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Capítulo 4: Monumentos de fé

4.2 As inscrições de Epidauro

4.2.2 Curas realizadas por animais

Ainda durante a vigília, há outro tipo de cura realizada especificamente por animais. Sabemos que aos animais eram atribuídos poderes mágicos, a alguns eram atribuídos poderes ritualístico-curativos. Por exemplo, em alguns santuários a cabra era oferecida em sacrifício para Asclépio, pois esta, segundo Sérvio, tinha alguma influência sobre a febre55. Os cães também tinham função terapêutica análoga, sabemos, atravésΝdeΝArtemidoro,ΝqueΝosΝcãesΝeramΝresponsáveisΝpelasΝfebres,Ν“porΝcausaΝdaΝestrelaΝ Sirius,Ν queΝ causaΝ febre”56, como traz a febre ele também poderia levá-la. Da mesma maneira, o veneno da serpente também produz seu antídoto, reafirmando o paradigma do médico divino que tanto tem poder para curar quanto para ferir.

Alguns tipos de animais eram especialmente dedicados a Asclépio, como vimos no capítulo 2. As serpentes, e por extensão os répteis, eram associados ao deus com maior frequência, o próprio Asclépio não se afasta de sua serpente nas representações

55 SÉRVIO. Commentarii in Georgica. II, 380. Apud WALTON, Alice. The Cult of Asklepios. p. 79. 56 ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Livro II, 11. Sirius é uma das estrelas da constelação

iconográficas, por vezes, elas são a forma teriomórfica de Asclépio, não há relatos de serpentes sendo sacrificadas. Os cães, talvez por causa da cadela que o amamentou na infância, também são associados a Asclépio, como as serpentes, não eram sacrificados nos rituais. Os galos, e por extensão as aves, também tem ligação com os cultos de Asclépio, porém estes figuram como animais sacrificiais, o animal que deveria ser sacrificado, preferencialmente, no altar de Asclépio era, inclusive, o galo – a orientação era prevista em lei57.

Através das inscrições do santuário, e da literatura, sabemos que estes animais eram criados no Asclepeion de Epidauro, que eram tidos como sagrados e que realizavam curas. Assim, o poder do divino se espalha também para os animais abrigados dentro do santuário. Analisaremos, de início, como estes animais aparecem curando durante a vigília, ou seja, enquanto o devoto estava acordado, sem se fazer menção direta ao espaço onírico e ao deus.

121, XX: Lison de Hermione, um garoto cego. Enquanto acordado, um dos cães sagrados do santuário fez com que ele saísse com seus olhos curados.

122, XXVI: Um cão curou um garoto de Egina. Ele tinha um caroço no pescoço, quando ele veio ao deus, um dos cães do santuário, enquanto ele estava acordado, o curou com a língua. 122, XLIII: [— — —] de Cios com gota nos pés. Enquanto estava acordado, ele andava em direção a um ganso que mordeu seus pés e, fazendo-lhe sangrar, o curou.

Estes três relatos tem o mesmo estilo de narração, trazem o nome e o lugar de origem do devoto – com exceção do XXVI que apenas traz o local de origem, a parte do nome do XLIII está danificada e ilegível. Os relatos enfatizam o fato de toda a ação ocorrer durante a vigília, ὕ (hypar), e a descrição é breve. Os relatos também ressaltam o fato das curas serem realizadas por animais, nestes casos, duas curas feitas por cães e uma por ave. O relato XX é o mais breve, talvez por ser o primeiro neste estilo a aparecer no corpus de inscrições, não menciona como o animal procedeu à cura. O relato XXVI descreve que o cão se utilizou da língua para curar o tumor do pescoço

do garoto. Já o XLIII apresenta uma ambiguidade, ou a forma controversa que, às vezes, Asclépio também procede. O ganso morde os pés do devoto provocando a sangria, curando assim a gota que ele tinha nesta região do corpo. Ou seja, realiza a cura por uma oposição de sensações paradoxais, em outras palavras, um mal que traz um bem. Esta maneira paradoxal pela qual Asclépio age é citada por Aristides58. Verifiquemos o que nos relatam os outros milagres realizados por animais, desta vez, por répteis.

123, XLV: Melissa com um tumor curado por uma mordida de víbora. Ela chegou com um tumor na mão. Então, quando os criados descarregavam a bagagem para a mulher, uma víbora se arrastou até sua bagagem e ficou entre as folhas de enchimento de seu colchão. Quando Melissa chegou em Mantineia, ela foi descansar deitando-se no colchão, a víbora mordeu sua mão abrindo o tumor, assim ela ficou curada.

122, XXXIII: Tersandro de Hálix com consumpção. Durante sua incubação, ele não teve nenhuma visão. Então, foi levado de volta a Hálix numa carruagem. Uma das serpentes do santuário, entretanto, sentou-se na carruagem e assim permaneceu durante a maior parte da jornada, contorcida sobre si mesma. Quando eles chegaram a Hálix e Tersandro estava descansando na sua casa, a serpente desceu da carruagem e o curou. Após isto, a cidade de Hálix fez um inquérito acerca do que havia acontecido e chegaram a um impasse em relação à serpente, se a devolveriam à Epidauro, ou se deixariam-na no seu território. A cidade resolveu consultar o oráculo de Delfos para saber o que fazer. O deus decidiu que eles deveriam deixar a serpente lá e assentar um temenos para Asclépio, fazendo uma imagem dele e colocando-a no santuário. Quando o oráculo foi anunciado, a cidade de Hálix assentou o temenos de Asclépio e seguiu em repouso no comando do deus.

Este dois relatos nos chamam a atenção, pois são realizados fora do espaço sagrado, ou fora do espaço sagrado por excelência, o do santuário. Tanto no caso de

Melissa quanto no de Tersandro, os animais procedem à cura fora do santuário, nas cidades de origem de cada devoto. É como se o poder sagrado do santuário ou do deus permanecesse atrelado ao animal, mesmo ele estando fora do espaço sagrado, percebemos aqui a permanência da hierofania, ou seja, a manifestação do sagrado. Talvez, pelo fato de serem répteis, ou seja, animais mais associados com Asclépio, ou mesmo por serem a forma teriomórfica deste deus, eles concentrem mais poder hierofânico, permanecendo com este poder mesmo estando em novas regiões. A serpente sagrada trazida involuntariamente por Tersandro para a cidade de Hálix, por exemplo, significou a edificação de um novo temenos, de um novo recinto sagrado, para o deus Asclépio. Claro, com a devida autorização do oráculo de Delfos, uma vez que a serpente, sendo sagrada e tendo realizado uma cura, não poderia ser tratada de qualquer maneira e, pelo que podemos perceber, deveria ser repatriada para Epidauro. No entanto, foi permitido à cidade de Hálix tanto continuar com a serpente quanto construir um novo santuário para Asclépio. Muitos Asclepeions foram criados utilizando-se deste método, era comum que o culto de Epidauro fosse transladado para uma nova cidade por uma serpente sagrada, temos como alguns exemplos os santuários fundados nas cidades de Epidauro Limera59, Sicione60, Atenas61 e mesmo, posteriormente, em Roma62.

Apesar de, no caso de Melissa, não se fazer nenhuma referência ao ritual de incubação, podemos inferir que provavelmente ele não teve um resultado positivo, comoΝfoiΝexplicitadoΝnoΝcasoΝdeΝTersandro,ΝqueΝfezΝoΝritual,ΝmasΝnãoΝobteveΝ“nenhumaΝ visão”.ΝPodemosΝentreverΝqueΝnemΝsempreΝasΝincubaçõesΝeram bem sucedidas, ou seja, ir ao santuário de Epidauro, fazer a incubação, não era garantia de obter a cura, ou mesmo de entrar no espaço onírico, teremos a oportunidade de analisar esta hipótese, com mais detalhes, adiante. O que está em jogo aqui, no entanto, é que a cura é realizada, embora que não nas incubações, como era esperado, mas por se vir à Epidauro, mesmo não estando em Epidauro. De fato, a serpente e a víbora só curaram porque vieram de Epidauro, de certa maneira, as expectativas iniciais foram frustradas, por não se conseguir ter uma incubação bem sucedida, porém a cura veio quando menos se esperava. A intenção das inscrições é clara, a cidade de Epidauro continua sendo o

59 PAUSANIAS. Description de la Grèce. Livro III, 23, 7. 60 IDEM.Ibidem. Livro II, 10, 2-3.

61 MEIER. Sonho e ritual de cura. p. 24.

elemento catalisador, o ensinamento, além de ter fé e paciência, é que o devoto precisaria vir à Epidauro ainda que não fosse para ser curado em Epidauro.

121, XVII: Um homem que teve o seu dedo do pé curado por uma serpente. Sofrendo terrivelmente de uma ferida maligna no dedo do pé, ele foi posto em plena luz do dia no santuário pelos servos. Enquanto ele estava sentado num banco, o sono lhe apreendeu, então uma serpente surgiu do Ábaton e curou o dedo com sua língua e, logo em seguida, voltou de novo para o Ábaton. Quando ele acordou curado, disse que tinha tido uma visão: pareceu-lhe que um jovem com uma bela aparência pôs um remédio sobre seu dedo.

Neste relato, mais uma vez, é um réptil que aparentemente realiza a cura. Porém, verificamos que há uma intersecção de espacialidades aqui, que nos é muito reveladora. Primeiro, um homem cujo nome é ignorado é trazido para o santuário pelos servos, ou atendentes do templo, com uma ferida no pé. No original, o termo utilizado para se referirΝ aΝ estesΝ atendentesΝ éΝ “ ά ”Ν (therápon), palavra grega que deu origem à palavraΝ“terapeuta”ΝnoΝportuguês,ΝelesΝaparecemΝemΝumΝbomΝnúmeroΝdeΝinscrições,ΝeΝ provavelmente seriam mais uma categoria de funcionários do santuário destinada a ajudar a locomoção de devotos enfermos e a auxiliar os sacerdotes em algumas atividades, foram eles, por exemplo, que descarregaram as bagagens de Melissa, no milagre analisado anteriormente – 123, LXV –, ao que tudo indica, eles deveriam ser realmente algum tipo de atendentes.

Curiosamente, o relato faz questão de mencionar que a ação ocorre durante o dia, ά (methámera), ênfase curiosa, talvez isto se deva ao fato dos rituais de incubação se realizar prioritariamente à noite. A inscrição também faz referência a outro deus que atua, sobretudo, durante a noite, o Sono. Entretanto, o relato parece fazer questão de mostrar, com esta afirmação, que os poderes curativos dos rituais, de Asclépio e do Sono não estavam apenas limitados a uma parte do dia, mas poderiam ocorrer a qualquer momento.

Além disto, percebemos neste relato também que os sonhos não se produzem dentro do indivíduo, eles vêm de fora, eles são trazidos por um deus. A inscrição diz queΝoΝtalΝhomemΝfoiΝpostoΝsentado,ΝtalvezΝforaΝdoΝÁbaton,ΝeΝqueΝoΝSonoΝlheΝ“pegou”,ΝouΝ

lheΝ “apreendeu”,Ν oΝ verboΝ gregoΝ utilizadoΝ paraΝ descreverΝ aΝ açãoΝ foiΝ “ ό ” (labontos),ΝqueΝquerΝdizerΝ“pegar”,Ν“tocar”63. Ou seja, podemos afirmar que, para este público, os sonhos eram algo concreto, que precisava ser trazido por um deus, os sonhos não eram, portanto, um fruto da imaginação.

Depois de dormir, a narração conta que uma serpente sai do Ábaton e lambe o dedo ferido do devoto enfermo e, logo em seguida, volta para o lugar de onde ela saiu. Em seguida, a inscrição afirma que o devoto acordou curado. Até aqui, toda a ação foi narrada durante a vigília, da perspectiva de um expectador que vê toda a cena. Este relato não seria tão diferente dos demais que tratam de curas realizadas por animais se não fosse suas últimas linhas. Uma pequena descrição do sonho tido pelo devoto torna este milagre bastante significativo. No sonho, não é uma serpente quem aparece, mas sim um jovem de bela aparência, que põe um remédio sobre a ferida curando assim o doente. Percebemos, então, que uma estreita relação entre espaço onírico e o espaço da vigília é rapidamente explicitada. Os sonhos têm relação com a realidade, a serpente, animal considerado a forma terrestre de Asclépio, é o que é visto por quem está desperto, no entanto, no sonho, o próprio Asclépio é quem aparece como um belo jovem – sabemos, pelas estatuetas encontradas no Asclepeion, que o deus poderia aparecer também como um jovem garoto64. É por causa desta relação entre estas duas espacialidades que a cura pode ocorrer, afinal o ocorrido em sonho produz efeitos no espaço concreto do corpo, que pode ser definido na cura. A serpente no mundo desperto é o deus no mundo dos sonhos, o sonhado tem como resultado a cura do corpo no mundo desperto.

Assim, as últimas palavras deste relato são inquietantes, pois nos deixam sem saber se, para os antigos, foi o deus no espaço onírico que procedeu à cura, ou se foi a serpente no espaço terrestre. A ambiguidade, mais uma vez, parece ser proposital, provavelmente ela tem como objetivo mostrar a interdependência das duas realidades. Apesar de serem espelhadas e análogas, as realidades não são a mesma coisa, o que se vê durante a vigília, não é o que se vê em sonho, mas ambas se influenciam mutuamente. Podemos inferir o mesmo da leitura do milagre seguinte:

63 LIDDELL; SCOTT. A Greek-English Lexicon. verbete: ά . 64 Consultar anexo de imagens, figuras 08 (p. 189) e 09 (p. 190).

123, XLIV: Uma garota muda. Durante sua incubação, ela viu uma serpente descendo de uma árvore e entrando no Ábaton. Ela acordou assustada e começou a gritar, chamando sua mãe e seu pai, assim ela foi curada.

Mais uma vez, o nome do devoto não é citado, sabe-se apenas que ela é uma menina muda. Apesar da incubação ser mencionada, o espaço onírico é pouco detalhado, porém todo o relato é bastante significativo. Vemos ser propositalmente misturado o espaço onírico com o espaço desperto, como se, neste caso, um fosse a continuidade do outro, o terror do sonho se reflete na realidade e produz a cura, a menina adquire a capacidade de falar. O que nos chama a atenção é que quem aparece no sonho não é Asclépio, pelo menos em sua forma antropomórfica, como ocorre na maioria dos milagres, mas sim a própria serpente e, mesmo assim, não há um contato direto entre devoto e divindade. Apenas a visão do animal consagrado a Asclépio foi suficiente para trazer o resultado esperado.

Com isto, já podemos passar a analisar o restante do corpus que descreve diretamente o espaço onírico e os rituais de incubação.