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2.1 Retrato no Feminino

2.1.1 À conquista de um estatuto digno

Em todas as sociedades e em todos os tempos, as leis, os preconceitos e os costumes tenderam a restringir a vida das mulheres, limitando a sua instrução, entravando o desenvolvimento das suas aptidões naturais e subordinando a sua individualidade ao juízo de personalidades alheias. Essa situação aduzia à injustiça social, legal e económica, repercutindo-se desfavoravelmente na vida colectiva e retardando o progresso socio-económico em geral. Durante muito tempo as sociedades obrigaram as mulheres ao pagamento de impostos e obediência à lei, sem no entanto lhes conceder, como aos cidadãos do sexo masculino, o direito de intervir. As diversas instituições políticas exerceram sobre as mulheres uma tirania incompatível ao negarem durante muitos séculos o direito legítimo à vida, à liberdade e ao voto.

Sabemos que semelhantes constatações eram entendidas como uma “decorrência natural”, como algo próprio da mulher e do seu temperamento. As identificações sexuais eram fabricadas, na prática, a partir dos papéis culturais e sociais historicamente construídos.

Durante o século XIX, as mulheres assumiram papéis concretos na sociedade burguesa, a qual as estruturava num ideal representativo de dona de casa, mãe e esposa, apesar de constatarmos que este ideal feminino se configurava como um simulacro nas franjas sociais menos favorecidas do mundo capitalista oitocentista. Nos meios economicamente mais baixos, a mulher era obrigada a ausentar-se de casa para poder trabalhar.

Perante o avançar da emancipação feminina, a sociedade patriarcal que começava a aburguesar-se para se salvaguardar, criara uma imagem consensual da mulher ideal, aquela que se dedicava ao lar, à família, ao esposo e à educação dos filhos. No entanto, na realidade da vida urbana registou-se a presença de mulheres nas ruas e nos trabalhos mais diversos, como em fábricas ou em casa de distintas familias, enquanto criadas.

Não foi somente pela igualdade jurídica e direito ao voto que as mulheres do último quartel do século XIX se debateram, mas também pela equiparação de salários. As novas exigências explicavam-se pelas transformações da sociedade europeia da época. Com a crescente industrialização, as mulheres das classes menos favorecidas foram, cada vez mais, abandonando o lar para se empregarem como assalariadas nas

indústrias ou nas casas particulares. As mulheres trabalhadoras entravam, assim, em contacto com as duras realidades do mercado de trabalho. Não esqueçamos que se, na época, os operários masculinos eram muito mal pagos, as mulheres ainda mais. Consequentemente, seria mais vantajoso as entidades patronais darem emprego às mulheres.

Nas classes superiores ou intermédias, muitas optaram por investir numa carreira académica, abrindo desta forma o horizonte a profissões que eram definidas maioritariamente como masculinas. Assistimos ao aparecimento de mulheres a singrar no mundo dos negócios como a Sr.ª D. Antónia Adelaide Ferreira, a ilustre vinhateira do Douro que ficou conhecida como a Ferreirinha. Outras decidiram levar à opinião pública as inspirações, os ensejos femininos, usando, para este efeito, a escrita, como o fez a jornalista Guiomar Torrezão. Muitas conseguiram ainda a consagração na área artística, como a actriz Rosa Damasceno, ou a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho.

Perante este panorama, emergiram dois fenómenos significativos. Em primeiro lugar, a partir do momento em que as mulheres se mostraram capazes de contribuir para o sustento da família, não foi mais possível tratá-las como simples donas-de-casa ou meros objectos de prazer. Por outro lado, as difíceis condições de trabalho impostas conduziram-nas a reivindicações que coincidiram com as da classe operária em geral, levando-as, também, à luta pela igualdade de direitos e a uma progressiva emancipação. Na longa tradição europeia, que perdurou até finais do século XVIII e mesmo durante parte do século XIX considerava-se as mulheres como seres inferiores em relação aos homens. Eram vistas como seres emotivos, pouco racionais e pouco organizados, a sua função básica e primordial circunscrevia-se à procriação e ao lar.

Apesar de esta ser a realidade, será fácil constatar que, desde sempre, muitas mulheres se destacaram como filósofas, chefes, rainhas, guerreiras, artistas ou demonstraram capacidades que teoricamente eram apanágio apenas dos homens. A história sempre as apontou como excepções e como tal foram valorizadas.

A defesa pela igualdade de direitos que incendiou o século XVIII alargou-se depois ao século XIX, acabando por estimular as mulheres a exigirem os mesmos direitos que os homens. Uma das primeiras a fazê-lo foi a inglesa Maria Wollstonecraft (1759-1797) na sua conhecida obra Vindication of the Rights of Woman, publicada em 1792, na qual exigiu a igualdade de direitos políticos para homens e mulheres.

O lugar da mulher, na mentalidade dominante do tempo, era no lar. A “rua” era reservada para as de comportamento mais duvidoso ou para as pobres obrigadas a

49 mendigar ou a trabalhar por não terem recursos suficientes para se dedicarem à nobre missão de procriar e cuidar do lar.

Na Europa do século XIX apercebemo-nos também de uma clara separação entre os dois sexos, no que diz respeito ao espaço público e privado. Esta divisão baseava-se num imaginário que reservava para as mulheres uma vida “interior”, em virtude da sua “inaptidão radical” para as coisas da política.67

Para o ego masculino era impensável as mulheres ficarem à frente das decisões políticas, pois, segundo os homens, colocariam o Estado em perigo, devido à sua natureza fraca e por não agirem «conforme as exigências da colectividade, mas segundo os caprichos de sua inclinação e seus pensamentos»68. Além dos princípios de organização política, existia também um discurso próprio dos ofícios que acentuava a divisão das esferas de actuação dos dois sexos: «Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos»69. Neste escalão social cabia, também, à mulher enquanto esposa, cuidar de si mesma e da organização do lar, iniciar os filhos nas primeiras letras e cuidar da sua educação.