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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO MARÍLIA FORMOSO CAMARGO A FUNÇÃO PÓS-SOCIAL DA PROPRIEDADE

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO

MARÍLIA FORMOSO CAMARGO

A FUNÇÃO PÓS-SOCIAL DA PROPRIEDADE

SÃO PAULO 2017

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MARÍLIA FORMOSO CAMARGO

A FUNÇÃO PÓS-SOCIAL DA PROPRIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em direito.

Orientador: Professor Osny da Silva Filho

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO

SÃO PAULO 2017

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MARÍLIA FORMOSO CAMARGO

A FUNÇÃO PÓS-SOCIAL DA PROPRIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em direito.

Orientador: Professor Osny da Silva Filho

Aprovado em: __/__/_____

Banca Examinadora

______________________________________

______________________________________

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Resumo

Este trabalho tem como objetivo demonstrar que o direito de propriedade não está somente centrado no cumprimento das vontades individuais de seu proprietário ou na função social da propriedade. É possível afirmar que a propriedade deve ir além destes “desígnios” já traçados anteriormente pela doutrina. Assim, trata-se de afirmar a existência de uma função pós-social da propriedade, baseada na concepção de direitos humanos, proteção de minorias e reconhecimento de identidades. Este novo olhar para a propriedade – pós-social – está baseado na diferenciação do pensamento jurídico a partir de três diferentes modelos: um modelo essencialmente clássico e individualista, um modelo de pensamento jurídico social e um modelo pós-social marcado pela consideração de direitos fundamentais individuais e direitos humanos. As diferentes formas de pensamento jurídico, por sua vez, podem ser encontradas e adequadas à disciplina da propriedade. Vários instrumentos jurídicos exemplificativos mostram que a propriedade é constantemente transformada para cumprir parâmetros individualistas, sociais e pós sociais.

Palavras chave: Direito de propriedade. Propriedade. Função social da propriedade. Função pós-social da propriedade.

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Abstract

This project aims to demonstrate that the right of property is not only centered on the fulfillment of the individual wills of its owner or on the social function of the property. It is possible to state that the property must go beyond these "designs" traced earlier by doctrine. Thus, it is a question of affirming the existence of a post-social function of property, based on the conception of human rights, protection of minorities and recognition of identities. This new view of the property - post-social - is based on the differentiation of legal thinking from three different models: an essentially classic and individualist model, a social legal thinking model and a post-social model marked by the consideration of fundamental rights, individual rights and human rights. The different forms of legal thought, in turn, can be found and appropriate to the discipline of property. Several exemplary of legal instruments show that property is constantly transformed to meet individualist, social and post social parameters. Key words: Property law. Property. Social function of property. Post-social function of property.

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SUMÁRIO

1. Introdução ... 9

2. As três globalizações do pensamento jurídico ... 11

2.1. O pensamento jurídico clássico ... 11

2.2. O pensamento jurídico social ... 13

2.3. O pensamento jurídico pós-social ... 14

3. Do pensamento jurídico à disciplina da propriedade ... 18

3.1. A concepção individualista da propriedade ... 18

3.2. Pensamento social: a propriedade-função social ... 21

3.3. A propriedade-função pós-social ... 30

4. Conclusão ... 39

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Em todos os pontos da cidade, alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem.

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1. Introdução

O objetivo deste trabalho é dar sentido às transformações vivenciadas pelo direito de propriedade. A propriedade tem papel fundamental na constituição da sociedade e dos indivíduos. Assim, é de primordial importância adequá-la às diferentes demandas econômicas, sociais e culturais e inseri-la nas transformações vivenciadas pelo pensamento jurídico.

Os fundamentos destas transformações vivenciadas pelo direito consistem em três grandes e diferentes fases do pensamento jurídico. Duncan Kennedy, teórico americano, sistematizou de forma clara e articulada estas três fases, diferenciando-as entre o pensamento jurídico clássico, o pensamento jurídico social e o pensamento jurídico pós-social.

O enfoque principal do trabalho, entretanto, está em evidenciar como a propriedade pode ser adequada à terceira fase pós-social do pensamento jurídico. Até o presente momento, muito se falou em princípio da função social da propriedade. Porém, algumas evidências normativas demonstram que a propriedade também pode seguir funções pós-sociais. Como será visto, a função pós-social da propriedade está alicerçada em concepções fundamentais de direitos humanos, identidades e reconhecimento de minorias.

Trata-se de sistematizar um tipo de propriedade com função pós-social que não havia sido articulada até o presente momento. Não consiste em uma construção necessariamente recente acerca da disciplina da propriedade, mas de uma forma inédita de interpretá-la. Quanto à função pós-social da propriedade, será dada relevância a instrumentos jurídicos exemplificativos do direito brasileiro.

Para tanto, o próximo capítulo tratará de maneira sintética os principais elementos marcantes de cada uma das fases do pensamento jurídico e do direito. Será possível perceber as principais diferenciações entre uma fase e outra, de acordo com as propostas de Kennedy.

Posteriormente, o exercício será o de adequar a disciplina da propriedade em cada uma das grandes fases propostas incialmente. A propriedade acompanhou e acompanha as diversas transformações do direito, inclusive no que tange ao pensamento jurídico pós-social.

Por fim, salienta-se que as três fases do pensamento jurídico e do direito não possuem uma formação estanque ou limitada a um período de tempo. É possível perceber que vários instrumentos jurídicos possuem elementos marcantes de mais de uma fase e, ainda, que

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alguns instrumentos jurídicos recentes estão ainda fundados nas primeira fase do pensamento jurídico.

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2. As três globalizações do pensamento jurídico

O pensamento jurídico passou por transformações profundas desde a metade do século XIX. Estas transformações se revertem em diferentes modos de se interpretar os objetivos do direito, visto que este orientou e orienta as sociedades modernas e pós-modernas.

As transformações das instituições e dos conceitos que envolvem a forma de pensar o direito podem ser divididas em três grandes fases. Duncan Kennedy as chama de “três globalizações do direito e do pensamento jurídico”1. Kennedy tenta explicar as mudanças e

transformações de um pensamento jurídico que nasceu essencialmente individualista, passou por uma fase socialmente orientada e atingiu, já em meados do século XX e início do século XXI, a função de coordenar direitos humanos e direitos fundamentais com categorias tradicionais do campo jurídico.

Estes três diferentes modelos propostos por Kennedy se consolidaram no Ocidente a partir dos diversos contextos econômicos, políticos e sociais que exigiram do direito e dos profissionais do direito interpretações e mecanismos jurídicos que se adequassem às necessidades de cada época. Assim, o direito é formado e transformado também para se adequar às mudanças trazidas em cada tempo e de acordo com as demandas de cada povo em particular.

Embora a proposta de Kennedy demonstre transformações do pensamento jurídico que vieram de maneira sucessiva, ele também identifica que é possível a sobreposição desses modelos em um único momento. Vejamos no capítulo seguinte como tal sobreposição vale especialmente para o caso brasileiro.

2.1. O pensamento jurídico clássico

Kennedy chama a primeira fase, predominante entre 1850 e 1914, de “Pensamento Jurídico Clássico”. Esta primeira globalização tem como aspectos principais a concepção individualista de direitos. O individualismo neste momento está centrado nas diferenciações entre direito privado e público, nas quais prevalecem as relações privadas sobre as públicas.

1 Duncan Kennedy apresenta, de forma clara

e sistemática, as três fases do pensamento jurídico em um artigo nomeado “Three globalizations of law and legal thought: 1850 – 2000”, publicado em 2006 dentro de um livro chamado The new and economic development: a critical appraisal”.

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Ademais, o formalismo proporcionado pelas regras jurídicas, o positivismo e a dedução das normas foram capazes de trazer o caráter liberal para o centro da regulação jurídica neste primeiro momento.

A predominância do direito privado na primeira globalização do pensamento jurídico é percebida no desenvolvimento das relações jurídicas essencialmente privadas como o direito contratual, o direito de propriedade e da responsabilidade civil. Dentro de tal contexto jurídico, o direito público e o próprio direito internacional ocuparam pouco ou nenhum espaço. Isto porque, diante da compreensão formalista e individualista das relações privadas, o direito público torna-se fundamentalmente político e pouco atrativo para as recém sociedades modernas2.

É a partir do pensamento jurídico clássico-individualista que os países-metrópoles europeus e as então colônias do século XIX vão estruturar seus códigos civis e definir as primeiras diretrizes privadas de organização das instituições e relações econômico-sociais. O pensamento jurídico novecentista é pautado pela ideia de laissez faire. A particularidade buscada pelo direito dentro desta primeira globalização era a de entender e regular formalmente as relações privadas. O objetivo, por sua vez, era formar uma sociedade fundamentalmente moderna, liberal, centrada no indivíduo e no Estado, e organizada em torno da ideia de mercado.

Porém, o individualismo e a estruturação clássica do direito como regra trouxe à primeira globalização do pensamento jurídico certa incapacidade de adequação aos fenômenos e tensões sociais próprios daquele tempo, como a grande depressão de 1930, o desenrolar das duas grandes guerras mundiais e a urbanização desenfreada e desequilibrada. Surge então, a partir do século XX, a exigência de uma nova lógica jurídica, na qual o direito pudesse atuar como um “mecanismo regulatório que poderia e deveria facilitar a evolução da vida em sociedade”3, uma vez que já não era tão plausível a separação das relações sociais das

demais relações privadas e públicas.

2 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. pp.30-31.

3 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. pp.22 (tradução própria)

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2.2. O pensamento jurídico social

A partir dos anos 1900 até 1968 tem lugar a segunda globalização do pensamento jurídico. Kennedy a chamou de globalização “social”. A globalização do pensamento jurídico social critica os contornos traçados pela fase jurídico clássica que a precedeu e assume como meta “salvar o liberalismo dele mesmo”4 a partir da integração das necessidades sociais e da

própria sociedade com a lógica do pensar jurídico.

Para isso, ainda no fim do período marcado pela primeira globalização, têm espaço no cenário jurídico e regulatório os direitos sociais. Nasce uma nova lógica jurídica formada pelas relações e tensões sociais, na qual os códigos, normas e instituições passariam a incluir a sociedade como mediadora das relações individuais. Esta segunda fase da globalização do pensamento jurídico, por sua vez, não está centrada em um só regime, mas na pluralidade existente entre público e privado, nacional e internacional, indivíduo e sociedade.

Ademais, entende-se que dentro do segundo modelo de pensamento jurídico, a sociedade deixa de ter concepções estritamente morais e políticas, tal como era concebida na primeira globalização, e passa a ocupar o espaço próprio da ciência anti-laissez faire. É o momento no qual se inserem direitos universais sociais como saúde, educação, moradia, segurança e outros.

Diante deste contexto, a sociedade é também ponto de partida para o direito e, por assim ser, a segunda globalização conseguiu proporcionar uma “complexa mistura do ser e do dever ser”5, incluindo normas estatais e não estatais. Ou seja, em um contexto no qual o bem

estar social importa, todas as regras e costumes deveriam ser adequadas a fim de que a sociedade estivesse integralmente abarcada pelo direito. No meio urbano, por exemplo, passam a ser necessárias normas jurídicas que levem em consideração as ocupações irregulares para fins de moradia, mesmo que estas ocupações não sejam inicialmente válidas se comparadas ao direito real de aquisição6.

4 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p.38. (tradução própria)

5 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p.40.

6 Neste exemplo, a moradia mesmo quando adquirida de maneira informal deve passar a ser regulada pelas

normas jurídicas, visto que se trata de um modo de pensar o direito que leva em conta todas as necessidades sociais, sejam elas válidas inicialmente ou não.

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Desta maneira, a segunda globalização assume como base a pluralidade de normas com o objetivo de que toda a sociedade, por mais complexa que fosse, estivesse refletida no arcabouço jurídico existente. A centralidade do pensamento jurídico deixou de ser o indivíduo e passou a se concentrar na sociedade, principalmente no que tange à formação das classes sociais. Ganham espaço, portanto, noções de interesse público reguladas pelo direito.

Para a resolução de litígios, por exemplo, a centralidade nos direitos sociais ampliou as modalidades de cortes judiciais, deixando para trás a concepção voltada exclusivamente ao direito privado e ao processo civil. Nascem as cortes voltadas às resoluções de conflitos trabalhistas, comerciais, juvenis e de família, ampliando a regulação jurídica e transformando-a em regultransformando-ação de umtransformando-a lógictransformando-a jurídictransformando-a plurtransformando-al e menos formtransformando-alisttransformando-a7.

2.3. O pensamento jurídico pós-social

A terceira e última globalização do pensamento jurídico, também chamada de contemporânea ou pós-social, ganha força ao final da Segunda Guerra Mundial. Esta globalização será influenciada tanto pelo pensamento jurídico clássico quanto pelo pensamento jurídico social.

Assim como o pensamento jurídico social se constitui a partir de uma crítica ao pensamento jurídico clássico, o pensamento jurídico pós-social constitui como uma diferente crítica ao modelo jurídico social. Contudo, apesar da crítica, é possível perceber que a fase pós-social é formada por elementos transformados das duas outras globalizações, principalmente por trazer o indivíduo novamente ao centro da regulação jurídica. Porém, não se trata de retomar por completo a concepção individualista/liberal, mas de trazer o indivíduo em seu contexto social e capacitá-lo como sujeito de direitos fundamentais.

Dessa forma, o pensamento jurídico pós-social não é constituído de um único elemento marcante. As características marcantes das duas globalizações anteriores estão presentes na globalização pós-social mas tão somente para garantir que o indivíduo, já dotado de direitos sociais, seja agora reinserido na sociedade integralmente e de acordo com sua

7 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 44.

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identidade. Portanto, o ponto de partida do pensamento jurídico contemporâneo nada mais são que as máximas do direito positivo individualista “animadas” pela lógica de direitos sociais8.

Diante disso, um novo conceito passa a delinear os objetivos traçados por esse terceiro momento: os direitos humanos.

Duncan Kennedy aponta que os direitos humanos fazem parte da lógica jurídica contemporânea da mesma forma que os direitos privados fizeram parte da primeira globalização e os direitos sociais da segunda globalização do pensamento jurídico9. Logo, é

possível afirmar que o modo de pensar e estruturar o direito a partir do final da Segunda Guerra Mundial está centrado em regulações jurídicas, privadas e sociais, que levam em consideração os direitos humanos e a integralidade de direitos de cada indivíduo, principalmente das minorias.

O espaço central ocupado pelos direitos humanos na lógica pós-social deriva de outra noção que é chave para o entendimento das formulações jurídicas contemporâneas: as identidades. Tal como o indivíduo entra no centro da primeira globalização e as classes sociais eram consideradas na segunda globalização, a identidade dos grupos minoritários são reconhecidas e balizadas dentro da terceira globalização. Neste sentido, as diferenças encontradas nas sociedades passam a ser elementos constitutivos e considerados no pensamento jurídico pós-social10.

Assim, a pluralidade vista do ponto de vista jurídico-contemporâneo não se preocupa em entender somente normas jurídicas e não jurídicas, mas em expressar as identidades e diferenças encontradas dentro das sociedades. Para isso, também os elementos próprios do direito positivo devem estar em equilíbrio com o direito humanos e com a capacidade de considerar cada indivíduo de modo integral.

Por conseguinte, para além de todas as formulações que ocuparam espaço na primeira e segunda globalização, a terceira globalização do pensamento jurídico está focada em buscar

8 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 64.

9 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 65.

10 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 65.

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a particularidade de cada indivíduo, entender a sua essência e garantir-lhe direitos para que seja possível a superação das diferenças. Não se trata de abandonar o direito privado ou as facetas sociais de direitos, mas de propor uma nova agenda plural da racionalidade jurídica, na qual o indivíduo será incorporado como sujeito de direitos fundamentais.

Duncan Kennedy apresenta estas três globalizações juntamente com os principais marcos que as deram forma. Porém, é possível perceber ainda hoje aspectos de cada uma dessas globalizações e identificar, caso a caso, construções jurídicas que se aproximam mais da noção individual de direitos, ou do aspecto social e, ainda, do aspecto pós-social.

De maneira especial, o pensamento jurídico pós-social não está definido de maneira clara, visto que engloba indefinidamente a essência individual da primeira fase do pensamento jurídico com a noção de sociedade. Pode-se afirmar, inclusive, que a lógica pós-social trás ao direito um “novo” indivíduo, não liberal, mas humano e aceito conforme sua identidade.

Com relação à identidade, esta é parte constitutiva de cada sujeito, individualmente ou de uma só cultura ou povo. Reconhecer um tipo de identidade significa compreender quem somos e respeitar cada um na medida daquilo que é11. Segundo Taylor, “há um certo modo de

ser humano que é o meu modo”, ou seja, é necessário respeitar cada indivíduo, ou cada cultura, a partir da identidade individualizada de cada um12. É isso que a terceira globalização

pós-social visa demonstrar: as regulações jurídicas são instrumentos aptos ao respeito das identidades únicas e humanas.

A disciplina jurídica da propriedade privada, que será vista no próximo capítulo, pode ser caracterizada dentro desta terceira globalização pós-social. O que chamarei de propriedade pós-social nada mais é que a constatação de um tipo de propriedade que também tem como finalidade inserir grupos e indivíduos com base nos direitos humanos. Significa dizer que a propriedade privada deve ter mecanismos que, além de respeitar o proprietário e garantir-lhe moradia, possam garantir o respeito à individualidade identitária na qual este proprietário se insere.

O exercício deste capítulo buscou demonstrar conceitualmente quais elementos dão forma a cada uma das globalizações do pensamento jurídico. Resta saber como estas

11TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. pp. 243-244. 12TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 245.

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globalizações se refletem em instrumentos jurídicos específicos e como as definições propostas por Kennedy podem ser identificadas na prática.

Como visto na introdução deste trabalho, o maior foco será dado à disciplina da propriedade privada, com fins de entender a maneira pelo qual as globalizações do pensamento jurídico mudaram e influenciaram a propriedade ao longo do tempo e mesmo se é possível adequar a propriedade privada nas particularidades de cada fase.

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3. Do pensamento jurídico à disciplina da propriedade

O capítulo anterior demonstrou de maneira ampla no que consistem as três globalizações do pensamento jurídico dentro das definições conferidas por Duncan Kennedy. O presente capítulo assumirá como desafio a tentativa de adequar estas três lógicas jurídicas à disciplina da propriedade por meio de instrumentos jurídicos representativos dos três modelos. Em alguns deles será possível perceber claramente cada uma das globalizações e em outros será perceptível o caráter de sobreposição em mais de um modelo de pensamento jurídico.

Neste sentido, o principal objetivo deste capítulo é a própria adequação das três fases vividas pelo direito de propriedade e pela relação do proprietário com sua terra. Como será visto, as duas primeiras globalizações do pensamento jurídico podem ser facilmente identificadas em instrumentos jurídicos antigos e atuais, com e sem sobreposição de globalizações. A terceira globalização do pensamento jurídico, alicerçada nos direitos fundamentais dos indivíduos, não é tão intuitiva. Contudo, há um exemplo no qual a propriedade função pós-social pode ser percebida de maneira clara.

Portanto, a sistematização aqui referida começará no início da regulação da propriedade privada pelo Código Civil francês de 1804, passará por importantes instrumentos que disciplinaram a função da propriedade-social no século XX e XXI e chegará a um instrumento urbanístico do atual Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo e à regulação de terras indígenas e quilombolas.

3.1 A concepção individualista da propriedade

A primeira globalização do pensamento jurídico, como visto, foi dominada pelo pensamento jurídico clássico e tem o individualismo como um de seus elementos mais marcantes.

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O objetivo desta subseção é indicar um instrumento jurídico que disciplinou a propriedade no século XIX e que pode ser inserido nas concepções traçadas pelo pensamento jurídico clássico.

Ressalta-se que a propriedade nem sempre foi regulada ou considerada “privada”. Um dos principais marcos que disciplinou a propriedade desse tipo pode ser extraído do artigo 544 do Código Civil francês de 1804. O referido código, sancionado por Napoleão Bonaparte, tinha por objetivo a reforma do sistema legal francês da época, eliminando vários privilégios que antes eram garantidos somente aos nobres. A partir dos ideais iluministas, o Código Civil francês de 1804 foi responsável por conferir laicidade ao Estado, garantir a igualdade dos cidadãos perante as leis e separar o direito civil em duas principais áreas: o direito de família e o direito de propriedade (no sentido patrimonial).

O Código Civil de Napoleão estabeleceu no artigo 544 que:

“A propriedade é o direito de fruir e de dispor dos bens materiais da maneira mais absoluta, contanto que deles não se faça um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos13.”

Com a redação dada pelo artigo 544, a ordem jurídica francesa adquiriu um tipo de relação com a propriedade voltada ao indivíduo e ao modo como ele gostaria de usar, gozar e dispor de seus bens. Porém, como mostrou Gordley14, isso não significa que a disciplina

napoleônica da propriedade tenha sido propriamente liberal: significa apenas que a herança jusnaturalista do Código Civil francês adaptou-se bem ao ideário que viria a prevalecer no século XIX.

É importante enfatizar este ponto: a ideia de que a propriedade foi disciplinada a partir do viés individualista não deriva simplesmente do texto do artigo 544, mas de suas mais conhecidas interpretações. As interpretações do Tribunal de Lyon são os primeiros indícios de que o artigo 544 seguiria os princípios do laissez faire e não submeteria os proprietários a

13 Artigo 544 do Código Civil Francês de 1804: “La proprieté est le droit de jouir et de disposer des biens

matériels de la manière la plus absolue, pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois et par les règlements” (tradução própria).

14 “The evidence usually cited to show that the drafters were innovating is a small number of provisions of the

Code in which these principles are supposedly expressed. With a few exceptions we will examine later, no evidence is cited to show that these principles are reflected in the rest of the Code. Consequently, even if these few pro- visions did express new and individualistic principles, this evidence would indicate a rather superficial use of them. It would suggest that the drafters stated these principles abstractly and appended a mass of rules, said to follow from the principles, but actually taken from the law of the Old Regime.” GORDLEY, James. Myths of the French Civil Code. The American Journal of Comparative Law, v. 12, n. 3. 1994. p.461.

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regimes regulatórios específicos15. Os comentaristas do Código, por sua vez, somente

começaram a tratar a propriedade privada com sentido individual na metade do século XIX16.

Por outro lado, Gordley acredita que a total liberdade dos indivíduos quanto ao uso e gozo de seus bens prevaleceria mesmo com a possível restrição imposta pelo artigo 544 com relação ao respeito de leis e regulamentos. Pode-se afirmar, inclusive, que dentro de toda a lógica estabelecida pelo código civil, o artigo 544 somente restringiria o proprietário quanto ao livre uso de seus bens em casos excepcionais17.

Desta maneira, a propriedade regulada no Código Civil francês passa a ser compatível com o pensamento individualista identificado na primeira globalização proposta por Kennedy. A faculdade de livre fruição e disposição dos bens por parte daquele que os possui fez com que a vontade do proprietário ditasse a função a ser seguida pela propriedade privada (ainda que naquele tempo nem mesmo se pensasse em termos funcionais). A propriedade volta-se ao seu proprietário, que excepcionalmente será restringido pelo Estado ou pela sociedade.

A característica individualista evidenciada e proporcionada pelo Código Napoleônico insere a propriedade privada francesa do século XIX dentro da lógica jurídica clássica, na qual o indivíduo-proprietário é colocado como centro. Do mesmo modo, a sociedade diante deste tipo de propriedade privada é desconsiderada, visto que a relação privada é estabelecida sem restrições ao seu proprietário e sem considerar a relação da propriedade privada com a vizinhança ou com a cidade como um todo, por exemplo.

A primeira globalização do pensamento jurídico quanto vista sob a disciplina da propriedade é reportada e tem eficácia ainda hoje nos códigos e leis. Isso significa que o pensamento jurídico clássico não vigorou somente até o início do século XX ao menos no que se refere à propriedade privada e, assim sendo, o sentido individual ainda deve corresponder às necessidades individuais de seus proprietários18.

15 GORDLEY, James. Myths of the French Civil Code. The American Journal of Comparative Law, v. 12, n. 3.

1994. pp. 465-466.

16 “A new individualistic theory of property is missing, not only in the drafting history of the Code, but also in

the early commentaries. Such a theory starts to appear in the commentaries written about mid-century, and then, one has no trouble spotting it.” GORDLEY, James. Myths of the French Civil Code. The American Journal of

Comparative Law, v. 12, n. 3. 1994. p. 466.

17GORDLEY, James. Myths of the French Civil Code. The American Journal of Comparative Law, v. 12, n. 3.

1994. p.463.

18 Na seção 3.2. é dado um exemplo do Código de Processo Civil brasileiro, de 2015, que possui um dos

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3.2. Pensamento social: a propriedade-função social

A segunda globalização do pensamento jurídico, como visto, tem início no começo do século XX e é marcada pela disseminação dos direitos sociais. Trata-se de um momento no qual a regulação jurídica básica deveria impor regras e medidas que legitimassem direitos como saúde, educação, boas condições de trabalho, moradia, alimentação e tantos outros. Consiste, portanto, em admitir que a regulação jurídica deve levar em consideração as relações sociais e as necessidades das sociedades como um todo ao regular as diferentes áreas jurídicas.

A regulação da propriedade, por sua vez, não ficou excluída destas prerrogativas sociais e ocupou papel primordial na maneira de entender as finalidades da propriedade nos contextos rurais e urbanos até os dias de hoje.

Assim, juntamente com os ideias que fomentaram a disseminação dos direitos sociais, nasce a ideia de um tipo de propriedade que deve perseguir funções sociais, ou seja, um tipo de propriedade adequada ao interesse público. Neste sentido, a propriedade, quando analisada sob a ótica da segunda fase do pensamento jurídico, pode ser notada a partir do princípio da função social da propriedade, que, apesar de não possuir definição exata, busca permitir que a propriedade privada contribua positivamente para o desenvolvimento social, minimizando os efeitos negativos decorrentes dos interesses estritamente egoísticos do proprietário do bem.

Para tanto, esta seção identifica primeiramente instrumentos jurídicos que regulamentaram e regulamentam a propriedade de maneira estritamente relacionada ao pensamento jurídico social. O artigo 27 da Constituição Mexicana de 1917, o artigo 153 da Constituição da República de Weimar e o artigo 1.228 do Código Civil Brasileiro são instrumentos nos quais a função social da propriedade está necessariamente ligada ao proprietário do bem, constituindo bons exemplos para a segunda globalização do pensamento jurídico.

Depois, tem-se a análise do artigo 565 do atual Código de Processo Civil. O artigo 565 do CPC, e todo o capítulo no qual este artigo se inclui, se refere aos casos de manutenção e reintegração de posse em litígios coletivos. A novidade neste caso está em permitir audiência de conciliação entre os envolvidos, mediada pelo Ministério Público, com fins de garantir também aos ocupantes coletivos o direito de resposta.

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Por último, passa-se a análise de um instrumento jurídico singular, mas que possui elementos marcantes do pensamento jurídico social. Trata-se da Concessão do Direito Real de Uso para fins de moradia, hoje disciplinado pela Medida provisória 2.220 de 2001. Neste, a função da propriedade-social não é estabelecida em favor do proprietário titular do bem, diferentemente dos exemplos iniciais nos quais o próprio proprietário poderia usufruir dos direitos sociais advindos de sua própria propriedade. É um exemplo no qual há uma dissociação entre a titularidade do bem e a destinação da função social. Algo parecido será visto também na próxima seção com relação à função pós-social da propriedade.

A propriedade na Constituição Mexicana de 1917

A propriedade-função social é exemplificada primeiramente na Constituição Mexicana de 1917. Esta Constituição tem como um de seus antecedentes a revolução mexicana de 1910, cujo objetivo era superar a revolta de camponeses e indígenas contra a expropriação de suas terras. Os chamados ejidos, nome conferido às antigas terras indígenas, tinham sido usurpados de maneira discricionária por entes privados ligados principalmente a Igreja. Logo, a carta constitucional mexicana, especificamente por meio do artigo 27 aprofundado a seguir, assumiu como viés a possível reintegração dos indígenas e camponeses em suas terras e a consolidação de um direito “forte” capaz de assegurar tal propriedade19.

Nestes termos, a Constituição Mexicana, além de ser o instrumento jurídico no qual os direitos sociais aparecem pela primeira vez20, disciplinou em seu artigo 27 que a propriedade

de todas as terras e águas, inclusive as porções subterrâneas e marítimas, de todo o território mexicano, pertenciam tão somente ao governo federal21.

19 PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: A

preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917. Revista de informação legislativa, v. 43, n. 169, p. 101-126, jan./mar. 2006. p. 8.

20 KENNEDY, Duncan. Three Globalizations of Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro

Santos (org.). The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. Oxford: Oxford University Press, 2006. p. 54.

21 Constituição Mexicana, 1817, Artigo 27. “La propiedad de las tierras y aguas comprendidas dentro de los

límites del territorio nacional, corresponde originariamente a la Nación, la cual ha tenido y tiene el derecho de transmitir el dominio de ellas a los particulares, constituyendo la propiedad privada.

Las expropiaciones sólo podrán hacerse por causa de utilidad pública y mediante indemnización.

La nación tendrá en todo tiempo el derecho de imponer a la propiedad privada las modalidades que dicte el interés público, así como el de regular, en beneficio social, el aprovechamiento de los elementos naturales susceptibles de apropiación, con objeto de hacer una distribución equitativa de la riqueza pública, cuidar de su conservación, lograr el desarrollo equilibrado del país y el mejoramiento de las condiciones de vida de la población rural y urbana. En consecuencia, se dictarán las medidas necesarias para ordenar los asentamientos humanos y establecer adecuadas provisiones, usos, reservas y destinos de tierras, aguas y bosques, a efecto de ejecutar obras públicas y de planear y regular la fundación, conservación, mejoramiento y crecimiento de los centros de población; para preservar y restaurar el equilibrio ecológico; para el fraccionamiento de los

(23)

O artigo 27 da Constituição Mexicana de 1917 inova ao determinar que que a propriedade privada somente poderia ser estabelecida caso a União assim determinasse. Ainda, mesmo quando conferida pela União, a transformação de propriedade estatal em particular deveria preceder a verificação da ocorrência do benefício social em garantir, a um privado, a propriedade. Ademais, possíveis expropriações de porções deste território só eram possíveis no México a partir 1917 em casos de utilidade pública.

Em suma, a disciplina jurídica mexicana fez com que a função social fosse constitutiva da propriedade e de titularidade do proprietário. A propriedade deve estar relacionada ao interesse público, transformando-se em propriedade função-social. Trata-se, portando, de socializar os sentidos e funções a serem cumpridas pela propriedade privada, possibilitando o que se entende hoje como “princípio da função social da propriedade”.

Resta claro como a propriedade determinada pela Constituição Mexicana difere essencialmente das prerrogativas estabelecidas pelo Código Civil Francês, por exemplo.

A propriedade na Constituição de Weimar

Outro marco relevante acerca da inserção da propriedade privada função-social pode ser percebido na Constituição Alemã de 1919, também conhecida como Constituição de Weimar. A Constituição de Weimar foi responsável por consagrar diversos direitos sociais e fundamentais na República Alemã, principalmente no que consta em seu Livro II. Diante do contexto de crise e precariedade evidenciada no pós-Primeira Guerra Mundial, a Alemanha trouxe à sua “nova” Constituição diversas garantias sociais, “submetendo o individualismo a favor da coletividade e protegendo os direitos individuais na medida em que cumpriam seu dever social”22.

As disposições do artigo 153 da Constituição de 1919 são particularmente interessantes no processo de socialização da propriedade privada durante a República de Weimar. O referido artigo consagra a função social da propriedade e estipula a possibilidade de desapropriação quando verificado o interesse social para tal. A Constituição alemã frisou que “propriedade obriga”, fundamentando restrições contratuais e de liberdade de disposição, uso e gozo da propriedade para além do uso individualista. Ademais, o artigo 153 acabou por

latifundios; para disponer, en los términos de la ley reglamentaria, la organización y explotación colectiva de los

ejidos y comunidades; para el desarrollo de la pequeña propiedad rural; para el fomento de la agricultura, de la ganadería, de la silvicultura y de las demás actividades económicas en el medio rural, y para evitar la destrucción de los elementos naturales y los daños que la propiedad pueda sufrir en perjuicio de la sociedad. (…)”

22BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social: atualidade do debate sobre direito, Estado e

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consagrar parte do “controle da ordem econômica capitalista” ao alicerçar que a propriedade privada deveria perseguir sempre sua função social e não somente suas aspirações econômico-liberais23.

A limitação dos proprietários privados proporcionada pelo artigo 153 consiste na disciplina jurídica social da propriedade, em consonância com a segunda fase – social – do pensamento jurídico demonstrado por Kennedy. O referido artigo trouxe o contexto social evidenciado pela Alemanha no pós-guerra e limitou as garantias individuais essencialmente fundadas no laissez-faire, incluindo a sociedade e suas necessidades no contexto regulatório. Portanto, a propriedade deveria ir além da livre disposição por parte do seu proprietário, tal como consagrou o Código Francês, e atingir a relação indissociável existente entre propriedade privada e o meio social na qual ela se insere.

A propriedade função-social no direito brasileiro

A disciplina jurídica da propriedade função-social pode ser também identificada no direito brasileiro. Desde a promulgação da Constituição da República do Brasil de 1934, a propriedade social vem adquirindo, primeiro implicitamente e depois explicitamente, espaço na legislação brasileira e vem sendo aplicada pelos tribunais superiores24.

A primeira menção explícita acerca da propriedade função-social é percebida, como já citado, na Constituição de 1934. O artigo 113, inciso 17 da referida Constituição assim dispõe:

Art. 113, 17) É garantido o direito de propriedade, que não

poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por

necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (itálicos nossos)

Pela primeira vez os interesses individuais do proprietário privado deveriam estar equilibrados com o interesse da sociedade brasileira como um todo. Contudo, o mesmo artigo citado não foi claro o suficiente para determinar o que, de fato, seria exigido na verificação da

23 BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social: atualidade do debate sobre direito, Estado e

economia na República de Weimar. Tese de Livre-Docência em Direito. São Paulo: USP, 2003. p. 26.

24 A construção jurisprudencial brasileira acerca do princípio da função social da propriedade é particular e

assume diferentes concepções daquilo que é a propriedade privada transvertida de seu aspecto social. Contudo, não se trata de incorporar ao presente trabalho a construção jurisprudencial, mas não somente apontar alguns instrumentos jurídicos que deram forma ao caráter social da propriedade privada no Brasil.

(25)

ideal uso social da propriedade, não delimitando o alcance de tal medida e nem provocando a efetividade deste.

Outro instrumento jurídico mais interessante para a construção da função social é a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. O artigo 147 desta Constituição foi responsável por explicitamente considerar que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social”25, aproximando-se da disciplina evidenciada na Constituição de Weimar na

qual, de algum modo, a propriedade “obriga” o cumprimento da função social da propriedade26.

Trata-se, retornando a Kennedy, de inserir a propriedade no mesmo sentido social do pós-guerra europeu que culminou na segunda globalização do pensamento jurídico. Não era mais atraente que a propriedade brasileira estivesse enviesada aos interesses particulares e não atendesse as demandas de urbanização e industrialização das cidades brasileiras a partir da segunda metade do século XX.

A inclusão da propriedade-função social nas disposições constitucionais citadas não foi suficiente para que, na prática, a propriedade privada no Brasil deixasse de seguir o sentido individualista-liberal predominante do pensamento jurídico clássico. Era necessário conferir mais concretude ao princípio da função social, o que foi feito posteriormente por meio de decisões judiciais paradigmáticas e do atual Código Civil brasileiro.

Em 1994 uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo sugeriu uma relevante aplicação do princípio da função social da propriedade. Trata-se de um acórdão no qual restou reconhecida a propriedade dos moradores da Favela do Pullman em detrimento da propriedade privada adquirida anos antes por meio de um loteamento27.

Segundo esta decisão, os antigos proprietários não tinham mais direito sobre o bem, visto que a Constituição Federal havia submetido as propriedades privadas ao princípio da função social. Segundo Tomasetti, em um comentário sobre esta mesma decisão, a inserção do princípio da função social da propriedade “descola o jurista da visão privatística

25 BRASIL. Constituição Dos Estados Unidos Do Brasil, de 16 de setembro 1946. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm> Acesso em: 04 dez. 2017. Artigo 147,

caput.

26 A Carta Constitucional de 1937 também dispunha que estaria assegurado “o direito de propriedade, salvo a

desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia” (artigo 122, inciso 14). A

disposição de desapropriação por utilidade pública, entretanto, foi revogada já em 1942 por meio do Decreto 10.358/42. Depois disso, somente em 1946 é que a disciplina da propriedade voltou a se adequar ao pensamento jurídico social.

27 SÃO PAULO. Tribunal De Justiça De São Paulo. Apelação Cível N. 212.726-1-4/Sp. Relator:

(26)

tradicional – e bastante obsolescida, que se concentra no individualismo (...) dirigindo-se para uma função solidarística” 28 . Significa dizer, portanto, que é necessário enquadrar a

propriedade dentro da sociedade, para que ela siga funções sociais em detrimento de funções privadas. No caso concreto, a propriedade foi reconhecida para aquelas centenas de famílias que usavam a área como espaço de moradia e convívio social.

Algo parecido com a aplicação desta decisão de 1994 seria evidenciado, mais tarde, pelo artigo 1.228, parágrafo 4º, do Código Civil de 2002.

O Código Civil de 2002 é “surpreendentemente socialmente orientado29” de maneira

que o “senso social é um dos traços mais notáveis do rascunho, em contraste com o individualismo condicionando o [antigo] Código Civil”30. Trata-se de um instrumento jurídico

que atua concretamente na promoção dos direitos sociais, melhorando comparativamente as disposições constitucionais anteriores.

Especificamente, o artigo 1.228, §§ 1º e 4º do atual Código Civil merecem atenção. Primeiramente o parágrafo primeiro do mencionado artigo explicita que “O direito de

propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”31, ressaltando o necessário equilíbrio entre a livre disposição do bem por parte do proprietário e o interesse social da sociedade na qual o bem está inserido. Há, portanto, uma maneira “adequada” de uso e gozo, voltada para o aspecto social.

O parágrafo quarto, por sua vez, é explícito ao conceber o tipo de função social que deve ser perseguida pela propriedade no âmbito do Código de 2002. A função garantida pelo artigo 1.228, §4 é o próprio uso da propriedade para obras e serviços de interesse social, estando o próprio uso para fins de moradia incluído em tal dispositivo. Isso porque o parágrafo determina que o proprietário original do bem poderá ser privado de sua propriedade caso:

“o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços

28 TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. Procedimento do direito de domínio e improcedência da ação reivindicatória. Favela consolidada sobre terreno urbano loteado. Função social da propriedade. Revista dos tribunais, v. 723, 1996, pp. 220-221.

29 CUNHA, Alexandre dos Santos. The social function of property in Brazilian Law. Fordham L. Rev. v. 80,

2011. p. 1179.

30 CUNHA, Alexandre dos Santos. The social function of property in Brazilian Law. In: 80 Fordham L. Rev.

1171. 2011. p. 1179. apud REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo

Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999.

(27)

considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”32.

Neste sentido, tratando-se de um imóvel de extensa área, inutilizado por seu proprietário original de maneira a não atender o interesse público, qualquer outro grupo de pessoas que nele exerça obras ou serviços que atendam as “finalidades econômicas e sociais” passará a possuir a propriedade do imóvel. Portanto, consiste em um dispositivo legal no qual a segunda globalização do pensamento jurídico está materializada.

Este novo cenário proporcionado pelo Código Civil brasileiro admite que é necessário ir além da própria vontade do proprietário de deixar seu imóvel inutilizado. As necessidades sociais devem estar inseridas nesse contexto, devendo o titular do bem corresponder com os fins sociais aos quais sua propriedade se propõe.

Dispositivo semelhante é encontrado no Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257 de 2001, ao tratar do IPTU progressivo no tempo no artigo 7º e seguintes, regulamentando o disposto no artigo 182, § 4, II, da Constituição Federal de 1988. O IPTU progressivo no tempo consiste em um instrumento urbanístico e tributário que faculta os municípios brasileiros instituírem em seus planos diretores a previsão de que imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados tenham o valor de IPTU aumentado, após prévia notificação, até que os proprietários promovam o adequado aproveitamento da propriedade33.

Para além da análise fiscal feita acerca do IPTU progressivo no tempo, análise esta não cabível dentro dos objetivos delimitados por este trabalho, é importante salientar que a lógica por detrás desse instrumento urbanístico visa garantir que o interesse público permaneça sobre as necessidades estritamente individuais. Não faz sentido que imóveis subutilizados ou inutilizados, por vontade exclusiva de seus proprietários, ocupem o espaço urbano.

32 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 04 dez. 2017. Artigo 1.228, parágrafo 4º.

33 “Art. 182, § 4 É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano

diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 06 dez. 2017.

(28)

Manutenção e reintegração de posse no Código de Processo Civil brasileiro

O artigo 565 do Código de Processo Civil também contem, em partes, elementos marcantes do pensamento jurídico social. Trata-se de um instrumento jurídico ao qual darei o nome de “instrumento jurídico de sobreposição”, uma vez que nele se encontram elementos marcantes de mais uma globalização do pensamento jurídico.

No caso do artigo 565 do CPC, e das demais disposições que acompanham este artigo, é possível perceber elementos do pensamento jurídico clássico e do pensamento jurídico social.

No que tange ao pensamento jurídico clássico, o artigo conserva a possibilidade de concessão de mandado de liminar, inaudita altera pars, para manutenção ou reintegração da posse. Como indicou o artigo 562, por exemplo, basta que a petição inicial esteja devidamente instruída. Isto constata, portanto, a preocupação individualista deste dispositivo que, sem ouvir a outra parte, permite que os interesses exclusivos daquele que entrou com o pedido se sobressaiam.

Contudo, o mesmo artigo ainda oferece medidas cuja finalidade é abrir espaço ao grupo de pessoas que coletivamente reivindica a propriedade do bem por meio da realização de audiência de mediação. Esta possibilidade permite adequar o artigo 565 também ao pensamento jurídico social.

Como se observa:

Art. 565. No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o

pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias,

que observará o disposto nos §§ 2o e 4o. (...)

§ 2o O Ministério Público será intimado para comparecer à audiência, e a Defensoria Pública será intimada sempre que houver parte beneficiária de gratuidade da justiça. (itálico nossos)

Neste sentido, caso o litígio coletivo sobre a posse tenha mais de um ano e um dia de vigência, ambas as partes devem ser ouvidas. Esta medida normativa, entretanto, visa garantir que os grupos de pessoas sem moradia, que usualmente invadem e ocupam propriedade de outrem para tal fim, possam ser ouvidas e, se for o caso, mantidas na posse do bem.

(29)

A possibilidade de realização da audiência de mediação e mesmo a inserção do Ministério Público e da Defensoria Pública significam que a propriedade privada não deve cumprir tão somente as vontades de seu proprietário original ou de só uma das partes, mas estar voltada à sociedade. Novamente, trata-se de um caso em que a propriedade do tipo função-social está presente.

A Concessão de Uso Especial para fins de Moradia

Nem todo instrumento jurídico que corporifica a função social da propriedade se volta predominantemente para o proprietário. Existem exemplos no qual a função social é exercida por aquele que usa o bem, sem que este seja necessariamente o proprietário titular do mesmo bem.

A Concessão de Direito Real de Uso para fins de moradia, por exemplo, é funcionalizada em favor do usuário – o particular – e não do proprietário – o Estado. Isto porque uso da propriedade tem como finalidade oferecer a moradia, direito social consagrado pela Constituição Federal. Como se observa da redação do artigo 1º da Medida Provisória 2.220 de 2001:

Art. 1o Aquele que, até 22 de dezembro de 2016, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel

público situado em área com características e finalidade urbanas, e que o utilize para sua moradia ou de sua família,

tem o direito à concessão de uso especial para fins de

moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não

seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. (Redação dada pela lei nº 13.465, de 2017) (itálico nossos)

No caso da concessão de uso especial para fins de moradia disciplinada pela MP 2.220 de 2001, a titularidade do bem continua sendo do Estado. Contudo, somente aqueles que estão na posse direta do bem são capazes de usá-lo de acordo com suas finalidades sociais, neste caso a moradia34.

34 Recentemente, a lei 13.465 de 2017 disciplinou que é possível que a titularidade do bem passe àqueles que o

usam como única moradia, prevendo que estes terão não somente a posse, mas a propriedade. Caso isso ocorra, a titularidade do bem e a destinação da função social passam a ser indissociáveis e a integrar o patrimônio pessoas físicas de baixa renda, como dispõe o artigo 86 da Lei 13.465 de 2017: Art. 86. As pessoas físicas de baixa

renda que, por qualquer título, utilizem regularmente imóvel da União, inclusive imóveis provenientes de entidades federais extintas, para fins de moradia até 22 de dezembro de 2016, e que sejam isentas do pagamento

de qualquer valor pela utilização, na forma da legislação patrimonial e dos cadastros da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), poderão requerer diretamente ao oficial de registro de imóveis, mediante apresentação da

(30)

Assim, a propriedade função-social nem sempre opera em favor do titular do bem, mas para aqueles que garantem o uso da propriedade com sentido social na prática.

Isto posto, são variados os mecanismos que nos permitem afirmar que a propriedade tem sido vista e disciplinada, desde o início do século passado, como mecanismo de promoção dos direitos sociais. Resta verificar se a socialização da propriedade privada foi suficiente para captar toda a complexidade das cidades e se novos instrumentos jurídicos tem atuado neste sentido. Ao que tudo indica, não basta somente a integralização do bem imóvel com a sociedade, sendo necessário que também a propriedade privada entre na lógica proporcionada pela terceira globalização pós-social do pensamento jurídico.

3.3. A propriedade-função pós-social

A terceira globalização do pensamento jurídico tem como elemento central os direitos humanos. Os direitos humanos devem ser entendidos dentro da lógica pós-social como aqueles direitos capazes de garantir a identidade de cada indivíduo e o respeito aos direitos fundamentais de todos e principalmente das minorias.

Assim, destaca-se que a identidade, os direitos fundamentais e as minorias são elementos essenciais para entender que a terceira fase da globalização jurídica recoloca o indivíduo como base do pensamento jurídico se, e somente se, tal inserção for capaz de garantir o interesse social. É um tipo de pensamento jurídico no qual convivem aspectos tanto da primeira globalização quanto da segunda, mas ampliados por uma nova concepção de direitos que estabelece diretrizes que consideram o indivíduo na sua integralidade e não no seu sentido individualista.

O indivíduo retratado na terceira globalização do pensamento jurídico está também alinhado com as demandas sociais, visto que as diversas realidades sociais – com atenção especial às minorias – são elementos essenciais para que indivíduos de diferentes identidades sejam contemplados pelo direito. Entretanto, para a terceira fase do pensamento jurídico não basta a garantia da função social dos direitos, é necessário que a regulação jurídica seja pós-social.

Certidão de Autorização de Transferência (CAT) expedida pela SPU, a transferência gratuita da propriedade do imóvel, desde que preencham os requisitos previstos no § 5º do art. 31 da Lei no 9.636, de 15 de maio de 1998. § 1o A transferência gratuita de que trata este artigo somente poderá ser concedida uma vez por

beneficiário. § 2o A avaliação prévia do imóvel e a prévia autorização legislativa específica não configuram

(31)

Dessa maneira, a função social da propriedade não pode ser o único fim perseguido dentro da terceira fase do pensamento jurídico. A regulação da propriedade precisa conter algo para além do uso da propriedade como medida de emancipação do bem-estar social e passar a (re)considerar o indivíduo como sujeito de direitos fundamentais e humanos.

Assim sendo, a presente seção buscará identificar três instrumentos jurídicos exemplificativos com a finalidade de adequar a terceira globalização à disciplina da propriedades privada. O exercício de articular normativas já existentes às prerrogativas da terceira fase do pensamento jurídico está baseado na busca de consequências proporcionadas por determinados instrumentos jurídicos que nos permitem afirmar que existe “algo a mais” que a garantia dos usos sociais da propriedade.

O primeiro exemplo é a Cota de Solidariedade, disciplinada nos artigos 111 e 112 do atual Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo, Lei 16.050 de 2014. Trata-se de um instrumento jurídico também de sobreposição, que possui características sociais e pós-sociais.

O segundo exemplo consiste no direito de posse de terras indígenas por parte dos indígenas. As terras indígenas são propriedade exclusiva da União, segundo o artigo 21, IX da Constituição Federal. A posse direta destas terras, entretanto, pode estar no domínio dos indígenas e servir como medida de preservação de uma cultura e de reprodução de um povo de identidade singular.

O exemplo das terras indígenas possui, tal como o direito de uso especial para fins de moradia visto na seção anterior, uma dissociação entre o titular do bem e a alocação da função pós-social da propriedade.

O terceiro e último exemplo se refere à propriedade das comunidades remanescentes de quilombos. Como será demonstrado, este último exemplo parece ser aquele no qual a propriedade está mais adequada ao pensamento jurídico pós-social.

A Cota de Solidariedade

Primeiramente, passa-se à análise da Cota de Solidariedade do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo.

Os planos diretores são os principais instrumentos de expansão, desenvolvimento e delimitação urbana das cidades brasileiras. Estes instrumentos foram juridicamente previstos pela primeira vez na Constituição Federal de 1988 e posteriormente regulamentados pelo

(32)

Estatuto da Cidade em 2001. Importante salientar que a Constituição Federal, em seu artigo 182 §§ 1 e 2 35 , definiu que municípios com mais de 20 mil habitantes deveriam

obrigatoriamente instituir um plano diretor e, ainda, que seria função dos planos diretores garantir o cumprimento da função social da propriedade por meio das exigências urbanísticas por eles estabelecidas.

Neste sentido, todas as medidas instituídas em planos diretores devem ser aquelas que, de uma forma ou de outra, garantem que a propriedade privada cumpra seu dever social. Entende-se que alguns instrumentos urbanísticos que obrigatoriamente integram os Planos Diretores, tal como o direito de preempção, a outorga onerosa do direito de construir e mesmo o IPTU progressivo no tempo, estão relacionados com a função social da propriedade. Estes instrumentos devem ser capazes de garantir o “racional e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade”36.

Porém, é possível demonstrar que os planos diretores podem estabelecer diretrizes urbanísticas que vão além da função social da propriedade. O instrumento urbanístico da Cota de Solidariedade, por exemplo, consegue oferecer mais que moradias sociais e ser incluído no âmbito da função pós-social da propriedade, como será visto.

Antes disso, é necessário entender alguns objetivos gerais que dão forma ao atual plano diretor de São Paulo a fim de que a Cota de Solidariedade seja mais facilmente caracterizada como integrante da terceira fase do pensamento jurídico.

No caso do PDE de São Paulo de 2014, a prefeitura afirmou em um material explicativo que os instrumentos urbanísticos por ele instituídos visavam, dentre outras coisas, tornar a cidade mais democrática e inclusiva “acolhendo a todos dignamente e aproximando as oportunidades de emprego e moradia por toda a cidade”37. O mesmo material explicativo

35 “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme

diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.(...)” BRASIL. Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 06 dez. 2017.

36 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 576.

37 PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Plano Diretor Estratégico: estratégias ilustradas. São

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