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Encontramos em A Cidade e as Serras a explanação de hábitos característicos da vida provinciana, típicos da própria existência da aldeia serrana, muito diferentes, do frenesim citadino lisboeta. Costumes da vida rural marcados pelas estações, relatados por Zé Fernandes:

Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; de tamancos nos pés assisti à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz, nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiais, a arranchando a magustos, serandando à cadeia, atiçando fogueiras de S. João, enfeitando

183 O Mundo Elegante, nº 3, 15 de Janeiro, 1887. 184 Branco e Negro, nº 25, 20 de Setembro, 1896. 185

Eça de Queirós, Os Maias, p. 43.

93 presépios de Natal, […] Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu, […] A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.187

Os bailes ou bailaricos eram bastante usuais na província, eram momentos de lazer, de convívio e de divertimento, permitindo através da dança um contacto mais próximo entre homens e mulheres. Zé Fernandes pretendeu organizar um bailarico no dias do seus anos, e «[…] recolher tarde, depois de um bailarico campestre, no pátio, já enfeitado para esse efeito de lanternas chinesas. […]»188

Outros momentos de sociabilização com uma vertente mais solene e de devoção eram as romarias muito populares na região norte de Portugal, «[…] Veio depois a devota romaria da Senhora da Roqueirinha. […]»189

Destacamos ainda as procissões, que não eram um exclusivo das zonas rurais mas também usuais na cidade, como a do Senhor dos Passos em Lisboa, eco de um provincianismo lisboeta agarrado à tradição cristã. Um acontecimento religioso marcante que segundo o Ega, «[…] Há duas coisas que é necessário ver em Lisboa…um procissão do Senhor dos Passos e um sarau poético!»190

Também foi na procissão do Senhor dos Passos que Juliana «tornou a ver o Sr. D. Augusto – uma tarde, com uma opa roxa, lúgubre, na Procissão de Passos!»191

As procissões eram bastante participadas pelo público feminino, mas não era o único acto de devoção ao qual as senhoras dedicavam a sua fé: D. Maria Eduarda Runa, esposa de Afonso da Maia, não passava sem, «[…] as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira… […] »192

Personagem simbólica do mundo provincial onde a pureza e honestidade de sentimentos imperava será a Joaninha em A cidade e as Serras.

Em O Primo Basílio e em Os Maias encontraremos diversos conflitos pseudo- amorosos epidérmicos e superficiais aí latente, em associação com o que poderemos afirmar ser a uma secundarização da mulher como objecto erótico.193 Tais apontamentos

187 Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, p. 17. 188 Ibidem, p. 180.

189 Ibidem, p. 133. 190

Eça de Queirós, Os Maias, p. 537.

191 Eça de Queirós, O Primo Basílio, p. 79. 192 Ibidem, p. 19.

193

Cf. Frank F. Sousa, O Segredo de Eça. Ideologia e ambiguidade em “A Cidade e as Serras”, Lisboa, Cosmos.

não nos parecem suceder no último romance de Eça, A Cidade e as Serras, sobretudo relativamente à personagem de Joaninha.

A imagem de Joaninha acentuava, porém, uma posição oposta relativamente às restantes figuras femininas queirosianas anteriormente analisadas. As outras heroínas eram todas citadinas, elegantes e cosmopolitas. Podemos, de certa forma, argumentar a ideia que esta personagem deverá ser percebida como a figura feminina que sintetizava magistralmente essa oposição cidade versus campo. Segundo Lúcia Lepecki deveremos apreender Joaninha, enquanto personagem, do seguinte modo:

Quando, pela primeira vez surge diante do senhor de Tormes, ela é já a imagem da maternidade. Na última cena do livro - a subida para a serra - Joaninha é apenas uma componente do quadro, despersonalizado elo de ligação entre Tormes agora (o marido) e Tormes no futuro (o filho). Joaninha é, nada mais nada menos, do que aquela que contribui para que continue o mesmo estado de coisas, o mesmo estilo de vida, a mesma alienação. Não tem intervenção no andamento do romance e muito menos a tem numa possível evolução de Jacinto. Não estabelece com este qualquer diálogo, não contrapõe a sua visão do mundo à do marido: Joaninha nem sequer fala. Não é personagem abúlica, mas ausente, corpo físico destituído de espírito.194

Na opinião de Américo Guerreiro de Sousa, a noção da mulher queirosiana será um mero engano, uma cilada redutora e incompleta, porque apenas se verificou amplamente durante a fase naturalista do escritor. O mesmo estudioso adianta que Eça devotou um grande respeito pela Mulher «sobretudo no conto Adão e Eva no Paraíso (1897), e no final de A Cidade e as Serras onde Joaninha vem completar a redenção de Jacinto e, de um modo geral, na obra da terceira fase do escritor»195.

Será com uma atmosfera campestre povoada de flores silvestre, que o romancista anunciará a chegada de Joaninha, a heroína queirosiana, em A Cidade e as Serras. Uma personagem diversas vezes prenunciada ao longo da narrativa, mas ainda não deslumbrada pelo leitor. Será nesta natureza domesticada e familiarizada pela presença de flores e plantas que Jacinto, no final do romance, encontrará pela primeira vez Joaninha, ao deslocar-se à quinta desta, «Este caminho para a Flor de Malva é o caminho para o Céu»196; «E o pequeno campo, que se avista além, rebrilhava com uma doçura todo amarelo e branco dos malmequeres botões-de-ouro»197.

Deparamos em outras obras de Eça esta forte presença floral; em As Rosas, texto publicado nas Notas Contemporâneas, o autor associava as rosas tanto à imagem da

194

Maria Lúcia Lepecki, Eça na Ambiguidade, 1ª ed., Lisboa, Cosmos, 1993, p. 89-90.

195 Américo Guerreiro de Sousa A Mulher em Eça de Queiroz, in Dicionário de Eça de Queiroz, 2.ª ed.,

A. Campos Matos, org., Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pp. 621-622.

196

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, p. 196.

95 Virgem Maria como à de Vénus. Como bem apontou Frank F. Sousa, «A Joaninha do romance, mais do que a do conto [Civilização], assume uma postura simbólica, aparecendo [...], como uma espécie de Virgem Maria por um lado, e como uma figura também sensual, ou seja, uma espécie de Vénus rústica, por outro»198.

Relativamente a Joaninha, podemos ainda, segundo o mesmo autor realçar uma certa analogia com a imagem Virgem Maria:

[…] os ideais de santa, de mãe e de mulher bela e sã» e Jacinto, recebendo os «epítetos de Pai dos Pobres» e «bom senhor» - «O casamento de Jacinto e Joaninha é, assim, uma união cristã entre dois seres belos, jovens e virtuosos, além de abastados. Mas o ideal pagão de felicidade no campo (o ideal clássico da áurea mediocritas), as repetidas referências aos autores da Antiguidade grega e latina e aos arquétipos de vida que nele se encontram, parecem indicar que Eça tentou fundir a tradição cristã com a tradição clássica numa coexistência harmoniosa199.

O lado sensual da personagem ser-nos-á dado a conhecer pela descrição do narrador, logo no primeiro encontro em que conhece Jacinto. Um momento imediatamente seguido de um resumo, em elipse, no qual será relatado que casaram em Maio, numa ambiência toda ela florida:

[…] à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele200.

A alegoria representativa de Joaninha sintetiza o lado positivo e redentor da Mulher em oposição à perversão feminina associada a Madame d’ Oriol, Madame de Tréves, Luísa, Maria Monforte e à condessa de Gouvarinho.