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O SOLO DA LIBERDADE: AS TRAJETÓRIAS DA PRETA FAUSTINA E DO PARDO ANACLETO PELA FRONTEIRA RIO-GRANDENSE EM TEMPOS DO PROCESSO ABOLICIONISTA URUGUAIO

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O SOLO DA LIBERDADE: AS TRAJETÓRIAS DA PRETA FAUSTINA E DO

PARDO ANACLETO PELA FRONTEIRA RIO-GRANDENSE EM TEMPOS

DO PROCESSO ABOLICIONISTA URUGUAIO (1842-1862)

Jônatas Marques Caratti1

Primeiras palavras...

Não é fácil escrever sobre um trabalho que completa nesse mês seu primeiro aniversário.2

Imagino que os colegas já tenham passado, em algum momento de suas vidas, por essa desconfortável experiência. A escrita da História é fruto da reconstrução do passado e não de seu resgate, portanto, é certo que novas questões surgem ao passar do tempo e os antigos problemas de pesquisa se tornam até um pouco inocentes. Mas vamos ao que interessa. Quero repartir com os colegas os resultados de minha dissertação de mestrado intitulada “O solo da liberdade: as

trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862)”.

A ideia de pesquisar a escravidão rio-grandense em regiões de fronteira nasceu em 2005, quando ingressei no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), como bolsista do setor de pesquisa histórica. Na época, havia um projeto intitulado “Documentos da Escravidão”, que

buscava publicar um catálogo seletivo sobre essa temática a partir de cartas de alforria.3 Quando

iniciei essa empreitada, lembrei-me da história da minha própria família: meu avô, Saldanha Caratti, nascido em 1910 na cidade de Bagé, foi fruto de uma relação extraconjugal entre um italiano e uma liberta africana.

A justificativa para a pesquisa, portanto, não era somente acadêmica. Da minha parte, havia interesse em conhecer a origem da minha família, já que pouco meu pai relatava sobre isso. A justificativa pessoal para realização desse trabalho foi meu sustento para os momentos de dificuldade, tanto de coleta de dados como da própria escrita da dissertação. No entanto, mesmo com a questão da “justificativa acadêmica/pessoal” resolvida, isso pouco ainda definia sobre o

1

Mestre em História pela Unisinos. Atualmente é professor de História, de 5° a 8° série, no Colégio Adventista Marechal Rondon, em Porto Alegre.

2 Defesa realizada em 31 de abril de 2010. Banca examinadora: Profa. Dra. Keila Grinberg (UNIRIO), Prof. Dr. César Augusto Guazzelli (UFRGS), Profa. Dra. Eliane Fleck (UNISINOS). Agradeço especialmente ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira.

3 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Administração e Recursos Humanos. Departamento de arquivo público.

Documentos da Escravidão. Catálogo Seletivo de cartas de liberdade. Acervo dos Tabelionatos de municípios do

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conteúdo do trabalho. Afinal, dentro da temática da escravidão em regiões fronteira, o que poderia

ser escrito?4 Essa pergunta foi fundamental para a sua estruturação, pois se tornou a base nas quais

outras questões se assentaram e deu forma a dissertação que apresentei em abril de 2010 ao PPG da Unisinos.

Como comentei anteriormente, essa pesquisa nasceu entre os maços do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Por isso, os leitores devem imaginar que o trabalho de coletar dados foi facilitado; porém, ao mesmo tempo foi dificultado. Digo o porquê: os historiadores temem serem engolidos pelas fontes, pois isso evidencia certa imaturidade e também a ingenuidade do profissional. Portanto, como tratar da escravidão no Rio Grande do Sul, focando a fronteira como

lócus de análise, a partir de dezenas de processo-crime cheios de vida e historias encantadoras? Isso

poderia ser uma tremenda armadilha, não é mesmo? Afirmo isso, porque o simples relato de experiências através das fontes, um tratamento quase positivista às mesmas, me incomodava. Queria dar mais do que um simples “ctrl c” e “ctrl v” do documento do arquivo para a memória do meu computador. Isso significava em um método mais sofisticado que evidenciasse a reflexão deste historiador. Aqui entraram em cena duas contribuições metodológicas importantes: a micro-história e a História Comparada.

A micro-história trouxe para este trabalho o adensamento e aprofundamento na análise de trajetórias de vida. No cenário internacional, teses de Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Jacques

Revel, apresentaram resultados frutíferos propiciados pelo olhar micro-analítico.5 No Brasil,

Eduardo Silva, Keila Grinberg, Regina Xavier e Vinicius Oliveira, dentre outros, acompanhados pela mesma esteira de reflexões, apresentaram excelentes trabalhos de experiência em

micro-escala.6 Assim, senti-me muito bem amparado para, a partir desses trabalhos, refletir em algo que

pudesse traçar vidas de escravos e libertos na fronteira rio-grandense.

Há uma crítica comum aos micro-historiadores: que as análises de casos individuais nem sempre representavam as vivências dos demais sujeitos. Assim, como saber se o protagonista analisado compartilhava das mesmas experiências dos outros indivíduos? Foi nesse contexto que

4

A temática da escravidão em regiões fronteira foi tratada pela historiografia rio-grandense somente nos últimos anos. Devido a uma geração de historiadores que afirmava ser incoerente utilizar mão-de-obra escrava, o assunto era, por vezes, marginalizado.

5

GINZBURG, 1989; LEVI, 2000; REVEL, 1998. 6

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pensei a História Comparada.7 Ao comparar experiências semelhantes a partir de sujeitos em contextos diferentes, pôde-se aprofundar nas variadas possibilidades de uma determinada sociedade. Essas reflexões metodológicas foram importantes para que pudesse escolher o instrumento de apresentação – incluindo aqui o estilo de escrita – para a proposta de dissertação em andamento.

A preta Faustina e o pardo Anacleto, os dois protagonistas de nossa história, foram escolhidos entre mais de trinta processos criminais por dois motivos principais: ambos estavam retratados em extensos documentos e recheados de incríveis detalhes; e seus casos eram, a principio, muito semelhantes no quesito jurídico (caso, testemunhas, artigos que incriminavam o réu, etc) mas com um olhar mais apurado mostravam-se diferentes. Isso será melhor explicado ao decorrer do texto.

Da mesma forma que os micro-historiadores apresentavam sua questão mais ampla, Faustina

e Anacleto eram “o pretexto para a reconstituição do ambiente social” que estavam inseridos.8

Em outras palavras, tanto a preta como o pardo, eram bons casos para compreender o contexto do processo abolicionista uruguaio ocorrido em meados do século XIX. Após esses quesitos mais introdutórios, quero me deter na apresentar dos resultados propriamente ditos da dissertação. Farei isso através das principais questões analisadas em cada capítulo.

1. O começo de tudo: os primeiros anos da preta Faustina e do pardo Anacleto

Quando passei a investigar as trajetórias de Faustina e Anacleto, percebi que para compreender suas histórias precisaria voltar ao tempo e focar no “começo de tudo.” Faustina nasceu na cidade de Melo, Departamento de Cerro Largo, Uruguai; Anacleto, pelo contrário, nasceu em Encruzilhada, província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Império do Brasil. Essa diferença marcante no que se refere a sua origem, foi fundamental para que futuramente os juízes dessem a liberdade ou reescravização para as “vítimas”. Faustina esteve protegida sob a bandeira uruguaia, já Anacleto, não. Este era escravo de um grande proprietário de terras e cativos de Encruzilhada, que brigou até o fim por sua propriedade.

Neste momento, abordarei os principais pontos defendidos no primeiro capítulo da dissertação. Faustina, uma das protagonistas deste trabalho, nasceu em 1842, na cidade de Melo,

7 Não entrei muito nos debates atuais sobre a História Comparada. O que fiz, foi dialogar com trabalhos que utilizaram esse campo de análise. SCHMIDT, 2002; GRAHAM, 2002; DAVIS, 1997 e SPITZER, 2001.

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Uruguai. Mas como isso ocorreu? Sua mãe, Joaquina Maria, natural da Costa da África, chegou ao Brasil nas primeiras décadas do século XIX. Provavelmente, veio pelo porto do Rio de Janeiro, desembarcou em Rio Grande e foi vendida como escrava para a cidade fronteiriça de Jaguarão. Para quem procura desenvolver um trabalho que se aproxime da realidade desses sujeitos históricos, não

pode desconsiderar esse duro trajeto entre as costas africana e brasileira.9 Quando Joaquina Maria

chegou a Jaguarão, possivelmente buscou formas de libertar-se. Realizamos uma análise em 200 cartas de alforrias, e chegamos a conclusão que Joaquina Maria era uma forte candidata a liberdade: mulheres, africanas, que compravam sua liberdade com dinheiro de seu próprio trabalho foram as

principais encontradas na documentação.10

Como estilo narrativo, optei em “costurar” as histórias de Faustina e Anacleto durante toda a dissertação, possibilitando perceber a comparação de forma palpável. No segundo ponto do capítulo, tratei de analisar o “começo de tudo” para o pardo Anacleto. Anacleto nasceu em 1851, numa estância no meio da província de São Pedro do Rio Grande do Sul: Encruzilhada. Se no primeiro ponto do capítulo analisei o trajeto atlântico da mãe de Faustina, no segundo ponto abordei o apadrinhamento de Anacleto e também suas relações senhoriais. Algo que merece destaque, é a condição social dos padrinhos de Anacleto: Nazário e Isabel eram escravos. Mas para além disso, eram cativos de outro plantel, o que significava oportunidade de circulação entre as estâncias de Encruzilhada para Anacleto. Através do inventário de seu senhor, Antônio de Souza Escouto, pude detectar uma grande presença de escravos em sua estância, cerca de 30 cativos, o que certamente configurava as relações senhorias da estância.

Passo agora para o terceiro ponto deste primeiro capítulo. Os leitores devem estar se perguntando o porquê de começar a análise da trajetória de Faustina a partir de sua mãe. É que algo sensacional ocorreu em Jaguarão no início de 1842. Apesar de Joaquina Maria ter grande chance de alforriar-se, acabou fugindo para o país que recentemente havia abolido a escravidão: o Uruguai. E por que e como essa fuga ocorreu? Poucos foram os detalhes que consegui sobre essa fuga a partir do processo-criminal instaurado, no entanto, outras fontes nos deram o panorama de fugas em direção a fronteira em meados do século XIX. Em alguns casos, os cativos fugiam por não terem

9 Através da expressão “da Costa da África”, relatado pelo réu Manoel Marques Noronha, apresentei possibilidades sobre o local de origem de Joaquina.

10 Sexo dos escravos alforriados: Homens (42,5%) e Mulheres (57,2%); Origem dos escravos alforriados: Africanos (32,3%) e Crioulos (27,6%); Formas de alforria: compradas (39%), gratuitas (30%) e condicionais (30%); Compradas: compradas pelo escravo (76%), comprados por terceiros (15%), outros (9%); Compradas por origem: africanos (44%), crioulos (25%) e não identificados (31%). APERS, Acervo dos Tabelionatos, Livros de Transmissões e Notas de Jaguarão.

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um bom relacionamento com seus senhores. Outros por querem também prejudicar a produção dos seus amos. As fugas encontradas normalmente apresentavam algo de resistência por parte dos cativos. No entanto, analisei um caso em que o preto Ezequiel, morador de Jaguarão, foi convidado a fugir com alguns parceiros mas não quis, alegando que sua senhora não lhe havia dado motivos

para a fuga. 11

No caso de Joaquina Maria, o Uruguai lhe dava a esperança de algo maior: o nascimento de sua filha, a preta Faustina, em território livre. E essa fuga deu certo. Em pouco tempo Joaquina já havia encontrado uma comunidade africana em Melo e logo depois casou, em 1850, com outro africano da Costa, chamado Antônio. Tudo parecia estável e tranqüilo para Joaquina e Faustina. Certo dia, após alguns anos de refúgio no Uruguai, um capitão-do-mato muito bem informado encontrou a escrava fugida Joaquina Maria. Nesse acontecimento, Manoel Marques Noronha, um velho capitão da Guarda Nacional, capturou Faustina afim de levá-la ao Brasil. No fim deste primeiro capítulo Faustina estava longe de sua família e partindo para o Império do Brasil, totalmente desconhecido para ela.

Voltando ao caso de Anacleto, no quarto e último ponto deste primeiro capítulo, investiguei uma prática muito comum na primeira metade do século XIX: o envio de cativos “rio-grandenses” para trabalhar em estâncias de proprietários brasileiros em solo uruguaio. Como o Uruguai pertenceu alguns anos ao Brasil, muitos estancieiros tinham propriedades em ambas as localidades. Foi este o caso de Antônio de Souza Escouto, senhor de Anacleto, que o levou em fins da década de 1850 para sua fazenda em Tupambaé, Cerro Largo, Uruguai. Retirado de seu contexto familiar, que envolvia sua mãe e seus padrinhos, Anacleto foi trabalhar num lugar jamais visto por ele, onde desenvolvia o trabalho de cuidar das ovelhas do seu senhor. Por quase dois anos este foi o cotidiano de Anacleto na estância de Tupambaé. No entanto, dois homens a cavalo - um índio e um negro – aproveitaram que Anacleto estava sozinho no campo e o roubaram. Agora era a vez de Anacleto passar por uma situação delicada.

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2. Sobre um tempo de incertezas – histórias entrecruzadas pela fronteira rio-grandense: a apreensão da preta Faustina e o roubo do pardo Anacleto

No final do primeiro capítulo, dois acontecimentos marcantes alteraram a vida de meus protagonistas: Faustina foi apreendida por um capitão do Mato que continha uma lista graúda de mais de 200 escravos rio-grandenses fugidos. E Anacleto foi roubado por José Maria e Crispim no campo que trabalhava e levado para ser vendido como escravo na cidade fronteiriça de Jaguarão. O interessante é que Faustina também foi para essa mesma cidade, onde o capitão-do-mato Manoel Marques Noronha procurou a senhora de Joaquina, Maria Duarte Nobre. Ao olhar os processos criminais que foram a base deste trabalho, percebi que havia certa semelhança na história de Faustina e Anacleto. Afinal, muitos afro-descendentes “escravos” ou libertos estavam sendo traficados pela fronteira a fim de serem vendidos como escravos pelo Império do Brasil.

Ao analisar as histórias com mais profundidade, descobri que as semelhanças eram só aparentes, pois os contextos de suas trajetórias não eram os mesmos. A preta Faustina foi apreendida pelo capitão do mato, devido um Tratado de Devolução de Escravos de 1851, em que Brasil e Uruguai estabeleceram direitos e dívidas. O Uruguai se responsabilizava em devolver aqueles escravos que tivessem fugido da província de Rio Grande para suas terras. Já a história de Anacleto era outra: ele foi roubado em 1860, no contexto da alta do preço no mercado de cativos. Ao mesmo tempo, muitos escravos eram vendidos via tráfico interprovincial para as regiões do Vale do Paraíba. A escassez de trabalho escravo permitiu a organização de redes de tráfico pela

fronteira rio-grandense.12

Voltando ao caso de Faustina. Um documento anexado ao processo criminal instaurado pela Justiça me chamou a atenção. Era a dita lista de escravos fugidos que Manoel Noronha carregava consigo. Como Silmei Petiz já havia trabalhado com fugas de escravos pela fronteira em sua dissertação de mestrado, me propus a cruzar os dados de Petiz com a da minha lista anexada ao

processo.13 Os resultados foram surpreendentes. Petiz coletou 944 fugas a partir de relatório

policiais guardados no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Apenas quatro registros se repetiram na comparação entre a fonte utilizada por Silmei e a lista de escravos fugidos que encontrei. Isso significou um acréscimo empírico de 262 cativos fugidos. A partir dessa lista,

12 LIMA, 2006. LIMA, 2007. 13 PETIZ, 2006.

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analisei algumas variáveis e percebi o seguinte: a maior parte das fugas era feita por escravos homens; fugiram individualmente e metade deles era de origem africana. Essas informações também puderam ser cruzadas com o material qualitativo sobre fugas do primeiro capítulo.

Ainda no primeiro ponto do segundo capítulo, investiguei como foi a apreensão de Faustina

– com detalhes quantitativos obtidos pela fonte – e como foi seu trajeto até a cidade de Jaguarão.14

Neste primeiro ponto, busquei defender que é preciso uma diferenciação entre roubos e apreensões. Não é somente uma variação lingüística. Creio que era uma prática diferente, que obedecia a um contexto específico. Portanto, a preta Faustina foi apreendida em virtude a fuga de sua mãe, e também pelo Tratado de Devolução de Escravos de 1851.

E o Anacleto? Quase oito anos depois, o pardo foi roubado (e não apreendido) no contexto da alta do preço de escravos, tanto no mercado fronteiriço como no restante da província de São Pedro. Esse roubo tratei com detalhes na dissertação, pois o próprio Anacleto relatou às autoridades

como havia ocorrido.15 Além disso, busquei conhecer em outros processos criminais histórias

semelhantes a de Anacleto. A partir do relatório do presidente da Província, de 1854, “um tráfico de

nova espécie”, era notícia corrente dos jornais e de “ouvir dizer” da sociedade da época.16

Observando os casos de roubos de “afro-descendentes uruguaios” e também de brasileiros, percebi uma estrutura de tráfico bem organizada, com homens de confiança como intermediários, pouso

para os traficantes e a vitima, trajetos escolhidos fora do olhar da polícia, etc.17

O que merece relevo nos primeiros dois pontos deste segundo capítulo, é o local para qual Faustina e Anacleto foram levados: a cidade fronteiriça de Jaguarão. Pensando nisso, realizei no fim deste segundo capítulo uma experiência metodológica com cruzamento de dados. Minha reflexão era a seguinte: será que existe relação entre o perfil das vítimas do tráfico e dos cativos vendidos em regiões de fronteira? Em outras palavras, os escravos roubados eram escolhidos pelos traficantes a partir do quanto valiam no mercado fronteiriço de cativos? Com esta problemática passei a analisar

14

“que na noite do dia em que passou pelas imediações desta vila de regresso para o Brasil a coluna que comandava o Senhor Barão de Jacuí lhe foi avançada sua casa por quatro homens armados e depois de havê-los maltratado a ele e sua esposa se foram levando-lhe sua filha Faustina e que como todos os quatro falavam brasileiro se supunha a levassem para aquele país”.

15

“que cuidando de algumas ovelhas do Sr. Ismael no campo, fora carregado por dois homens que andavam a cavalo [...] um se chamava José Maria, outro Crispim, que estão em Jaguarão, que este é índio e aquele é mulato [...] que o levaram para Jaguarão, para uma casa de capim fora da cidade”.

16 AHRS, Relatório do Presidente da Província: Apreensão de pessoas de cor no Território Oriental para serem vendidas nesta Província como escravas, 1854.

17 Analisei na dissertação os casos da preta Reina, os pretos Moisés e Francisco, a menor Luísa, a parda Martiniana, o menor Francisco e o crioulo Baltasar. Todos processos criminais que apresentavam algumas semelhanças com o caso de Anacleto.

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duas fontes documentais, os processos criminais e as escrituras de compra e venda de escravos.18 Comparando os dados, descobri que os principais roubos ocorridos nas décadas de 1860 – incluindo o de Anacleto, que tinha na época 8 anos – foram de escravos do sexo masculino, “moleques”, com idades de 8 a 14 anos, e que tinham um valor alto no mercado de escravos: perto de 1:200$. A ideia deste fim do segundo capítulo era preparar o leitor para a próxima parte da dissertação, em que me debrucei sobre o funcionamento do comércio de escravos em Jaguarão.

3. Negócios na fronteira-sul – a preta Faustina e o pardo Anacleto no comércio de escravos fronteiriço: Jaguarão, Pelotas e Rio Grande

No terceiro capítulo, me centrei no momento em que tanto a preta Faustina como o pardo Anacleto foram levados para Jaguarão e posteriormente vendidos para Pelotas e Rio Grande, respectivamente. Esta era um cidade com dinâmica comercial e também utilizada por diversos agentes sociais (soldados, estancieiros, comerciantes, etc) como passagem entre os dois países.

Num primeiro momento, apresentei dados referentes a população escrava e livre da cidade.19 Após

isso, demonstrei que Jaguarão era uma das cidades que mais tinham cativos em 1860, o que pode se

concluir pela própria trajetória de Anacleto pela cidade.20 Nos livros do tabelionato de Jaguarão,

encontrei centenas de escrituras de compra e venda de escravos, que permitiram perceber a

dimensão da escravidão e do comércio de almas nesta cidade.21

Das 249 escrituras de compra e venda de escravos que encontrei, cerca de 90% delas se referiam a transação de um escravo somente. Algo também constatado por Camila Flausino, em suas pesquisas sobre Mariana, Minas Gerais; e por José Flávio Motta, investigando duas cidades

paulistas.22 Penso que esses dados condigam com a própria realidade de um comércio local, que

atendia a necessidades específicas. Dentre entre as escrituras, chamou-me a atenção uma transação

18 Em processos criminais, 63% dos casos eram de “afro-descendentes” entre 8 a 14 anos. Em escrituras públicas de compra e venda, 19,6%. Sendo essa a maior porcentagem de todas. Os “moleques” se destacaram tanto no momento do tráfico como no momento da transação a partir de compra e venda de escravos.

19

Em 1833 a população jaguarense era de 5.457 indivíduos ao todo, entr “brancos” e “pretos”. Os “brancos” (livres) eram 2.856 (52,34%), e os “pretos”, 2.601 (47,66%). Fonte: FRANCO, 2007, p. 115.

20 Jaguarão possuía 28% de população escrava, enquanto Porto Alegre tinha 22%. Fonte: CAMARGO, Antônio E.

Appenso ao Quadro statístico e geographico da província de São Pedro do RGS. Porto Alegre: Typographia do Jornal

do Comércio, 1868, AHRS.

21 Jaguarão foi o quinto município em números de escrituras de compra e venda de escravos (605), ficando atrás apenas para Porto Alegre, Cachoeira, Rio Pardo e Rio Grande.

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de 50 escravos, todos do sexo masculino, que ocorreu em 1862 no valor de 70:000$, que analisarei com profundidade mais adiante. Sobre a variável “sexo” dos comercializados em Jaguarão, encontrei 55,8% de homens e 43,8% de mulheres. Em relação a “origem” africanos estes números mudam: 71,6% do sexo masculino e 28,3% do sexo feminino. Os crioulos não apresentaram grandes diferenças: 50,9% para homens e 49% para as mulheres. Isso significa que o comércio de escravos em Jaguarão acompanhou o ritmo e impacto da Lei Euzébio de Queirós, que proibia a entrada de africanos.

Um dado interessante é sobre a origem destes crioulos comercializados em Jaguarão. Muitos deles acompanhados da expressão “desta Província”, “de Herval”, “de Arroio Grande”, “de Jaguarão”. O que constatei é que a transação de africanos foi uma tarefa da Sede, ou seja, o 1º Distrito de Jaguarão, não de suas freguesias ou distritos. Todos africanos encontrados na documentação provavelmente chegaram pelo porto da cidade, e por lá tenham permanecido, desenvolvendo serviços específicos. Outro dado encontrado foi a permanência de escravas mulheres na região urbana da cidade analisada. Creio que no meio urbano poderiam desenvolver diversas atividades, como as de quitandeira, lavadeiras, mucamas.

Sobre a idade dos cativos comercializados, encontrei que cerca 45% possuíam de zero a catorze anos. Outro elemento interessante é a procura por indivíduos do sexo feminino entre quinze e vinte um anos, e de vinte e nove a trinta e cinco anos: respectivamente, 22,4% e 12,4%. Observando as idades dos cativos transacionados, posso afirmar que, de forma geral, houve a procura por indivíduos que estivessem no início de sua vida produtiva. Isso talvez se devesse à sua facilidade em aprender certos ofícios, mas também à oportunidade de os senhores os educarem, de modo que se tornassem “bons cativos”.

Outra informação fundamental retirada das escrituras de compra e venda foi a variável preço dos escravos comercializados em Jaguarão. O preço dos homens foi superior ao das mulheres em todas as décadas analisadas, o que não é nenhuma novidade. Na década de 1860, por exemplo, um cativo custava, em média, 1:112$; em contrapartida que as mulheres custavam 968$. Ao analisar e relacionar s variáveis “sexo” e “origem”, compreendi que em todas as décadas os crioulos valeram mais que os africanos.

Visto o perfil dos cativos comprados e vendidos em Jaguarão, passei a uma próxima questão: até que ponto o mercado de escravos jaguarense funcionava como distribuidor de mão-de-obra para as demais cidades da província? Analisando a informação “morada” ou “residência” dos

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vendedores e compradores pode-se ajudar a responder essa questão. Cerca de 45% das transações registradas no 1º e 2º Tabelionato de Jaguarão tiveram como vendedores moradores da própria localidade. Acrescentando todos os vendedores de fora de Jaguarão, se observa 15% de indivíduos que passaram pela cidade fronteiriça e venderam seus escravos. Ao investigar o comércio desta cidade, percebi que existia uma relação direta entre a permanência de cativos e a economia jaguarense. Segundo Martins, “a principal indústria deste município é a pastoril, da criação de

gados vacuns, cavalares, muares e lanígeros”.23

Portanto, os cativos que ficavam em Jaguarão tinham um propósito: ajudar na recuperação econômica do município, já que após a Guerra Farroupilha houve grandes perdas. Se não encontrei uma saída de escravos da Sede de Jaguarão, não posso dizer o mesmo de uma de suas freguesias: a Freguesia de Herval foi observado que 22% dos cativos foram vendidos para fora de seu território.

No segundo ponto do terceiro capítulo, investiguei os passos de Faustina entre Jaguarão e Pelotas. Após chegar da vila uruguaia de Mello, Faustina permaneceu duas semanas em Jaguarão. Este foi o tempo preciso para que Manoel Marques Noronha encontrasse sua senhora, mas também que percebesse que a mesma não tinha o valor necessário para pagar seus serviços. Foi assim, que Maria Duarte Nobre e Manoel Noronha fizeram um trato: o mesmo debitou o preço da apreensão e comprou Faustina por 250$. Após essa transação, foram poucos os dias que Noronha permaneceu na cidade. Apenas o tempo para encontrar um vapor que o levasse para a cidade charqueadora de Pelotas.

Aceito a idéia que Noronha já tivesse possíveis compradores em Pelotas. Chego a essa conclusão pelo pouco tempo que permaneceu com Faustina. Será que duas semanas era tempo suficiente para levá-la a Jaguarão, encontrar sua senhora, descobrir a falta de dinheiro da mesma, esperar um vapor e encontrar um comprador em Pelotas? Por 350$ Noronha transacionou Faustina com o ferreiro Henrique Rockmann. Em relatos à Justiça, Rockmann em nenhum momento desconfiou que Faustina fosse livre. No entanto, exatamente quando as investigações começaram Rockmann decidiu vender Faustina, por 500$ ao Capitão José da Silva Pinheiro. Foi na posse deste indivíduo que as autoridades encontraram Faustina.

Chegou o momento de acompanhar a trajetória do pardo Anacleto entre Jaguarão e Rio Grande. Diferente de Faustina, Anacleto permaneceu mais tempo na cidade fronteiriça: cerca de 2 anos. Após raptarem Anacleto do campo em que trabalhava no Uruguai, Crispim e José Maria

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levaram o mesmo a cidade de Jaguarão, mais especificamente a casa de Manoel da Costa e Francisca Porciúncula. O primeiro não estava em sua casa, pois residia por alguns meses em Rio Grande. A jovem Francisca contava com seus 20 anos quando resolveu fazer um investimento: comprar um escravo na ausência de seu marido. Francisca deu um valor simbólico de adiantamento, enquanto os “traficantes” convenceram que voltariam para pegar o restante do dinheiro. Mas nunca mais voltaram. Uma informação importante é que Anacleto foi vendido pelos traficantes como “Gregório”. Anacleto não deixou de dizer a Francisca, e até a Manoel da Costa, quando voltou de Rio Grande, que havia sido traficado do Uruguai. Além disso, informava seu verdadeiro nome, Anacleto.

Manoel da Costa era oficial de funilaria e trabalhava realizando serviços em sua própria casa. Como “Gregório” permaneceu dois anos em sua casa, penso que o mesmo tenha ajudado Manoel em serviços diversos, além de acompanhar sua senhora pelas ruas de Jaguarão, lembrando que ter um cativo também era símbolo de ascensão social. Concluídos dois anos de “Gregório” em Jaguarão, Manoel da Costa o levou a Rio Grande. Lá foi vendido por 680$ a José Maria Maciel. Este, deixou “Gregório” em uma casa de leilão, de propriedade de José Perry de Carvalho. Foi nesta casa que o charqueador Miguel Mathias Velho o compro por 1:110$. É perceptível o aumento do seu valor, de 680$ a 1:110$.

Foi nas mãos de Miguel Mathias Velho, em sua charqueada chamada “Sangradouro”, que “Gregório” foi reconhecido como Anacleto por alguns peões que passavam pelo local. Por mais de dois anos Anacleto foi chamado de Gregório. Até nas transações comerciais seu nome era escrito assim. Miguel Mathias Velho, desconfiado de toda a situação, levou o agora Anacleto às autoridades. E foi lá, que o pardo pode contar toda sua história, desde seu nascimento em Encruzilhada, seu envio a Tupambaé, seu roubo, vivências como escravo de Manoel da Costa e sua chegada a Rio Grande.

Antes de finalizar esta amostragem do terceiro capítulo, é necessário dar atenção ao perfil dos compradores e vendedores. Tinha a curiosidade de saber quem eram aqueles comercializavam cativos em Jaguarão. No que se refere ao sexo dos negociantes, percebi que tanto para vendedores como para compradores os homens dominaram nas transações, 80,7% e 91,1%, respectivamente. Poucas mulheres foram percebidas na documentação. Imaginava encontrar poucas vezes um mesmo vendedor envolvido nos trâmites da escravidão. E foi mais ou menos isso que aconteceu. Cerca de

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80% dos compradores compraram apenas um escravo, e depois nunca mais foram vistos na documentação. O mesmo para os vendedores: 86% deles tiveram apenas uma aparição.

Chamou-me atenção a existência de seis compradores (2,9%) que envolveram-se em várias transações consecutivas. Maria Antônia Muniz, por exemplo, comprou seis escravos, em cinco escrituras. Muniz era moradora em Piratini e vendeu seus cativos em Jaguarão, em três momentos distintos. Em 27 de agosto de 1862, em 12 de dezembro de 1862 e 07 de abril de 1863. Na primeira data, Maria Muniz vendeu quatro escravos (Francisca, Rosaura, Bendito e Albana), todos crioulos e em fase produtiva, angariando o valor de 5:000$! Foram três compradores diferentes: Manoel Amaro da Silveira, Manoel José Gomes de Araújo e Amaro da Silveira Freitas. Em setembro do mesmo ano, Maria Muniz ainda vendeu o cativo Benigno, um preto de 20 anos, campeiro, que lhe rendeu 1:666$. Cerca de seis depois, Muniz voltou à cidade de Jaguarão e realizou a última venda que temos notícia: a da preta Isabel, 10 anos, Crioula, por 1:200$, a Hilário Amaro da Silveira.

Agora, passarei a apresentar um caso de um comprador recorrente. O indivíduo que mais participou nas compras de escravos em Jaguarão, chamava-se Antônio Gonçalves de Aguiar, e registrou o total de cinco escrituras. Aguiar comprou escravos regularmente, entre os anos de 1862, 1864, 1865, 1867 e 1869. Antes disso, encontrei Aguiar comprando escravos em Rio Grande, nos anos de 1860 e 1861. O mais interessante é que Aguiar nunca vendeu escravos, quer em Jaguarão, quer em outra cidade da província. Pelo menos, não encontrei uma escritura de venda nos livros notariais analisados. Os escravos comprados por Aguiar ao longo da década de 1860, chamavam-se Jacinto (Angola, 35), Amâncio (preto/24 anos), Bento (Crioulo/12 anos), Teodoro (Crioulo/8 anos), Januário (Crioulo,11 anos), Cândido (pardo/13 anos), e Reginaldo (pardo, 12 anos).

Inicialmente, entre 1861 e 1862, Antônio Gonçalves de Aguiar preferiu adquirir um cativo africano e outro crioulo, dentro da faixa etária produtiva. No entanto, nas transações que se seguiram, Aguiar resolveu comprar escravos de menor idade, todos do sexo masculino. É verdade que um dos cativos foi comprado como “substituto” para que seu filho, Emílio Lorena de Aguiar, não servisse na Guerra do Paraguai. No entanto, os demais foram comprados para realizarem algum trabalho específico, provavelmente em uma charqueada. Finalmente, no fim do capítulo analisei o caso da transação entre Jacinto Antônio Lopes e João Gonçalves Lopes, de 50 escravos do sexo masculino, que resultou na maior venda registrada em Jaguarão: 77:000$.

Descobri, analisando outros documentos em que o mesmo aparecia, Jacinto Antônio Lopes transacionando terras, gado, iates e também cativos. Além disso, Jacinto Lopes possuía muitas

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dividas decorrentes de empréstimos: a primeira encontrada foi de 20:000$, a segunda de 60:000$ e uma terceira de 180:000$. Todos esses empréstimos eram pagos com o lucro que fazia das vendas. Neste contexto, é que apareceu a venda de 77:000$ a João Gonçalves Lopes. Jacinto estava recuperando valores que posteriormente pagariam suas dívidas e liberando mais empréstimos para si. Neste terceiro capítulo, foquei no momento em que a preta Faustina e o pardo Anacleto foram vendidos no comércio de escravos de Jaguarão. Suas experiências permitiram que outras questões fossem trabalhadas, como: o perfil dos cativos, os valores, perfil dos negociantes e também o lugar de sua morada. Todas essas análises contribuíram para perceber com mais profundidade os trâmites da escravidão no extremo-sul da Província de São Pedro.

4 – Agentes da liberdade, agentes da escravidão: os conceitos de cidadania e solo livre e os destinos da preta Faustina e do pardo Anacleto.

Neste quarto capítulo, a proposta foi acompanhar os destinos finais dos protagonistas analisados, bem como a estrutura judicial em que permeou todo o processo. A idéia era não desconsiderar o tipo de documento (processos-crime) utilizado para a escrita da dissertação, e

percebê-lo como uma fonte que também tem sua própria história.24 Em outras palavras, uma análise

profunda ao documento que permite encontrar rastros importantes de como todo o processo foi julgado e organizado pelas autoridades. O que fiz neste capítulo, em partes, foi escrever como o processo foi sendo montado, passo a passo.

Por isso, no primeiro ponto do quarto capítulo, dei relevo a informações que normalmente passam despercebidas: datas, assinaturas, envio de documentos entre juízes, entrada das testemunhas, etc. O que isso contribuiu para meu trabalho? Muitas coisas. Entre elas, que o réu foi interrogado três vezes. As autoridades comparavam os testemunhos para ver se o réu estava falando a verdade. No processo de Faustina, houve demora na tradução das cartas do cônsul uruguaio para o português, o que demonstra certo desinteresse das autoridades brasileiras. No caso de Anacleto, o juiz ficou doente na semana em que devia declarar a sentença. Misteriosamente, o mesmo foi afastado do caso, entrando um novo personagem que aparentemente estava ao lado do réu. Coisas

24 “é necessário conhecer o estatuto do sujeito: saber, numa formação discursiva, quem fala, com que títulos, sob que condições, com que autoridade, segundo que sistema de legitimação institucional”. FOCAULT, 1971, p. 104.

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como essas trouxeram um ponto de vista da produção do documento, e permitiu um olhar mais crítico em relação ao processo em si.

No segundo ponto do quarto capítulo, demonstrei como a nacionalidade uruguaia de Faustina contribuiu para a sua liberdade. Diversos agentes, como os chefes políticos e vice-cônsules que representavam o Uruguai no Rio Grande do Sul, estavam ao lado de Faustina. Entre as correspondências desses agentes, encontrei até a Lei de Abolição uruguaia de 1842. Havia esforço por parte dos chefes políticos em defender a causa de seus compatriotas. No caso de Faustina, percebi também que o seu caso era representativo dos conflitos entre uruguaios e brasileiros. O Uruguai não estava satisfeito com as diversas intervenções brasileiras em suas terras. Por isso, em vários momentos Faustina foi chamada de “cidadã oriental”, “súdita uruguaia”, etc. Não que a mesma fizesse parte da nação uruguaia como cidadã de variados direitos. Mas seu caso mostrava o ímpeto que existia por parte dos uruguaios de defender sua causa.

No caso de Anacleto a história foi bem diferente. Anacleto não havia nascido no Uruguai, e sim em Encruzilhada, território brasileiro e escravista. Não encontrei chefes políticos defendendo sua causa. No processo de Anacleto, o mesmo aparece dentro de um contexto de luta pela propriedade. Seu primeiro senhor, Antônio Escouto, brigava nos tribunais dizendo que haviam roubado seu escravo. Miguel Mathias Velho também o considerava seu cativo, pois o tinha comprado por alto preço (1:110$) num leilão. Portanto, havia uma disputa entre senhores. O advogado de defesa tentava demonstrar que Anacleto era livre, por ter trabalhado cerca de 2 anos no Uruguai. No entanto, as autoridades de Encruzilhada pouco deram valor a isso. O que se precisava saber era quem o pertencia. O conceito de solo livre não teve efeito para seu caso e não lhe trouxe a liberdade. Anacleto foi reescravizado por seu primeiro senhor, Antônio de Souza Escouto. Seu fim, bem diferente do de Faustina, mostra que apesar de seus casos serem semelhantes em muitas coisas, o fim foi totalmente imprevisível.

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Últimas palavras...

Tentei neste breve texto apresentar as principais questões abordadas e analisadas em minha dissertação de mestrado. O tema da escravidão em regiões de fronteira tem sido trabalhado nos últimos anos com intensidade, no entanto, ainda há muito que fazer. Os casos de Faustina e Anacleto apenas apresentaram possibilidades de afro-descendentes na fronteira entre a escravidão e a liberdade. Com este trabalho, muitas outras questões surgiram. O próprio “processo abolicionista uruguaio” precisa ser analisado de forma mais profunda, percebendo os reais agentes de sua ação. Por vezes, foquei o Uruguai como um lugar de liberdade, uma liberdade ás vezes até utópica. No entanto, para muitos escravos como Anacleto, o Uruguai não se diferenciava muito do Brasil, já que o poder e a opressão do senhor permaneciam.

O capítulo que abordei o comércio de escravos em Jaguarão a partir de escrituras públicas de compra e venda e processos criminais, precisa ser mais discutida, tanto a nível metodológico, como de diálogo de dados. Em vários momentos senti-me só ao escrever este trabalho. Nem sempre pude ler textos que relacionassem as experiências aqui analisadas. No entanto, creio que o esforço de trazer à luz da História as trajetórias de dois anônimos tenha chegado a um objetivo concreto. Com ansiedade, espero poder discutir e dialogar este trabalho com os demais apresentados no V Encontro Escravidão e Liberdade.

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Referências

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