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Capítulo 3: A construção dos espaços sagrados

3.1 O santuário de Asclépio em Epidauro

3.1.4 Ábaton

Pausânias, ao terminar de descrever o templo de Asclépio, faz uma despretensiosaΝcitação,ΝafirmaΝele:Ν“pertoΝdoΝtemplo está o lugar onde os suplicantes do deusΝdormem”66. A vaga menção poderia passar despercebida, poderíamos achar que aí apenas dormiam peregrinos exaustos após um dia de viagem cansativa ao templo. No entanto, as inscrições do santuário dão mostras que o edifício que Pausânias menciona rapidamente é onde ocorrem os rituais mais importantes do culto de Asclépio, e que justamente tornaram o culto famoso, os rituais de incubação. As inscrições chamam este

lugar de Ábaton ( ) ou Enkoimeterion (Ἐ ή ) e é justamente aqui que

os indivíduos adentrariam o espaço mítico através dos sonhos.

65 SCHULTZ, Peter. Divine Images and Royal Ideology in the Philippeion at Olympia. In: JENSEN, Jesper

Tae et al.. Aspect of ancient cults. p. 160-161.

Levando em consideração a referência de Pausânias, que o Ábaton não ficava longe do templo, e das próprias inscrições do santuário, especialmente uma que conta que o interior do Ábaton poderia ser visto pelo lado de fora67, Kavvadias concluiu que o edifício em questão era um pórtico que se situava a uma distância de 4,3m ao norte do templo68. A assertiva de Kavvadias permanece inconteste até hoje. De acordo com Milena Melfi, o edifício foi construído no segundo quarto do século IV a. C., ou seja, por volta de 350 a. C.69, portanto, após a conclusão do templo e o início das obras de construção do Tholos. O formato de pórtico, ou stoa, como citado acima, tornava um dos lados do prédio relativamente aberto, sustentado apenas por colunas e balaústres, enquanto os outros três lados ficavam fechados por paredes (ver figura 6).

Figura 6: Planta do Ábaton no século IV a. C.70.

Neste caso, o lado com as colunas era o sul, voltado assim para o templo. Desta maneira quem estivesse dentro do Ábaton poderia ver o templo, aparentemente, sem grandes dificuldades. São, ao total, 29 colunas em estilo jônico na parte exterior do edifício, estas colunas eram intercaladas por balaústres com cerca de 1,60m de altura. Na parte interna, encontramos 13 colunas, também em estilo jônico, que provavelmente teriam também separações em madeira, de modo a formar pequenas separações internas71.

Sua base formava um retângulo de mais ou menos 71m por 9,5m, divido em duas partes. A parte leste tinha apenas um andar, enquanto a oeste, aproveitando-se de

67 Provavelmente a inscrição IG IV², 1, 121, XI, que conta o seguinte caso: “Ésquines subiu numa árvore

para olhar dentro do Ábaton enquanto os suplicantes estavam dormindo. Porém, ele caiu da árvore sobre uma cerca e se feriu nos dois olhos. Num estado de desastrosa cegueira, ele foi como suplicante ao deus e, durante sua incubação, ele foi curado”.

68 KAVVADIAS, P. Fouilles d’Épidaure. p. 17-18. 69 MELFI, M. I santuario di Asclepio in Grecia. p. 42.

70 Image of Epidauros, Abaton (Dormitory). Disponível em: <http://www.perseus.tufts.edu>. 71 Epidauros, Abaton (Dormitory) (Building). Disponível em: <http://www.perseus.tufts.edu>.

um declive natural do terreno, tinha dois andares, sendo um deles subterrâneo, acessado por uma escada exterior de 19 degraus, também ao lado sul. O andar inferior possuía paredes, além de colunas dóricas e octogonais, embora o piso não fosse revestido, permanecia sendo de terra crua. A parte leste, de um andar, é provavelmente a mais antiga, alguns anos após a sua construção foi feita uma ampliação, na verdade uma duplicação, já que toda a estrutura foi copiada. Provavelmente, a ampliação se deu para suprir a demanda crescente de suplicantes ao ritual de incubação72. A estrutura do Ábaton também englobou o antigo poço e o pórtico de madeira do século VI a. C.73. Este poço permaneceu, no canto sudeste do Ábaton, e nele foram descobertas várias placas com inscrições agradecendo aos milagres realizados por Asclépio. Foi encontrada também uma fonte que funcionava durante o século IV a. C.74.

As quatro estelas com as inscrições relatando os milagres ocorridos no Ábaton (contidas no anexo de inscrições75) foram encontradas próximas ao muro leste, da parte mais antiga do mesmo. Isto levou Defrasse e Lechat a acharem que aí se encontrava a entrada do edifício76, que estava próxima também ao poço, onde possivelmente eram feitos os rituais de libação, condição preliminar para a entrada no recinto. Esta primeira divisão, segundo Milena Melfi, era aberta a todos, pois aí se localizavam as inscrições que, pelo menos aparentemente, poderiam ser lidas por qualquer um77. Pausânias e Estrabão mencionam que as viram sem maiores problemas e mesmo as inscrições fazem menção ao fato delas poderem ser lidas sem rituais específicos. A segunda parte, segundo Milena, era de acesso restrito e própria para a incubação.

Este edifício, como já foi referido, também poderia ser chamado de

Ἐ ή (Enkoimeterion), cujo significado poderia ser traduzido como um

“lugarΝparaΝdormir”,ΝouΝsimplesmenteΝ“dormitório”78. Seu nome mais conhecido, e de

certa maneira inquietante, é Ábaton. Em grego, (Ábaton) ou (Ádyton)

significaΝ literalmenteΝ “entradaΝ proibida”79 e, pelo que narra Isilo80, não se poderia

72 MELFI, M. I santuario di Asclepio in Grecia. p. 42. 73 Citados na seção: 3.1.1 Edifício E.

74 STILLWELL, Richard; MACDONALD, William L.; MCALISTER, Marian Holland. The Princeton

encyclopedia of classical sites. Epidauros.

75 IG IV², 1, 121, 122, 123, 124.

76 DEFRASSE, Alphonse; LECHAT, Henri. Épidaure. p. 142. 77 MELFI, M. I santuario di Asclepio in Grecia. p. 42.

78 LIDDELL; SCOTT. A Greek-English Lexicon. verbete: ἐ . 79 IDEM. Ibidem. verbete: .

adentrá-lo sem antes se fazer sacrifícios a Apolo Maleata. Parece que a entrada só era permitida à noite e unicamente para se realizar os rituais de incubação. Locais sagrados são, como já vimos, de entrada proibida, embora a proibição não signifique interdição total, apenas não é possível se colocar dentro do espaço sagrado de qualquer forma, mas protegido pelo ritual. Porém, como já afirmamos, determinados locais adquirem mais sacralidade do que outros, mesmo dentro do próprio santuário. O Ábaton parece ser um destes espaços que a interdição era ainda maior, pois, talvez, aí o contato entre o espaço profano e sagrado fosse mais intenso. Este era o espaço que, por excelência, o deus aparecia e curava.

Em sua parte superior, o Ábaton era um grande pórtico, porém, seu lado sul possuía uma escada que levava a uma câmara no subsolo, era provavelmente aí que os devotos dormiam durante a incubação. Esta câmara era completamente fechada, ela não possuía janelas, nem passagens para a luz, a única abertura era a porta de entrada. O chão não tinha revestimento algum, era de terra crua e batida, feito assim, talvez, propositadamente para que os suplicantes tivessem contato direto com a terra, já que ela era considerada uma poderosa deusa, chamada Gaia, de infinito poder regenerativo81. Nesta construção singular, os devotos, segundo Aristófanes82, deveriam consumir alguma comida. Em seguida, se apagavam as lâmpadas e, de acordo com o que conta o autor e as inscrições do Asclepeion, serpentes eram soltas enquanto os devotos eram pegos por Hipnos e adentravam o mundo dos sonhos.

O Ábaton, fechado, escuro, isolado, mais do que qualquer outro edifício do complexo do santuário, era o espaço de máxima interiorização e pessoalidade. Mais do que isto, ele servia como um portal, altamente sacralizado, seu nome o prova, é o lugar de entrada mais proibida dentro do santuário, que já é um lugar de entrada interdita, espaço duplamente sagrado. Sua função é levar o devoto para o mundo dos sonhos, para o espaço onírico. Aqui, Asclépio aparece definitivamente como um deus, falando diretamente ao suplicante, sem grandes lições cívicas, mas tratando de problemas individuais, falando e curando diretamente o necessitado na iminência de seu sofrimento. Um novo sentido de doença e cura é esboçado no culto e no santuário de Asclépio, muito mais específico do que o de Apolo Pean. Como afirmou Graf83, o culto

81 Ver capítulo 1. p. 32.

82 ARISTÓFANES. Pluto. 653-747. 83 GRAF, Fritz. Apollo. p. 79.

de cura de Apolo Pean não empreendeu nenhuma mudança no espaço, seus santuários continuavam tendo um altar e um templo. Já o culto de cura de Asclépio acarretou em mudanças nos dois tipos de espaço do imaginário grego. Ele trouxe a ideia de que a saúde poderia ser trazida pelo contato com o deus no espaço onírico, através dos rituais de incubação e, consequentemente, esta percepção empreendeu mudanças na forma como seus santuários eram concebidos no espaço físico, pois construções específicas foram feitas para se adentrar o espaço onírico, como, por exemplo, o Ábaton.

Figura 7: Edifícios do núcleo central do culto de Asclépio após as reformas do século IV a. C.84.