo, isto é, sua essência independente da maneira como o percebemos.

Considerada em si mesma, a Vontade não é um objeto passível de ser conhecido como os demais, de modo que a conhecemos apenas indiretamente, através de sua manifestação em nosso corpo, e, por analogia, nos diversos entes que compõem o mundo, os quais são também produto de sua manifestação. Essa Vontade revela-se como a própria coisa-em-si na medida em que não é explanável de acordo com as leis que regem as representações, ou seja, na medida em que não está submetida ao espaço, ao tempo e à lei de causalidade. Já os fenômenos do mundo, que são objetivações da Vontade, incluindo-se os seres humanos, agem e fazem efeito seguindo necessariamente um curso determinado por causas, estímulos ou motivos, de acordo com o lugar que cada fenômeno ocupa na natureza, entendida esta como um todo que vai desde as forças básicas que atuam na matéria bruta até os animais dotados de inteligência.

(11)

O conceito que neste trabalho elegemos como fio condutor de nossa investigação, a saber, o conceito de liberdade, remete-nos diretamente à dimensão do agir humano, dimensão esta que, nas palavras de Schopenhauer “afeta a cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente” 3. Com efeito, para reconhecê-lo basta levarmos em consideração que o tema da liberdade é um dos mais caros à ética4. Por outro lado, uma vez que a Vontade se revela no corpo, será através das ações do mesmo que encontraremos o ponto de partida da metafísica schopenhaueriana. Em virtude desta dupla abordagem sobre as ações é que precisaremos primeiramente apresentar o mundo sob um de seus dos dois aspectos: o mundo enquanto representação.

Uma vez que tenhamos apresentado o mundo como representação de um sujeito que conhece, passaremos à exposição da tese metafísica de Schopenhauer, pois é a partir desta que compreenderemos sua concepção de ética como uma análise descritiva do mundo moral. É ainda com base em sua metafísica que investigaremos o conceito de liberdade considerando-o como negação de toda necessidade, trazendo à luz o problema da liberdade no fenômeno.

Todo esse percurso será traçado com vistas à apresentação de nossa interpretação do problema da liberdade, problema que, de modo específico se apresenta na contradição entre a ordem de necessidade que rege os fenômenos e a liberdade que é própria da Vontade, pois para o filósofo somente a Vontade, essência do mundo, é livre, já que não está submetida a nenhuma determinação, ao contrário de seus fenômenos, incluindo aqui o agir humano, que sempre encontram um fundamento que os determina dentro de uma cadeia de causas e efeitos.

Apesar da refutação da liberdade empírica, o determinismo defendido por Schopenhauer assume um caráter bastante peculiar na medida em que confere ao homem uma posição especial no conjunto da natureza. Esta posição, assumida em virtude da elevada faculdade de conhecimento que o homem possui, o alçaria à condição de ser o único ser da natureza no qual a liberdade poderia também se apresentar, ao ocorrer através dele uma autonegação, uma contradição da Vontade consigo mesma.

3 Ibidem, p. 353.

4 Além da questão da liberdade, outras noções compõem o vasto campo dos problemas fundamentais da

ética, tais como consciência, dever, valor, virtude, justiça, bem, mal, etc. Dentre estes, apenas o dever será abordado em sua relação com a liberdade, no segundo capítulo.

(12)

Tentaremos expor, ao fim deste trabalho, como essa contradição se apresenta no fenômeno da morte5, entendendo-a como a completa anulação da consciência individual, como a completa supressão do indivíduo. Indivíduo este que, enquanto produto da Vontade se expressa como vida, e que na morte “concretiza” a contradição da Vontade consigo mesma, mostrando na própria natureza a intrínseca relação que há entre representação e Vontade, entre necessidade e liberdade, vida e morte, mundo e nada.

5

Aqui “fenômeno da morte” indica o que comumente entendemos como interrupção definitiva de todas as funções biológicas.

(13)

1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E METAFÍSICA

1.1- A antinomia liberdade X necessidade do ponto de vista epistemológico: a discordância entre Schopenhauer e Kant

A base epistemológica da filosofia schopenhaueriana é manifestamente uma herdeira direta da crítica kantiana. Entre as exigências feitas por Schopenhauer no primeiro prefácio a O mundo como vontade e como representação, dirigidas àqueles que pretendem compreender seu pensamento, encontra-se a de estar familiarizado com os escritos capitais de Kant que no julgamento de Schopenhauer, constituem “o fenômeno mais importante que ocorreu ao longo dos últimos dois mil anos na filosofia”.6

Para Schopenhauer, o mérito principal de Kant teria sido o de estabelecer de modo claro e firme a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, e demonstrar que entre estes dois existe o intelecto, que com suas formas a priori condiciona toda experiência possível. Ao demonstrar, assim, as condições de possibilidade do conhecimento, a filosofia de Kant haveria estabelecido os limites do conhecimento circunscrevendo-o ao domínio da experiência, em outras palavras, ao domínio do fenômeno, daquilo que aparece, e descartando definitivamente o conhecimento da coisa-em-si. Com efeito, no § 8 da “Estética transcendental”, na Crítica da razão pura, observamos claramente como a proposta kantiana fixa os limites do conhecimento:

Quisemos, portanto, dizer: que toda nossa intuição não é senão a representação de fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as intuímos, nem que as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós. O que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los.7

6

SCHOPENHAUER, MVR, p. 22.

(14)

De acordo com Kant, portanto, é a própria faculdade cognitiva do sujeito, constituída pelas formas puras da sensibilidade, isto é, espaço e tempo, e pelas categorias do entendimento8, que barra qualquer tentativa de se alcançar qualquer conhecimento que queira ultrapassar o domínio da experiência. Nesse sentido é que Schopenhauer comenta que: “Ele [Kant] mostrou que as leis a regerem com inexorável necessidade na existência, isto é, na experiência em geral, não devem ser usadas na dedução e explanação da EXISTÊNCIA MESMA” 9

, mas devem ser consideradas algo que tem sua origem no sujeito.

A distinção entre fenômeno e coisa-em-si, ainda que com algumas modificações em relação à filosofia de Kant, perpassará toda a filosofia de Schopenhauer, mantendo inclusive uma íntima relação com a dicotomia entre liberdade e necessidade, como veremos no desenvolvimento deste escrito. Ao enveredar por essas questões, Schopenhauer se apropria da distinção feita por Kant e incorpora-a à sua própria filosofia. Tal apropriação, no entanto, é feita com significativas modificações, pois apesar de reconhecer que todo este mundo é fenômeno, Schopenhauer discorda de seu mestre no que tange aos papéis desempenhados pela faculdade da sensibilidade, do entendimento e pela razão na formação do conhecimento. Além disso, o procedimento empregado por Schopenhauer inverte o de Kant, quando ao invés de partir de conceitos em direção a intuições, parte das intuições em direção aos conceitos. Em suas palavras: “Uma diferença essencial entre o método de Kant e aquele que sigo reside no fato de ele partir do conhecimento mediato, refletido, enquanto eu, ao contrário, parto do conhecimento imediato, intuitivo”.10

Apesar das significativas discordâncias com relação ao pensamento de Kant, Schopenhauer se mantém fiel ao que ele chama de “idealismo transcendental” 11

, isto é,

8 Para Kant todo nosso conhecimento possui duas fontes: a faculdade de receber representações e

faculdade de conhecer um objeto por essas representações. Pela primeira o objeto nos é dado e pela segunda ele é pensado. Trata-se, portanto, de intuições (no primeiro caso) e de conceitos (no segundo). A primeira faculdade é examinada por Kant na Estética transcendental, já a segunda, na qual ele apresenta os conceitos puros do entendimento, ou categorias, constitui o assunto da Analítica transcendental. Estas duas fontes encerram os limites entre o que pode ser conhecido e o que pode ser apenas pensado.

9 SCHOPENHAUER, MVR, p. 529 (Apêndice). As palavras grifadas com letras maiúsculas

correspondem aos grifos da tradução utilizada neste trabalho.

10 Ibidem, p. 567 (Apêndice).

11

Para Hannan, o idealismo de Schopenhauer soa controverso, pois quando o filósofo afirma que as forças básicas da natureza (gravitação, eletricidade, magnetismo, etc.) são objetivações da Vontade ele estaria admitindo que “o poder de agir é uma característica da coisa-em-si, de modo algum imposto sobre o mundo pela mente” (HANNAN, p. 51), e que se o idealismo transcendental fosse verdadeiro “estaríamos inaptos a conhecer o que quer que seja sobre a coisa-em-si” (Ibidem, p.51).

(15)

à tese de que a existência objetiva das coisas está sempre condicionada pela consciência, e que, por conseguinte, o mundo objetivo só pode existir enquanto representação de um sujeito, o que faz da própria filosofia uma atividade essencialmente idealista. Assim:

A verdadeira filosofia deve a todo custo ser idealista; de fato, assim ela deve ser simplesmente para ser honesta. Pois não há nada mais certo do que o fato de que ninguém jamais saiu de si mesmo a fim de identificar-se imediatamente com alguma coisa diferente de si; antes, tudo aquilo que se tem como certo, como seguro, e, portanto, como imediatamente conhecido, reside dentro de sua consciência.12

O idealismo defendido por Schopenhauer não apresenta os objetos do mundo como um efeito do sujeito, tampouco afirma uma precedência do objeto em relação ao sujeito, o que defende o realismo13. De acordo com o filósofo, não há entre sujeito e objeto uma relação de causa e efeito, antes, “sujeito e objeto já precedem como primeira condição a qualquer experiência”. 14

Sendo assim, o mundo em toda sua ordenação, com suas leis e características nos aparece como tal devido às formas que constituem o que chamamos de sujeito do conhecimento. “O que existe para o conhecimento, portanto, o mundo inteiro, é tão-somente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação” 15

.

Uma vez que tudo o que existe, existe para um sujeito, esse sujeito torna-se o “sustentáculo do mundo”, e ao falarmos do mundo enquanto representação, falamos necessariamente destes dois elementos: sujeito e objeto. O conceito de representação (Vorstellung), portanto, conserva implicitamente as noções de sujeito e objeto, além das formas puras de espaço e tempo como condições da experiência.

A despeito disso, Schopenhauer opera um ajuste no que se refere à doutrina das categorias do entendimento apresentada por Kant em sua Crítica da Razão pura e

12 Ibidem, MVR II, p. 4. 13

O que Schopenhauer chama de realismo refere-se ao que, de modo geral, considera-se como Realismo empírico, o que sustenta a independência da existência das coisas e de suas qualidades em relação ao ato psíquico de conhecer. Janaway considera bastante problemáticas as críticas de Schopenhauer ao realismo. Pare ele, o idealismo de Schopenhauer só não constitui uma postura loucamente subjetivista (crazily

subjectivist) em virtude de sua aceitação da existência da coisa-em-si. Entretanto, para ele, a tese de

Schopenhauer sobre a relação entre os objetos empíricos e o nosso aparato sensorial tornar-se-ia “desastrosa sem a suposição de que as coisas em si mesmas causem um efeito sobre nossos órgãos” (JANAWAY, p.166).

14

Ibidem, MVR, p. 54.

(16)

conserva delas somente a de causalidade16. Isto porque o filósofo tem uma compreensão bastante diferente da de Kant no que se refere à função da faculdade de entendimento (Verstand). De acordo com Schopenhauer, após Kant ter considerado espaço e tempo isoladamente, afirmando que o conteúdo empírico da intuição, ou seja, o conteúdo que preenche o espaço e o tempo puros nos é dado, ele “salta” para a chamada “tábua dos juízos” onde estabelece os doze conceitos puros do entendimento. Com este salto ele passa a explicar toda a realidade com base naqueles conceitos, isto é, com base nas categorias. Além disso, Schopenhauer acusa Kant de jamais haver distinguido claramente o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato:

Após ele levar em consideração o conhecimento intuitivo só na matemática, negligencia por completo o conhecimento intuitivo restante, no qual o mundo se coloca perante nós, e atém-se tão somente ao pensamento abstrato; o qual, entretanto, recebe toda a sua significação e valor primeiro do mundo intuitivo, infinitamente mais significativo mais universal, mais rico em conteúdo que a parte abstrata de nosso conhecimento.17

Procedendo assim, Kant teria criado uma confusão entre a faculdade de entendimento e a razão. Tal confusão, no-lo diz Schopenhauer, explicar-se-ia também por Kant não haver investigado o que é em geral um conceito, o que o levou a falar de um “objeto da experiência”, que, segundo Schopenhauer, “não é a representação intuitiva, mas também não é o conceito abstrato, é diferente de ambos, e, no entanto, é os dois ao mesmo tempo, vale dizer, um completo disparate”18

.

A insistência de Schopenhauer em apontar as falhas da teoria kantiana indica-nos sua preferência pelo conhecimento intuitivo, isto é, aquele que pode ser imediatamente apreendido sem as voltas tortuosas da especulação. Kant trilha o caminho inverso, e é neste sentido que Schopenhauer aponta seu próton pseudos (erro fundamental):

“Nosso conhecimento”, diz Kant, “possui duas fontes, a saber, receptividade das impressões e a espontaneidade dos conceitos: a primeira é a capacidade de receber representações, a segunda a

16 Kant, no “Livro primeiro da analítica transcendental”, estabelece quatro grupos de categorias, cada um

contendo três, perfazendo um total de doze categorias. Schopenhauer, no apêndice ao Mundo como

vontade e como representação, intitulado “Crítica à filosofia kantiana”, afirma ser este conjunto de

categorias fruto do apreço de Kant à simetria, o que se revelou desnecessário, pois unicamente a categoria da causalidade serve ao entendimento.

17

Ibidem, p. 542 (Apêndice).

(17)

capacidade de conhecer um objeto por meio destas representações: pela primeira um OBJETO nos é dado, pela segunda ele é pensado”. Isso é falso: pois, do contrário, a IMPRESSÃO – unicamente para a qual possuímos mera receptividade, que portanto, vem de fora, e só ela seria propriamente “DADA” – seria já uma REPRESENTAÇÃO, sim, até mesmo um objeto. Mas a impressão não passa de uma mera SENSAÇÃO no órgão dos sentidos, e só pela aplicação do ENTENDIMENTO (isto é, da lei de causalidade) e das formas da intuição do espaço e do tempo é que o nosso INTELECTO converte essa mera SENSAÇÃO em uma REPRESENTAÇÃO.19

Note-se aqui que Schopenhauer aproxima a faculdade da sensibilidade da do entendimento, e de acordo com esta aproximação a intuição só se torna plenamente representação, “objeto-para-um-sujeito” (Objekt-für-ein-Subjekt), quando o entendimento atua sobre as impressões captadas, o que significa que as duas faculdades trabalham juntas. A lei de causalidade, única categoria mantida por Schopenhauer, é a responsável por organizar os dados captados pelo aparato sensorial. É a isto que Schopenhauer chama “representações intuitivas”.

Por outro lado, os conceitos constituem o domínio das representações abstratas. Não se trata mais da apreensão imediata de objetos perceptíveis aos sentidos, mas sim de abstrações formuladas pela razão a partir das representações intuitivas. Os conceitos, neste sentido, são representações de representações, pois “da mesma forma que o entendimento possui só UMA função, o conhecimento imediato da relação de causa e efeito (...) também a razão possui apenas UMA função, a formação de conceitos”. 20

Schopenhauer distingue, assim, as representações intuitivas das abstratas, isto é, dos conceitos. Fazendo isto, distingue também a função do entendimento e da razão, sendo a primeira a faculdade das representações intuitivas e a segunda a faculdade dos conceitos. A partir de então, Schopenhauer terá a preocupação de traçar sua filosofia por um caminho diferente do de Kant, pois não se guiará por conceitos, mas pelo conhecimento intuitivo, aquele que possui sua fonte no próprio mundo.

Com efeito, tendo bem assimilado a crítica kantiana, Schopenhauer afasta-se, mais que o próprio Kant, de especulações que levem a uma realidade transcendente, o que torna crucial compreender sua filosofia como um pensamento que tende a se haurir não só da experiência externa como também de uma experiência interna. Neste sentido é que ele afirma: “pode-se também dizer que o ensinamento de Kant propicie a intelecção

19

Ibidem, p. 551 (Apêndice).

(18)

de que o princípio e o fim do mundo devem ser procurados não fora dele, mas dentro de nós mesmos”. 21

Mesmo tributando a Kant este ensinamento, Schopenhauer o acusa de jamais ter examinado criticamente a “coisa-em-si”, e de ter concluído apressadamente que o fenômeno deve ter um fundamento que não é ele mesmo fenômeno, e que, portanto, não pertence a nenhuma experiência possível. 22Isto levou Kant a declarar a metafísica como uma tarefa completamente improfícua. Com efeito, nos Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência Kant põe em completo descrédito o que até então havia sido feito no âmbito da metafísica:

Atrevo-me a predizer que o leitor destes Prolegómenos, capaz de pensamento pessoal, não só duvidará da ciência que possuía até agora, mas de todo se convencerá subsequentemente de que semelhante ciência não poderá existir sem que se cumpram as condições aqui expressas, das quais depende a sua possibilidade; e, visto que isso nunca se fez, não temos ainda nenhuma metafísica.

Para Schopenhauer, no entanto, aquela concepção de metafísica conserva o equívoco dos filósofos dogmáticos, pois parte dos seguintes pressupostos:

Metafísica é ciência daquilo que está para além da possibilidade de toda experiência; 2) Uma tal coisa jamais pode ser encontrada segundo princípios fundamentais eles mesmos primeiro hauridos da experiência (Prolegômenos, § I): só aquilo que sabemos ANTES, portanto INDEPENDENTEMENTE DE toda experiência, pode alcançar mais do que a experiência possível; 3) Em nossa razão podem ser encontrados efetivamente alguns princípios fundamentais desse tipo.23

Kant divergiria dos filósofos dogmáticos unicamente no que se refere à natureza daqueles princípios fundamentais, ao afirmar que eles não são verdades eternas (aeternae veritates), mas apenas formas de nosso intelecto. No entanto, ele conserva a afirmação de que a metafísica jamais pode ser haurida da experiência, e para fundamentar tal afirmação “nada é invocado senão o argumento etimológico da palavra metafísica”. 24

21 Ibidem, p. 530 (Apêndice).

22 KANT, Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência, pp. 23-24. 23

SCHOPENHAUER, MVR, pp. 536-537 (Apêndice).

(19)

Schopenhauer defende, ao contrário, que uma investigação consistente da coisa-em-si não pode se basear naquela concepção de metafísica:

Digo, por isso, que a solução do enigma do mundo tem de provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo conhecimento; que, em consequência, a solução do enigma do mundo só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto certo, entre experiência externa e interna.25

Na filosofia schopenhaueriana é a justa conexão entre experiência externa e interna que torna possível a correta compreensão do problema com o qual a metafísica desde sempre havia se debatido, qual seja, o problema da coisa-em-si. Além disso, ao que parece, é a experiência em suas duas dimensões (externa e interna) que articula os dois lados do mundo, isto é, o mundo enquanto representação e enquanto Vontade, como veremos adiante.

Quanto à noção de experiência, são as representações intuitivas que compõem o que Schopenhauer entende por “experiência externa”. Ou seja, todo o mundo visível, apreendido pelos sentidos e ordenado pelo entendimento, em suma, o mundo como representação é que constitui a experiência externa. O espaço e o tempo puros, juntamente com a lei de causalidade são as condições de possibilidade desta experiência. Assim é que de acordo com o filósofo, só somos capazes de perceber a permanência dos objetos no mundo ao contrastá-los com a mudança de outros objetos coexistentes, o que significa depender do tempo enquanto intuição pura. Por outro lado, a percepção da coexistência de objetos exige a intuição do espaço, e o que liga estas duas intuições é a lei de causalidade, também inerente ao entendimento.

Interessante marcar as observações de Schopenhauer a respeito do papel dos sentidos e do cérebro na “composição” do mundo tal como este nos aparece enquanto representação intuitiva. Ele afirma serem os sentidos simplesmente as saídas do cérebro, por meio dos quais este recebe, em forma de sensação, o material de fora.26 Assim, à idealidade transcendental das formas puras da sensibilidade e da lei de causalidade, juntam-se as impressões captadas pelos sentidos para compor a experiência externa, que é, portanto, empiricamente condicionada pelo cérebro.

25

Ibidem, p. 538 (Apêndice).

(20)

Todo o vasto campo da experiência externa, do mundo enquanto representação intuível, é regido pela lei de causalidade, pois sendo o entendimento o correlato subjetivo da matéria27, a “primeira e mais simples aplicação, sempre presente, do entendi mento é a intuição do mundo efetivo. Este é, de fato, conhecimento da causa a partir do efeito”28

. Tal conhecimento figura como uma das aplicações do princípio de razão suficiente29, princípio que, de acordo com Schopenhauer, exprime uma regra a priori que fundamenta todo o nosso conhecimento. Este princípio consiste na ideia de que “nada é sem uma razão que faça com que algo seja ao invés de não ser”.30

É este princípio que nos autoriza a formular um “por que” para tudo que se apresenta diante de nossa percepção. Por se tratar de um aspecto importante de sua filosofia, passemos a uma breve elucidação deste princípio.

Em sua tese de doutorado, Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente, Schopenhauer empreende um rigoroso estudo daquele princípio. Reconhecendo-o como princípio cardeal de toda a ciência, analisa seu uso pelos filósofos que o antecederam e indica a má aplicação do princípio, resultado da falta de especificação de seus diferentes significados. Schopenhauer então levanta a tese de que o princípio de razão suficiente possui quatro raízes, sendo que cada uma se direciona a uma classe de objetos do mundo.

A primeira classe de objetos é justamente a das representações intuitivas, o mundo empírico, onde o princípio de razão se apresenta como lei de causalidade (causa e efeito). A segunda é classe das representações abstratas, ou seja, os conceitos, onde o princípio é aplicado como “princípio de razão do conhecer”. A terceira aplicação se volta às intuições puras e aos objetos matemáticos, em suma, à geometria e à aritmética, com suas relações todas baseadas no espaço e no tempo, respectivamente. Aqui o princípio é denominado como princípio de razão do ser.

27 Para Schopenhauer a essência da matéria é mudança, transformação, o que corresponde subjetivamente

à lei de causalidade inerente à nossa faculdade de entendimento. A concepção schopenhaueriana de matéria apresenta um singular cruzamento de materialismo e idealismo, pois como afirma Brandão: “é preciso não perder de vista que, se a lectio purissima sobre a matéria ensina a imaterialidade da matéria, que ela é um substrato lógico,meramente acrescentado pelo pensamento como o permanente dos fenômenos, há em contrapartida passagens em que ela parece, de fato, concreta” (BRANDÃO, p. 330.). Por isso, na obra de Schopenhauer a noção de matéria aparece ora como Materie (como substrato formal, como condição permanente, que permeia todos os fenômenos) e como Stoff (dados intuídos, matéria concreta).

28 Ibidem, p. 53.

29 Cf. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 553. (verbete Fundamento). 30

Ibidem, De la quadruple Racine du prinicipe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans une raison qui fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas).

(21)

A quarta raiz do princípio de razão suficiente, a raiz do agir, refere-se ao sujeito da volição e o princípio se aplica como “lei de motivação”. O sujeito da volição nada mais é que a vontade que habita em um indivíduo e sobre a qual um motivo agirá produzindo uma ação no mundo. Como nos explica o filósofo:

Cada vez que nós percebemos uma decisão, tanto no que se refere aos outros como para nós, nós nos julgamos autorizados a exigir um porque, o que significa que admitimos como necessário que haja algo de precedente, que tenha feito nascer esta decisão, e que nós chamamos razão, ou mais precisamente, o motivo da ação que se segue.31

O princípio de razão do agir, ou lei de motivação, guarda uma característica bastante especial, pois revela o que Schopenhauer entende por experiência interna. Segundo ele, quando afirmamos “eu quero” afirmamos uma proposição sintética, “precisamente: dada a posteriori pela experiência, aqui a experiência interna (isto é, somente no tempo)”.32

Adiante veremos como essa experiência interna se constituirá como pilar fundamental da metafísica de Schopenhauer. Por ora, consideremos apenas como a tese sobre o princípio de razão se aplica ao domínio das representações.

Com efeito, a tese defendida por Schopenhauer é a de que a forma do princípio de razão é determinada de modo a priori pelo nosso entendimento, e uma vez que este tem como correlato necessário a matéria, não é possível que o mundo nos apareça senão como submetido à uma ordem causal:

Todas as nossas representações são objetos para um sujeito, e todos os objetos para um sujeito são representações. Mas ocorre que todas as nossas representações estão vinculadas a uma regra cuja forma é determinável a priori, ligadas de tal forma que nada subsiste por si, nada é independente, nada que seja isolado e separado pode ser objeto para nós. É esta ligação que exprime, de forma geral, o princípio de razão suficiente.33

Seja qual for a figura do princípio de razão, sua forma essencial é apresentar-se como um tipo de causalidade. Todo o mundo como representação aparece-nos deste modo. Sendo assim, o mundo da representação pode ser apresentado como uma interminável cadeia de causas e efeitos, estando, por conseguinte, terminantemente submetido a uma ordem de necessidade, o que está diretamente ligado ao fato de o

31 Ibidem, p. 196. 32

Ibidem, pp. 194-195.

(22)

princípio de razão suficiente ser dado de forma a priori em nosso intelecto. Ele é, portanto, o suporte de toda necessidade:

Existe, pois, uma quádrupla necessidade, correspondente às quatro formas do princípio de razão: 1º) a necessidade lógica, em virtude do princípio do conhecer, que faz com que, admitidas as premissas, não se possa recusar a conclusão; 2º) a necessidade física, correspondente à lei de causalidade, e em virtude da qual uma vez apresentada a causa o efeito não pode faltar; 3º) a necessidade matemática, correspondente ao princípio de razão do ser, e em virtude da qual qualquer informação enunciada por um teorema geométrico verdadeiro é tal como ele se expõe e todo cálculo exato é irrefutável; 4º) a necessidade moral, em virtude da qual todo homem, todo animal, quando o motivo se apresenta, é forçado a executar a ação que, unicamente, convém ao seu caráter inato e imutável.34

Sendo o mundo completamente condicionado pela causalidade e regido pela necessidade, todo e qualquer evento que nele ocorrer terá sua explicação em um outro evento que o antecedeu e em relação ao qual apresenta-se como consequência necessária. É o que afirma Schopenhauer ao comentar sobre as categorias de modalidade:

Na natureza, como representação intuitiva, tudo o que acontece é necessário, pois procede de uma causa. Se, contudo, observamos este acontecimento singular em sua relação a todo o resto que não é sua causa, reconhecemo-lo como contingente: isto, entretanto, já é uma reflexão abstrata. Se, ainda abstrairmos de um objeto da natureza sua relação causal com tudo o mais portanto sua necessidade e sua contingência, então tal conhecimento compreende o conceito de real (...) Ora, como na natureza tudo procede de uma causa, todo REAL é também NECESSÁRIO.35

Toda a revisão crítica que Schopenhauer faz da filosofia kantiana leva-o a comungar com a tese de que o mundo é representação de um sujeito, e que o mesmo mundo é regido pela lei de causalidade, portanto, pela necessidade. Isto o levará a enfrentar, assim como Kant o fez, o problema surgido da contradição entre necessidade e liberdade. Tal problema surge da (aparente) incompatibilidade entre a necessidade que rege os eventos do mundo, nos quais se incluem as ações humanas, e a ideia de liberdade.

Na Crítica da razão pura este problema se apresenta na terceira antinomia da razão, na qual Kant expõe uma tese e uma antítese. Como tese Kant expõe a ideia de

34

Ibidem, p. 208.

(23)

que “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única a partir da qual os fenômenos do mundo possam ser derivados em conjunto”,36

sendo, pois, necessário admitir uma causalidade “mediante a liberdade” 37

. A prova desta tese sustenta-se na clássica concepção de que é necessário um primeiro início da série de fenômenos, e que este início só pode ser concebido como algo independente e espontâneo. Em suma, tal prova nos remete à ideia de um primeiro motor.

A antítese, por sua vez, afirma que “não há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo leis da natureza”,38

sendo a suposta liberdade transcendental nada mais que um “vazio ente do pensamento”. No fim das contas, a ilusão da liberdade serviria apenas para tranquilizar o entendimento, mas entraria em contradição com a cadeia de causas, segundo a qual unicamente a experiência de mundo é possível ao sujeito.

Na terceira parte da seção nona da antinomia da razão pura, intitulada “Solução das ideias cosmológicas da totalidade da derivação dos eventos cósmicos a partir de suas causas”, Kant trabalha de modo detalhado a contradição aparente entre a liberdade e a causalidade da natureza, e a conclusão a que ele chega é a de que a causalidade do mundo empírico não entra em conflito com a liberdade, entendida esta como uma ideia transcendental.

Kant entende por liberdade a “faculdade de iniciar espontaneamente um estado”, 39

o que faz da ideia de liberdade uma ideia transcendental pura, já que na experiência nada se pode observar com tal propriedade. Todo e qualquer estado que observamos decorre necessariamente de um estado anterior que lhe serve de causa. Kant retira então a liberdade do plano fenomênico e transfere-a para o plano da coisa-em-si, entendendo-a como entendendo-algo que não se submete entendendo-ao condicionentendendo-amento do mundo empírico. Em suentendendo-as palavras:

Com efeito, se os fenômenos são coisas em si mesmas, então não é possível salvar a liberdade. Neste caso, a natureza é a causa completa e suficientemente determinante em si de todo evento; a condição deste último está sempre contida somente na série dos fenômenos que, juntamente com seu efeito, são necessários de acordo com a lei natural. Ao contrário, se os fenômenos por nada mais são tomados do que por aquilo que de fato são, ou seja, por meras representações interconectadas segundo leis empíricas e não por coisas em si, então

36 KANT, Crítica da razão pura, p. 232. 37 Ibidem, p. 271.

38

Ibidem, p. 232.

(24)

eles mesmos tem que ter fundamentos que não são fenômenos. No que tange à sua causalidade, no entanto, uma tal causa inteligível não é determinada por fenômenos (...) Ela está, pois, juntamente com a sua causalidade, fora da série, ao passo que os seus efeitos são encontrados na série das condições empíricas.40

Kant estabelece aqui uma distinção que será retomada por Schopenhauer posteriormente, a saber: a distinção entre caráter empírico e caráter inteligível dos objetos, sendo “inteligível” “aquilo que num objeto dos sentidos não é propriamente fenômeno”,41

ou seja, o caráter inteligível seria aquela “causa” que não pertence à causalidade natural, não estando, assim, submetida às condições da experiência. Kant considera, portanto, os objetos em dois planos distintos que se complementam: o plano da causalidade natural, cujas causas se referem à ordem empírica, que determina o mundo da experiência; e o plano da coisa-em-si, ao qual se refere o caráter inteligível e a causalidade a partir da liberdade.

Schopenhauer reconhece que é neste ponto que a filosofia de Kant toca a sua, pois é nele que Kant aponta de modo mais preciso o que deve ser considerado, ou ao menos o que podemos supor, como sendo a coisa-em-si. Schopenhauer, entretanto, discordará radicalmente de seu mestre no que tange à fundamentação desta doutrina, pois enquanto Kant alça a razão ao posto de “incondicionado”, indicando-a como algo que está além da ordem dos fenômenos, Schopenhauer indicará a Vontade como a coisa-em-si e unicamente a ela atribuirá a característica da liberdade. O ponto central da diferença entre Kant e Schopenhauer no que tange ao caráter inteligível42 é que o último “recusa a dedução do caráter inteligível como fundamento do sensível através da utilização da categoria de causalidade além de todo fenômeno”,43

pois Kant entende o caráter inteligível como uma causa que não é fenômeno, muito embora reconheça que a categoria de causalidade (donde extraímos o conceito de “causa”) só possa ser aplicada aos fenômenos.

De fato, Kant assume que o fundamento último dos fenômenos, não pode ele mesmo ser um fenômeno, já que estaria necessariamente fora das condições da sensibilidade e da cadeia de causas naturais, não sendo, pois, algo determinado, mas sim livre. Para encontrar este fundamento que se situa fora do mundo fenomênico, Kant recorre a uma faculdade exclusiva do homem. Afirma assim que:

40 Ibidem, p. 273. 41 Ibidem, p. 274. 42

No terceiro capítulo aprofundaremos a concepção schopenhaueriana de caráter inteligível.

(25)

Exclusivamente o homem, que de outra maneira conhece toda a natureza somente através dos sentidos, se conhece a si mesmo também mediante uma pura apercepção, e isto em ações e determinações internas que ele de modo algum pode contar como impressões dos sentidos.44

Deste modo, o homem não se resume somente a um dado empírico, mas a ele compete também uma dimensão inteligível. De acordo com Kant, esta parte inteligível do homem se manifesta na razão (considerando aqui o que Kant entende por razão prática), e unicamente através dela se torna possível a liberdade, pois uma vez que a razão não é um fenômeno, ela não está submetida às condições de sensibilidade, permanecendo assim imune àquela sucessão temporal observável no mundo dos fenômenos. Assim, a razão seria a sede de uma causalidade diferente daquela do mundo natural; uma causalidade segundo a liberdade, que se constituiria como condição das ações do arbítrio humano. Para Kant, “cada ação consiste no efeito imediato do caráter inteligível da razão pura, a qual, portanto, age de um modo livre sem estar dinamicamente determinada, na cadeia das causas naturais”.45

Kant afirma, ainda, que são os imperativos da razão que nos mostram como esta age de modo livre, iniciando espontaneamente uma ordem de causalidade que em tudo se diferencia do mundo natural. Segundo ele, o fundamento de uma ação natural é sempre um fenômeno, por outro lado, “o dever [a ação por dever] expressa um tipo de necessidade e de conexão com fundamentos que não ocorre alhures com toda a natureza”,46 pois a ação por dever47 tem como fundamento não um fenômeno, mas um conceito. A solução dada por Kant à antinomia necessidade – liberdade será sistematicamente criticada por Schopenhauer.

A faculdade da razão, de acordo com Schopenhauer, nada mais é do que a faculdade que o homem possui de elaborar conceitos a partir das representações intuitivas, sendo assim os conceitos representações de segunda ordem. De modo algum a razão constitui uma causa inteligível, muito menos podemos sustentar semelhante tese com base na lei de causalidade, que é o que Kant faz ao afirmar que a razão causa, ainda

44 KANT, Crítica da razão pura, p. 277. 45 Ibidem, p. 280.

46

Ibidem, p. 278.

47 De acordo com Kant, “embora muitas das coisas que o dever ordena possam acontecer em

conformidade com ele, é contudo ainda duvidoso que elas aconteçam verdadeiramente por dever e que

tenham portanto valor moral.” (KANT, p. 119.). Sendo assim, somente a ação por dever possui valor moral, pois a ação conforme o dever possui uma relação meramente acidental com o mesmo.

(26)

que inteligivelmente, as ações do arbítrio humano. Schopenhauer assim se posiciona a este respeito:

Pois, com certeza, aplicamos completamente a priori a lei de causalidade, antes de qualquer experiência, às mudanças sentidas em nossos órgãos sensórios. Mas exatamente por isso tal lei é de origem subjetiva, igual a essas sensações mesmas e, por conseguinte, não conduz à coisa-em-si. A verdade é que, pelo caminho da representação, jamais se pode ir além da representação. Esta é um todo fechado e não tem, em seus próprios recursos, um fio condutor para a essência da coisa-em-si, toto genere, diferente dela.48

Para Schopenhauer, a coisa-em-si deve ser procurada em nós mesmos, mas não na razão. Em vez disso, ele a encontrará tendo como referência o corpo, pois é na experiência imediata do próprio corpo que reconhecemos intuitivamente algo que não é mais representação. A despeito de ser um objeto entre outros, no corpo manifesta-se a vontade, algo que escapa às formas do mundo fenomênico.

O corpo nos é dado de duas maneiras distintas: como representação do entendimento, e como “aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE”. 49

Veremos que a solução dada por Schopenhauer à antinomia necessidade – liberdade deverá ser compreendida com base em sua metafísica da vontade, uma metafísica imanente, que encontra a essência do mundo não em uma “além da experiência”, como queriam os metafísicos dogmáticos, mas numa experiência interna e imediata, dada no próprio corpo e livre dos recursos especulativos da filosofia kantiana. A metafísica da Vontade mostrará que, enquanto o mundo como representação se apresenta dentro de uma ordem causal, a Vontade, enquanto coisa-em-si, age de modo absolutamente livre.

Até aqui nossas considerações se voltaram predominantemente ao mundo enquanto representação, ou seja, buscamos compreender tudo o que existe na medida em que é objeto para um sujeito. Nesta relação identificamos formas e princípios universais que tornam possível toda e qualquer experiência, assim como estabelecem as condições e os limites de nosso conhecimento do mundo. A necessidade que rege o mundo apresentou-se, assim, como decorrente do princípio de razão suficiente, princípio último de todo o conhecimento, que de maneira simples se expressa na ideia

48

SCHOPENHAUER, MVR, p. 625 (Apêndice).

(27)

de que, dada uma causa, um efeito aparecerá necessariamente, o que indica porque sempre explicamos qualquer aspecto da realidade com base em estados antecedentes.

Neste sentido, todos os objetos do mundo estariam circunscritos aos limites da representação. No entanto, em um desses objetos Schopenhauer identifica algo que escapa por completo aos limites da representação, não por qualquer tipo de transcendência, mas por manifestar organicamente uma característica de todo diferente dos demais objetos. Trata-se do corpo, que é chamado por Schopenhauer de “objeto imediato” 50

, pois diferente dos demais objetos ele nos é conhecido imediatamente, constituindo-se como o próprio ponto de partida para toda a intuição do mundo.

Portanto, se por um lado todo indivíduo pode tomar-se a si como sujeito do conhecimento, pode perfeitamente também reconhecer-se como um corpo que quer, ou seja, um corpo no qual habita uma vontade. O indivíduo, assim, se enraíza no mundo e tem sempre como experiência primeira a experiência do próprio corpo, sendo esta, pois, o ponto de partida para o mundo como representação. O corpo, neste sentido, é o estreito limite entre o mundo enquanto representação e aquilo que não é mais representação, mas a própria coisa-em-si: a Vontade. Prova disso é que entre qualquer ato volitivo e a atividade do corpo não podemos entrever o mesmo nexo causal que se observa nos demais fenômenos. Decerto o movimento do corpo chega à nossa intuição empírica, isto é, à nossa faculdade de representação. Todavia, ele é ao mesmo tempo sentido de modo imediato em nosso corpo como um ato da vontade. Neste sentido é que Schopenhauer afirma:

Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também um movimento de seu corpo. Ele não pode realmente querer o ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento corporal. O ato da vontade e a ação do corpo não são dois estados diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendimento.51

Mesmo se assumirmos que a vontade52 provoca as ações, este conhecimento só chega posteriormente à nossa intelecção, pois no ato corporal em si, pulso (da vontade)

50 Ibidem, p. 157. 51 Ibidem, p. 157. 52

A vontade (com “v” minúsculo) indica a atuação individual, particularizada, da Vontade (com “V” maiúsculo), que Schopenhauer considera como a coisa-em-si.

(28)

e ação (do corpo) são uma única e mesma coisa, e não podem ser distinguíveis como são distinguíveis, por exemplo, o riscar do palito de fósforo e a combustão.

O reconhecimento de algo que não é representação por meio daquilo que, por um lado, é representação, ou seja, a manifestação da vontade através do corpo, leva Schopenhauer a denominar o corpo tanto de “objeto imediato”, do ponto de vista da representação, como de “objetidade da vontade” 53

, do ponto de vista da coisa-em-si. “Por isso, em certo sentido, também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade”. 54 A partir, então, do reconhecimento imediato da vontade no corpo Schopenhauer começa a formular sua metafísica imanente.

Se o mundo enquanto representação fora mostrado como sendo o reino da necessidade, em virtude da lei de causalidade ser sua forma intrínseca, a liberdade será demonstrada como atributo exclusivo da coisa-em-si, isto é, da Vontade. Somente ela, como veremos, não está submetida à necessidade que rege o mundo fenomênico.

Destarte, a solução dada por Schopenhauer à antinomia em questão será completamente diferente daquela oferecida por Kant. Esta diferença trará consequências que serão notadas, talvez, de modo mais explícito, na ética descritiva de Schopenhauer, que será discutida no segundo capítulo.

1.2- A metafísica da Natureza enquanto fundamento de uma ética descritiva

A apropriação da epistemologia kantiana, a despeito das correções que nela Schopenhauer opera, garante que, do ponto de vista gnosiológico, dentro da relação sujeito-objeto, o mundo é representação; representação limitada pelas formas dadas a priori no sujeito.

Schopenhauer, no entanto, se questiona se o mundo nada é além de representação, ou seja, se aquilo que chamamos de “mundo” possui algum significado ou conteúdo que possa ser conhecido ou pensado fora das formas que condicionam nosso entendimento, pelo que o mundo seria algo mais que uma mera virtualidade

53 Schopenhauer cria um neologismo “objetidade” (Objektität) para enfatizar o caráter de imediatez do ato

da vontade que é anterior aos fenômenos comuns dados no entendimento.

(29)

decorrente de nossa atividade cerebral. O que o filósofo faz, portanto, é levar à frente uma investigação metafísica baseada num rigoroso exame epistemológico.

O conhecimento que é produto do entendimento apresenta o mundo como um conjunto de objetos ordenados. Toda ciência em sentido estrito tem como base e limite o modo de apreender o mundo que é próprio ao entendimento, que é, por sua vez, complementado pela razão quando da elaboração abstrata daquilo que fora apreendido pela percepção.

Schopenhauer argumenta, neste sentido, que a ciência não pode alcançar aquele conhecimento que agora passa a ser requerido, ou seja, não pode nos dizer nada a respeito de se o mundo é algo além de representação. A matemática, por exemplo,

fornece da maneira mais precisa o quão-muito e o quão-grande. No entanto, estes são sempre relativos, isto é, a comparação de uma representação com outras, e em verdade apenas do ponto de vista unilateral da quantidade; de modo que por aí não obtemos a informação capital que procuramos55

Com efeito, a matemática, como é apresentada na tese sobre o princípio de razão56fundamenta-se por completo no tempo e espaço puros, trabalhando assim unicamente com representações advindas das relações espaço-temporais, de modo que, sem estas intuições puras a matemática seria impossível.

Já as chamadas ciências naturais, Schopenhauer as classifica em dois grandes campos: morfologia, quando se trata da descrição de figuras, isto é, de seres da natureza; e etiologia quando se trata da explanação das mudanças que ocorrem na natureza. A primeira é denominada também como “história natural”, à qual pertencem, por exemplo, botânica e zoologia, que “nos ensinam a conhecer, em meio à mudança incessante dos indivíduos, diversas figuras orgânicas permanentes”.57Ao passo que a etiologia compreende todas as ciências que possuem como fundamento principal o conhecimento de causa e efeito. São aquelas que “ensinam como, em conformidade com uma regra infalível, a UM estado da matéria se segue necessariamente outro bem definido (...) Aqui se incluem sobretudo a mecânica, a física, a química, a fisiologia”.58

A ciência natural chega em seu limite à conclusão de que existem certas forças naturais possíveis de serem identificadas nos mais diversos fenômenos, e que tais forças 55 Ibidem, p.152. 56 Cf. §§ 35-39 da referida obra. 57 Ibidem, p. 152. 58 Ibidem, p. 153.

(30)

se exteriorizam segundo uma lei natural. Todavia, para a explicação etiológica “a força mesma que se exterioriza, a essência íntima dos fenômenos que aparecem conforme aquelas leis, permanece um eterno mistério”.59O que a ciência chama, portanto, de “força natural”, serve como pressuposto explicativo para a ocorrência de um determinado fenômeno no mundo, sendo tal fenômeno a comprovação de que aquela força subjaz, latente, e pronta para se manifestar assim que se formem as condições propícias. Contudo, a explicação para a força mesma, ou seja, dizer de onde vem, e por que aquela força existe e atua como tal, eis algo que está acima do poder de explicação das ciências naturais, algo que, embora apareça fisicamente parece ter um fundamento de ordem não física, que transcende o método da ciência, baseado na lei de causalidade. E é justamente em busca daquele fundamento que Schopenhauer estende sua filosofia: “Decerto aquilo pelo que perguntamos é algo, em conformidade com sua essência, totalmente diferente da representação, tendo, pois, de subtrair-se por completo às suas formas e leis. Nesse sentido, não se pode alcançá-lo a partir da representação”. 60

A resposta para a questão que o filósofo propõe não deverá ter como base o princípio de razão, uma vez que este pressupõe o espaço e o tempo, e, por conseguinte, diz respeito somente ao que é representação. Como afirmamos acima, a resposta tomará como base o corpo, pois a despeito dele poder ser considerado um objeto como outro qualquer é através dele que reconheço que, além de representação, sou vontade. Schopenhauer, portanto, identifica no corpo a chave para o enigma do mundo:

De fato, a busca da significação do mundo que está diante de mim simplesmente como minha representação (...) nunca seria encontrada se o investigador, ele mesmo, nada mais fosse senão puro sujeito que conhece (cabeça de anjo alada destituída de corpo). Contudo, ele mesmo se enraíza neste mundo, encontra-se nele como INDIVÍDUO, isto é, seu conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro como representação, é no todo intermediado por um corpo.61

Safranski observa que, ao encontrar no próprio corpo a resposta metafísica, Schopenhauer não nos remete a um autoconhecimento no sentido moral tradicional, tampouco endossa a idéia de autoconhecimento comum à filosofia reflexiva, antes procura “transformar a experiência da vontade agindo no interior de seu próprio corpo

59 Ibidem, p. 154. 60

Ibidem, p. 155.

(31)

em um meio para compreender essa totalidade do mundo” 62

. Assim, o corpo enquanto objetidade da Vontade (Objektität des Willens) é anterior à representação, dado que sem ele nenhuma representação, nenhum mundo, poderíamos dizer, nos seria possível. Sua constituição orgânica e funcional, incluindo o próprio órgão que nos apresenta o mundo tal como o percebemos, a saber, o cérebro, é o que permite o aparecimento posterior da representação. “Porque primariamente ele [o mundo] é representação da percepção e enquanto tal é um fenômeno do cérebro”.63

A vontade, assim, se mostra no corpo no conjunto de todas as suas funções, desde as mais primárias e inconscientes até o aparecimento da razão. Além do que, afirma Schopenhauer: “a identidade do corpo com a vontade também se mostra, entre outras coisas, no fato de que todo movimento excessivo e veemente da vontade, isto é, cada afeto, abala imediatamente o corpo e sua engrenagem interior”. 64

A vontade se apresenta ao indivíduo através do seu próprio corpo como uma força de ordem metafísica que o anima e que mantém aceso o pulso da vida até seu último lampejo. Como um sopro que fizesse iniciar o funcionamento de todos os órgãos, a vontade é a base da qual dependem todos eles, “a natureza da vontade, por outro lado, não é dependente de nenhum órgão, e não é para ser prognosticada por nenhum deles” 65

. De acordo com Janaway, a tese de Schopenhauer sobre a primazia da vontade envolve sua concepção do corpo como algo essencialmente dado ao esforço (striving) e intimamente ligado à ação66.

Esta identidade do corpo com a vontade inverte a canônica concepção segundo a qual a vontade seria uma função submissa à racionalidade, um mero fenômeno psicológico. À medida que o corpo, locus da vontade, torna-se a chave para a interpretação de todo o mundo, o conhecimento racional, reflexivo, não deve mais ser considerado como a única nem como a principal fonte de todo nosso conhecimento da realidade.

O primeiro passo na compreensão fundamental de minha metafísica é que a vontade que encontramos dentro nós não procede antes de tudo, como a filosofia previamente assumiu, do conhecimento; que ela, de fato, não é uma mera modificação do conhecimento, não é algo secundário, derivado, e como o conhecimento em si mesmo,

62

SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p. 367.

63 SCHOPENHAUER, MVR II, p. 245 64 Ibidem, MVR, 159.

65

Ibidem, MVR II, p. 246.

(32)

condicionado pelo cérebro; mas que ela é o prius do conhecimento, o cerne de nosso verdadeiro ser. A vontade é aquela força nela mesma primária e original, que forma e mantém o corpo animal, no qual carrega tanto as funções inconscientes quanto as conscientes.67

Antes de tudo sou um corpo no qual habita algo que não conheço de um modo se quer comparável aos objetos que compõem o mundo. Não obstante, é o que me faz tomar a mim mesmo como o que há de mais real. Uma vez me reconhecendo como tal, ou tomarei a mim como a única coisa verdadeiramente “real”, sendo, assim, todo o mundo à minha frente uma simples representação desprovida de conteúdo, ou julgarei que a essência que conheci em mim, através de meu corpo é a mesma que engendra e sustenta todo o mundo.68

Com efeito, para o filósofo a diferença entre meu corpo e os demais objetos do mundo reside tão somente no modo como conheço aquele, dada a dupla relação que com ele se estabelece, ou seja; ao mesmo tempo conheço-o como uma representação qualquer e como algo inteiramente distinto, como vontade. Afora esta relação, todos os outros fenômenos que compõem a natureza são produtos da Vontade e têm nela a mesma essência.

Schopenhauer desconsidera o que ele chama de egoísmo teórico, isto é, a concepção de que, com exceção do próprio indivíduo, todos os fenômenos do mundo são meros fantasmas69. Esta concepção que, segundo ele, é a “última fortaleza do ceticismo”, pode muito bem ser considerada como “um pequeno forte de fronteira, que não se pode assaltar, mas do qual a guarnição nunca sai, podendo-se, por conseguinte, passar por ele e dar-lhe as costas sem perigo”.70

Do mesmo modo, pois, que sou representação e vontade, o mundo que é representação também é vontade. Nisto reside o núcleo do argumento analógico de Schopenhauer71, que une o eu e o mundo numa só essência:

O duplo conhecimento, dado de dois modos por completo heterogêneos e elevado à nitidez, que temos da essência e fazer-efeito de nosso corpo, será em seguida usado como uma chave para a

67 SCHOPENHAUER, MVR II, p. 293. 68 Ibidem, MVR, p. 161.

69 No sentido em que os estoicos empregavam a palavra “fantasma”: produto da imaginação, a imagem

que o pensamento forma por conta própria. Cf. Abbagnano, p. 620. (Imagem).

70 Ibidem, p.162.

71 O argumento analógico de Schopenhauer comporta uma analogia no sentido de “extensão provável do

conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações diversas”. (ABBAGNANO, p. 58).

(33)

essência de todo fenômeno da natureza. Assim, todos os objetos que não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas apenas como representação na consciência, serão julgados exatamente conforme analogia com aquele corpo. Por conseguinte, serão tomados, precisamente como ele, de um lado como representação e, portanto, nesse aspecto, iguais a ele; mas de outro (...) conforme sua essência íntima, tem de ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós VONTADE.72

Poderíamos apontar, com Marcos Silva, as falhas que o argumento analógico de Schopenhauer possui do ponto de vista lógico. De acordo com ele, “é intuitivo que porque A se assemelha a B em uma qualidade ou porção específica, grande ou pequena, não se segue, necessariamente que A e B tenham outras propriedades e/ou relações em comum”. 73

De fato, o argumento de Schopenhauer não exclui a possibilidade de o mundo possuir uma outra essência diferente daquela reconhecida no corpo. Não obstante, há de se considerar que sua filosofia tem como característica marcante a de seu haurir do conhecimento intuitivo, buscando sempre suas bases na experiência concreta para em seguida buscar uma adequação em conceitos abstratos. Tanto é que “Schopenhauer tenta suprir a deficiência do argumento analógico com exemplos e observações tomadas do compendio naturalista e de suas observações empíricas para compor uma evidencia que corrobore”,74

bem como apresenta confirmações de seu pensamento através de pesquisas científicas na obra Sobre a vontade na natureza.

Como afirma Brandão, se há uma extensão da Vontade, enquanto essência do mundo, para todos os fenômenos a partir de um ponto de vista subjetivo, “a contrapartida deve ser verdadeira também; ou seja, é preciso também explicar as demais representações a partir de um ponto de vista objetivo”.75

Por isso a preocupação de Schopenhauer em mostrar que vários estudos de fisiologia, anatomia, magnetismo, entre outras ciências naturais da época, que seguem o caminho da pura experiência em suas investigações, chegam ao mesmo ponto que sua filosofia havia estabelecido como metafísica.76

Nesse sentido, se por um lado a lógica enquanto ciência puramente abstrata não garante a necessidade formal da tese de Schopenhauer, por outro lado a mesma tese se mune de confirmações empíricas. Trata-se, portanto, de algo que nem só a lógica nem a

72 Ibidem, p. 163. 73

SILVA, On analogical arguments: Organizing logical and conceptual problems in sections 18 and 19

of Schopenhauer’s The World as Will and Representation, p. 188.

74 Ibidem, p. 195. 75

BRANDÃO, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p. 229.

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