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No campo da música clássica instrumental, encontramos referências a Félix Mendelssohn e Frédéric Chopin.

Sabemos que Maria Eduarda era uma excelente pianista, segundo as palavras de Gruges, «- A vizinha lá ficou agora a tocar Mendelssohn…. Tem execução, tem expressão, a vizinha… há ali estofo… E entende o seu Chopin.»163

.

As músicas, ecos de gostos populares ou nacionais, ou sucessos que passam em Portugal, vindos de França, de Inglaterra ou de Itália encontram-se absolutamente presentes nas obras queirosianas.

Numa época em que ainda não existiam nem rádio, nem televisão, era natural que, ao serão, como forma de entretenimento da família e dos amigos, se executassem peças musicais, tais como canções, árias de ópera, fados e modinhas.

Por isso mesmo, periódicos como a Gazeta das Salas apresentavam na sua primeira folha, na página de rosto, habitualmente uma partitura musical com uma polka ou uma mazurca. Outros periódicos como O Mundo Elegante, Branco e Negro ou Ilustração Portuguesa publicitavam músicas para piano (valsas, marchas, cantigas etc.), ou exibiam belas ilustrações que nos remetiam para ambientes musicais familiares.

158 Eça de Queirós, O Primo Basílio, p. 207. 159 Eça de Queirós, Os Maias, p.689. 160

O Mundo elegante nº 13 de 26 de Março de 1887 reporta a actuação da soprano Theodorini no papel de Norma em São Carlos.

161 Eça de Queirós, Os Maias, p. 337. 162

O Mundo Elegante, nº 16, 16 de Abril, 1887.

Tanto para a alta burguesia lisboeta, como para a pequena burguesia provinciana, tocar e cantar, sobretudo ao serão, era um fenómeno natural e socialmente enraizado. No fundo, os serões em casa dos Maias, de Luísa e de Jorge ou em Tormes e em Guiães eram o reflexo de uma realidade vivencial oitocentista.

Verificamos também que era usual os homens, mesmo aqueles que não exerciam qualquer profissão relacionada com a música, cantarem canções ou árias de ópera, como por exemplo, Jorge e Basílio ou o diplomata Steinbroken.

No Portugal do século XIX, a música assumia uma enorme importância social e educacional para as jovens moças. Nunca o ditame “saber tocar piano e falar francês” foi tão bem aplicado, bastando-nos pensarmos em Luísa, a jovem burguesa que deliciava os convidados quando tocava piano:

[…] sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos164: Ai! adeus, acabaram-se os dias

Que ditoso vivi a teu lado….

ou o final da «Traviata», ou o «Fado do Vimioso» muito triste, que ele lhe ensinara. 165 Uma outra exímia executante era Maria Eduarda, «que procurava os «nocturnos» de Chopin […]»166.

A música era percebida como um código social, uma linguagem, um meio de comunicação. A sociedade burguesa pretendia mostrar-se instruída musicalmente, frequentava as representações das obras de Meyerbeer, mas revelava-se profundamente ignorante, quando, por exemplo, num momento de ironia assinalável trocava o nome da “Sonata Patética”, interpretada por Cruges no sarau do Trindade, em Os Maias, por “Sonata Pateta”.

Não era apenas a ignorância do público que era ferozmente criticada por Eça; mas também a encenação, os músicos e os cantores. Em comparação com Paris, Lisboa

164 António Augusto Soares de Passos, (1826 - 1860) era um poeta português, natural do Porto. Oriundo

da burguesia liberal, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, em 1854, datando dessa época a sua colaboração na revista Novo Trovador, ligada ao romantismo do período político da Regeneração. Colaborou ainda em outras publicações, como O Bardo e A Grinalda. Autor de poemas de exaltação cívica, confiante na vitória do homem, na conquista do progresso e da liberdade, dedicou-se simultaneamente a uma poesia delicada, reflexo da dor pessoal, do sentimento amoroso ou trágico (por vezes rematado de forma optimista, numa compensação metafísica do sofrimento humano) e marcada pelo espectro real da morte (Soares de Passos sofria, desde jovem, de tuberculose). Foi autor de um célebre poema do ultra-romantismo português, «O Noivado do Sepulcro», recitado e até cantado em reuniões familiares e sociais. Embora revelando uma certa autenticidade, por vezes majestosa, o facto de se prender a preceitos de escola literária, recorrendo a banalidades e estereótipos, veio a fazer com que fosse caricaturado pelos realistas como o protótipo do poeta ultra-romântico. Em 1856, publicou o seu único livro, Poesias.

165

Eça de Queirós, O Primo Basílio, p. 28.

87 aparecia como uma modesta capital de província, onde a qualidade dos espectáculos de ópera era bastante medíocre. Não obstante, os periódicos davam uma imagem divergente da realidade satirizada, valorizando sempre os artistas nacionais.167

Relativamente ao fado, sendo a canção nacional, surge também ele citado em Os Maias. Não constituindo propriamente um estilo musical alegre e dançante marcou definitivamente a sua presença na obra queirosiana:

Noutra ocasião o marquês trouxe de Lisboa, apinhados numa tipóia, fadistas famosos, o «Pintado», o «Vira-Vira» e o «Gago»: e depois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.168

Evidentemente, este género de festa não acontecia em casa de Afonso da Maia, no Ramalhete, onde reinava um certo puritanismo e elitismo em termos musicais.

No caso específico do fado, apesar de representado na obra queirosiana, este era essencialmente conotado, no século XIX, com as classes sociais mais baixas e com um certo tipo de vida boémia. Leopoldina, a amiga de Luísa, personificando a imagem da mulher boémia, imoral, adúltera e libertina, demonstra uma predilecção por fados. Talvez o romancista tenha escolhido este tipo de canção para justificar o modo de vida escolhido por Leopoldina.

O piano e a ária de ópera apareciam, assim, associados às classes sociais mais elevadas, enquanto a guitarra e o fado eram pertença das classes sociais mais baixas, roçando mesmo uma certa marginalidade.

Mas dançava-se a valsa, a rainha das danças de salão durante o século XIX. Temos na obra queirosiana alguns exemplos concretos como a “valsa da Belle Hélène”169

, as obras de Strauss como a “valsa do beijo”170 . Uma valsa diversas vezes

167 «Rey Collaço tocou Mozart, Schumann, Beethoven, Mendelssohn, Scarlatti, Chopin, e Strauss Tansig.

A música clássica, tão resistente e tão incompreendida para a maioria dos pianistas, foi para o célebre

virtuosi um triunfo colossal, e para muitos da que pela primeira vez a ouviram e sentiram, uma revelação.

[…] Nunca Schumann e Beethoven, Mendelssohn e Chopin, foram assim interpretados por um artista nosso, que é, sem contestação, uma das nossas glórias, um dos nossos legítimos orgulhos, quanto ele provar lá fora, ao som dos bravos e das palmas que no pequeno Portugal ignorado e obscuro existem grandes talentos privilegiados, susceptível de reproduzirem o pensamento dos misteriosos e quase inacessíveis Deuses da harmonia. O público, arrebatado, fez uma calorosa ovação, ao artista, chamando-o repetidas vezes e cobrindo-o de flores e palmas.» in O Mundo Elegante, nº 23, 4 de Julho, 1887

168 Eça de Queirós, Os Maias, pp. 527-528.

169 Ibidem, p. 507. Valsa da autoria de Jacques Offenbach.

170 Eça de Queirós, O Primo Basílio, p. 206. Valsa da autoria de Johann Strauss Filho, para a opereta “Der

Lustige Krieg” (A Guerra Alegre), que Strauss dedica a Angelika Dittrich a sua segunda esposa, que não lhe foi fiel, levando a anulação do casamento.

assinalada era a “valsa da Madame Angot”171, «Na rua, sob as janelas, um realejo ia tocando, na alegria da manhã de sol, a valsa da «Madame Angot».»172

As diversas referências musicais que encontramos nos romances de Eça de Queirós não são apenas circunstanciais, meros traços de uma escrita realista ou naturalista, somente destinadas a acrescentar verosimilhança a trama narrativa.

A música, tal como as descrições de vestuário ou de mobiliário, por exemplo, assume também, claramente um papel importante, pois encontra-se intimamente relacionada à acção e era, frequentemente, uma peça fundamental na construção do próprio romance. A escolha das composições musicais não era, assim, aleatória. Eça, tal como um realizador cinematográfico, utiliza frequentemente uma determinada peça musical para sublinhar a acção ou o estado de espírito dos personagens, elaborando uma trilha sonora que acompanha todo o contexto narrativo.

Em determinadas ocasiões podemos afirmar que a música chegava a influenciar a progressão da acção. Assim, em O Primo Basílio a bela voz de Basílio contribuía para o despertar do interesse amoroso de Luísa por este. As cenas de sedução em casa de Luísa eram intercaladas por vários trechos cantados por Basílio, cooperando a música para a criação de uma atmosfera sensual, onde a resistência de Luísa era abalada:

Basílio dizia com uma melancolia grave a primeira frase, tão larga, da canção: Igual ao mar sombrio

Meu coração profundo…

[…] Os olhos largos de Luísa afirmavam-se para a música – ou a espaços, com um movimento rápido, erguiam-se para Basílio. Quando, na nota final, prolongada com a reclamação de um amor suplicante, Basílio soltou a voz de um modo apelativo:

Vem! Vem

Pousar, ó doce amada. Teu peito contra o meu…173

Não era somente Basílio que tinha o dom de cantar, o próprio Jorge demonstrava, também ele, ter o hábito de cantar trechos de ópera:

E saiu, feliz cantando com a sua boa voz de barítono: Dio del oro,

Del mundo signor La la ra, la ra.174

171 Valsa da autoria de Charles Lecocq para a ópera cómica “La Fille de Madame Angot”. 172 Eça de Queirós, Os Maias, p. 352.

173

Eça de Queirós, O Primo Basílio, p. 109.

89 No mesmo romance, o desenrolar de toda a acção, que envolverá a morte da criada Juliana, será descrita numa analogia constante com a representação da ópera “Fausto” em São Carlos, onde Luísa, o marido, juntamente com D. Felicidade assistiam nesse mesmo espaço temporal, o que adensa a carga dramática da própria narração dos acontecimentos. Estamos perante o que podemos denominar de um paralelismo trágico: a morte trágica de Juliana decorria durante a representação da tragédia de Fausto. Tal como Fausto, Luísa e Juliana venderam a sua alma, não ao diabo, a primeira à luxúria do prazer carnal do adultério, a segunda à ganância. Tal como Fausto ambas foram castigadas duramente com a morte.

Podemos, assim, afirmar que existem, indubitavelmente, referências musicais essenciais à arquitectura dos romances e a sua omissão implicaria a destruição da própria obra.