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Decretava o Código de Posturas publicado em 1856, em seu artigo 14, que os proprietários de terrenos pantanosos, dentro de Belém e suas adjacências, eram obrigados a aterrar ou “dar esgotamento” às águas ali presentes dento do prazo a ser estipulado pela Câmara Municipal. Ao findar o prazo, o infrator seria “[...] condemnado em dez mil réis ou quatro dias de prisão [...]” (TREZE DE MAIO, 09.01.1856, p.2). Previa o artigo 17 do mesmo código, punição idêntica àqueles que lançassem águas infectas “[...] nas ruas, quintaes, pateos, estradas, e canos de casas, devendo estes servir sómente para dar sahida ás aguas pluviais” (TREZE DE MAIO, 09.01.1856, p.2). Por seu lado, o artigo 18 dizia respeito às praças, ruas, estradas, praias, cais e qualquer outro lugar público, normatizando que nesses locais era proibido lançar “[...] immundices, cisco, vidros, restos de peixe [...] o que só poderá ser feito nos logares, que as Camaras designarem por editaes. O infractor incorrerá na multa de dois mil rs. Ou um dia de prisão, e será obrigado a mandar fazer a limpeza á sua custa, ou pagar a despeza, que o Fiscal para isso tiver feito” (TREZE DE MAIO, 09.01.1856, p.2).

Naquela Belém que começava a se reerguer, importava normatizar a vida privada tanto quanto a pública, cabendo aos legisladores e aos médicos, esses, sob a forma de uma junta de higiene, estabelecer os limites entre o saudável e o insalubre, entre o limpo e o sujo, entre o moral e o imoral. A cidade, ainda longe dos tempos de riqueza que chegariam com a belle époque, mesmo que para poucos, ressentia-se de uma ação efetiva dos fiscais da municipalidade, assim dizia o Treze de Maio. Para o jornal, a fiscalização dos talhos de carne verde vendidos à população era mínima, implicando aí riscos à saúde dos citadinos. Da mesma

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forma, raras eram as visitas dos fiscais às praias, às tabernas, às ruas e praças de Belém, deixando-as em estado de abandono. Dizia o Treze de Maio:

Posturas naõ faltaõ, quase todas as semanas se promulgam novos artigos; o que falta é quem as faça cumprir. [...] Um mercado publico, uma caza para a venda do pescado fresco, cuja construcção está decretada desde 1851, tem sido obras que naõ se tem julgado necessarias, ao passo que seria o meio de remediar muitos dos males causados pelo deleixo de certos funccionorios (sic.) (TREZE DE MAIO, 28.04.1856, p.1)

Além do mercado público e da casa para venda de peixe, defendia-se à época ser fundamental a construção de um paço para a assembleia municipal, um paço para a câmara e um internato. Outra importante obra então defendida era a construção de um teatro capaz de corresponder à grandeza daquela nova cidade. O relatório apresentado à Assembleia Provincial do Pará, no dia 15 de agosto de 1856, pelo Presidente da Província, Henrique de Beaurepaire Rohan, publicado pelo Treze de Maio de 01 de setembro daquele ano foi incisivo:

Naõ há duvida, Senhores, que precisamos de um theatro digno da capital da província [...]. O acctual já naõ se compadece com a importancia crescente que vai adquirindo a formoza cidade do Pará. Todavia é nelle que funcciona a companhia dramatica que existe nessa cidade, e que constitue, por assim dizer, a unica diversaõ de que póde dispôr a classe a mais illustrada da população (TREZE DE MAIO, 01.09.1856, p.4).

A julgar pelo que diz o relatório, as diversões públicas – ou melhor, as diversões voltadas à elite – já se desenhavam como elementos do novo, do moderno, do refinado, muito embora ainda fossem poucas as opções oferecidas em Belém. Pontue-se: vivia-se então um momento que marcava o início do avanço capitalista sobre a capital do Grão-Pará, caracterizada, vale reforçar, por um estado de pobreza e de riqueza que, de certo modo, alimentavam um ao outro. Destarte, a construção de um portentoso teatro daria vazão ao gosto e às sensibilidades cada

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vez mais refinadas da elite, em muito educada por intermédio das artes, mas, ao mesmo tempo, o surgimento desse novo palco para diversões movimentaria a economia local, inclusive, gerando fontes de renda para a população pobre. Ouçamos o Presidente da Província:

As representações dramaticas, proporcionando um um entretenimento agradavel e innocente, tem a vantagem naõ só de inspirar dedicaçaõ á literatura e bellas artes, como também a de prestar um serviço á sociedade, fomentando diversas pequenas industrias, que formaõ o patrimonio das familias pobres (TREZE DE MAIO, 01.09.1856, p.4).

Como pode ser observado, as diversões e belas artes80 não eram pensadas para a camada pobre dos belenenses. O refinamento das sensibilidades, a educação dos gestos – suaves, disciplinados, requintados, civilizados, enfim – pertenceria ao universo da elite. Aos pobres, a indústria (de subsistência) gerada pelos bens culturais que ali se instalavam. Segregação, parece fato. E contradições. Por seu lado, as águas continuavam perturbando o progresso da cidade, constituindo-se em uma ameaça contante à saúde da população. Focos de miasmas, os pântanos deveriam ser dessecados a todo custo, pois dali surgiam as febres intermitentes que reinavam de forma endêmica. Reforçando o papel oficial dos homens da ciência (fundamentalmente, os médicos e engenheiros), dizia o relatório que era preciso, “[...] a todo custo, remover essa causa permanente de destruição. Para o conseguir, seria indispensavel ouvir o parecer de homens de sciencia, que se encarregassem de discutir e propor os meios práticos de realisar taõ importante melhoramento (TREZE DE MAIO, 01.09.1856, p.6).

Dessecar os pântanos e as áreas alagadiças compunha o processo de medicalização de Belém então esboçado. Assim, a capital do Grão-Pará integrava- se à lógica ora reinante no Brasil, fundamentalmente, nas grandes capitais. Nesse movimento, a população pobre era alvo contínuo dos médicos higienistas

80 Dizia o relatório em questão: “A excepçaõ da musica, os demais ramos das bellas artes naõ

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articulados aos poderes públicos. Pensando na cidade de São Paulo do entre séculos, Margareth Rago apresenta uma realidade em muito semelhante ao que começava a ser vivido na Belém já próxima dos anos de 1860. Diz a autora que em São Paulo, houve a preocupação “[...] com a medicalização da cidade, com a desinfecçção dos lugares públicos, com a limpeza dos terrenos baldios, com a drenagem dos pântanos, com o alinhamento das ruas, com a arborização das praças [...] (RAGO, 1987, p.163). Ainda pensando a partir de São Paulo, a salubridade dos rios impunha-se à ordem do dia, não apenas em decorrência dos acalorados debates científicos de então, protagonizados pelos defensores das teses miasmáticas em contrapartida aos que defendiam as teses microbianas, mas sobretudo em decorrência

[...] de uma realidade trágica: endemias e epidemias que flagelavam os habitantes das cidades brasileiras. E na década de 1890, doenças contagiosas desafiavam os tempos de progresso prometidos [...]. As pestes dizimavam a mão-de- obra imigrante e perturbavam o seu fluxo, inoculando ainda mais desconfiança em investidores internacionais, sócios da elite nativa nos negócios que envolviam a produção e distribuição do café no mercado mundial (JORGE, 2006, p.30- 31).

Contrastando esses quadros com o de uma Belém há pouco vitimada pela cólera, tem-se uma cidade que ressurgia da mortandade e do medo, e que tinha nas águas miasmáticas um problema a ser enfrentado. Mas essa Belém também era uma cidade que olhava à Baía que a banhava como lugar para o progresso, porque via de acesso e aporte ao mundo europeu, desde que sua espacialidade e formas de uso fossem reconfigurados e adequados à lógica do modo de produção capitalista. Em sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, ocorrida em 18 de novembro de 1858, sob a presidência de Ferreira Cantão, problematizou-se a demolição de casas próximas à Baía do Guajará para que ali fosse construído, enfim, o mercado público que tanto a cidade precisava. Defendia um dos deputados que Belém devia espelhar-se em cidades como o Rio de Janeiro ou mesmo em

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[...] outras cidades de paizes civilizados e com especialidade ás dos estados d’America do Norte [pois] nesses paizes de liberdade são edificadas as obras publicas a beneficio da cidade e do commercio. É o governo, sr. Presidente, que faz todas essas obras [...] abre docas e estaleiros [...] o que não acontece nesta nossa terra [...] “(DIÁRIO DO GRAM PARÁ, 07.01.1860, p.1).

Prosseguindo em seu discurso, o deputado afirma que a população de Belém crescia consideravelmente, aumentando também o fluxo econômico citadino, assim como a “[...] construcção de casas e armazéns nas ruas da marinha, e seguido por todas as da cidade [sendo que com] o augmento dos predios tambem tem havido o do valor d’elles e de suas rendas (DIÁRIO DO GRAM PARÁ, 07.01.1860, p.1). Como será visto no próximo capitulo da tese, o aumento do valor dos prédios situados às margens da Baía do Guajará terá um impacto direto na instalação dos primeiros clubes náuticos da cidade, dificultando a mesma. No momento, cabe pontuar que o crescimento urbano de Belém e as melhorias então realizadas deram- se de forma processual, impondo ao tecido da cidade ruas e prédios que se modernizavam, em contraste com a antiga (e pobre) estrutura dos tempos coloniais. Com efeito, para o olhar do deputado, afinado a um modelo europeizado de modernidade e progresso, as ruas de Belém não se encontravam como deveriam ser,

[...] nem como se deseja, nem como de acham nos paizes civilizados [pois fatavam-lhes] o essencial [...] os passeios lateraes para os viandantes andarem á sombra das casas [...] como em todas as cidades de paizes civilizados, como já se acham na corte e em outras cidades do Brasil [...] (DIÁRIO DO GRAM PARÁ, 07.01.1860, p.1).

Considerando a fala do político paraense, em 1860, Belém era uma cidade atrasada em relação ao mundo europeu e às principais capitais brasileiras. Cabia, portanto, integrá-la ao progresso então implantado no Brasil. Do refinamento cultural expresso pelas belas artes ao remodelamento urbano, um ensaio de

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modernidade e educação das sensibilidades se fazia imposição. A cidade que começava a demolir para construir, também era a cidade que forjava uma nova espacialidade e sentido à vida urbana que ali se arquitetava. As águas foram objeto desse projeto naquilo que representavam de obstáculo ao progresso e à ordem estabelecida, fosse porque insalubres, ou porque indomadas. Destarte, vê-se que ao final dos anos de 1860, as águas infectas dos pântanos que circundavam a cidade seguiam enfeiando Belém e mantendo-na sob perigo e assombro constante de febres e outras doenças “[...] que na mudança de estação sobretudo, nos accommettem, com quanto podessem ser melhorados por meio de sarjetas, que dessem esgoto ás suas agoas (DIÁRIO DE BELÉM, 30.08.1868, p.1). Mas, não apenas as águas guajarinas: as chuvas ignoravam o movimento de progresso e faziam com que as poucas praças belenenses se transformassem em “[...] pantano e deposito de agoas infectas durante o inverno, especialmente a do Bagé81, na qual se anda por cima de taboas, e a do quartel82. É isso devido á irregularidade do terreno, e a falta de escoamento das agoas pluviais” (DIÁRIO DE BELÉM, 30.08.1868, p.1).

A incursão sobre as águas não se resumia a dessecar aquelas julgadas infectas. Em uma cidade que se queria moderna, o abastecimento d’água depender da coleta em poços e fontes públicas se constituía em um problema, bem como a própria escassez de água potável em uma cidade às margens de uma Baía. A questão do abastecimento d’água potável se arrastava há décadas. Em 1862 houve um movimento político para, finalmente, implementar tal serviço. Para tanto, o então presidente da província, Araújo Brusque, defendia que, após algumas mdificações por si apresentadas, o contrato proposto pela empresa “Mediclott & CIA” deveria ser efetivado. Entretanto, a empresa não aceitou o sistema de amortização proposto por Araújo Brusque, inviabilizando a assinatura do contrato (CRUZ, 1944). Assim, naquele momento o abastecimento d’água por meio de encanamento tornou-se

81 Atual Praça Carneiro da Rocha (CRUZ, 1992. [1970]). É localizada em frente ao Arsenal da

Marinha.

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inviável, impondo assim a continuidade do serviço “[...] a ser feito pelos carros de venda, que iam abastecer no Paul d’Agua. Era o mesmo sistema antiquado que prosseguia, não obstante as tentativas feitas para modifica-lo” (CRUZ, 1944, p.23). De fato, ao longo do século XIX os poços se constituíram no principal meio de abastecimento de água em Belém83, sendo o poço do paul d’agua o mais expressivo deles, já que entre as fontes de água potável, era a principal, posto que, independentemente de ser da camada pobre ou rica da população,

[...] quase todos dependiam dessa fonte. Pode-se afirmar que o paul d’agua era na realidade um manancial, pois não existia apenas um poço, eram vários poços num mesmo local [...]. A ‘supremacia’ do paul d’agua durou até 1883, quando inaugurou-se o sistema de abastecimento canalizado de água [...] (SILVA, 2008, p.45. Grifos do autor).

Além do abastecimento d’água, outro problema se apresentava: intervir junto ao litoral da cidade objetivando modernizá-lo. Para isso, a construção de um cais, que se anunciava desde 1860, era cada vez mais impositiva, pois os trapiches e suas funcionalidades já não respondiam às necessidades da economia citadina, agora movida pelo comércio da borracha. O enriquecimento econômico e mesmo cultural, já iniciado, era acompanhado pela expansão territorial, notadamente no sentido centro-litoral, retomando e valorizando a região a partir da qual a cidade foi erguida. A retomada do crescimento urbano junto à orla belenense – e a consequente valorização dessa região – já se evidenciava em 1869. Sobre o tema, dizia-se que o afluxo populacional e o aumento de edificações

[...] desde o Largo da Sé até o arsenal de marinha, tem deperecido, e que tem ao contrario affluido habitantes e augmentado a edificação nos terrenos a beira-rio [...] e tal força tem tido esse desenvolvimento, que as ruas que vão da estrada de Nazareth até o rio [...] sendo há poucos mattas hoje

83 Sobre o tema, ler SILVA, Ivo Pereira da. Terra das águas: uma história social das

águas em Belém, século XIX. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia. Belém, 2008.

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estão quase em totalidade edificadas [porque] vão ter ao mar, e ficão a pouca distancia de bairros que em pouco tempo terão grande valor [...] (O LIBERAL DO PARÁ, 12.01.1869, p.1).

A partir do que diz o cronista é possível notar a associação entre o progresso da cidade e a urbanização dos bairros próximos ao rio, em especial ao então chamado de “cidade”84. Reconfigurar a espacialidade e os usos das águas guajarinas impunha-se à modernização da cidade, o que implicava a intervenção pontual sobre os braços de rio que, sob a forma de docas, já se faziam integrados ao novo sentido de urbanidade. Para além dos investimentos públicos destinados à construção do cais, defendia-se a necessidade de “[...] formular posturas tendentes a obrigar os moradores da beira-mar a melhorar o aspecto que offerecem os fundos de suas casas [...] (O LIBERAL DO PARÁ, 12.01.1869, p.1).

O projeto de redesenhar o litoral incluiria, dessa forma, além de a construção do cais, em detrimento dos trapiches que naquele momento ocupavam boa parte das margens guajarinas, a fiscalização e normatização das casas que ali se instalavam. Desenhava-se dessa forma um transcurso político que faria da vida pública e da vida privada um amálgama, o que ficaria mais evidente no início do século XX, movimento que, grosso modo, ficou sob responsabilidade dos engenheiros e médicos higienistas, cabendo também a esses últimos, a intervenção sobre os corpos.

O cais, já se aproximando do quartel final do século XIX, sequer saira dos gabinetes legislativos. Enquanto isso, as enfermidades, e o surgimento dessas, associados ao clima e, em particular, às águas, se constituíam em um problema

84 À época, Belém era formada apenas por dois bairros: Cidade e Campina, separados pela Travessa

São Mateus - hoje, Rua Padre Eutíquio (CRUZ, 1992. [1970]). O bairro “Cidade” hoje é chamado de “Cidade Velha”, que é a região onde se originou Belém, pedaço da cidade “[...] onde os portugueses, sob o comando de Francisco Caldeira de Castelo Branco, desembarcaram, construindo um forte de madeira e uma capela [...] os colonos abriram um caminho que chamaram de rua do Norte, e foram se aventurando na construção de casas para moradia (CRUZ, op.cit, p.30).

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que, presente desde tempos imemoriais85, se arrastaria décadas adiante. Assim, em 1876, o jornal A Província do Pará, sob o título de “Hygiene Publica”, projetava um quadro preocupante para a capital do Grão-Pará, após relatar serem “desanimadoras as noticias que nos chegam do sul [pois a febre amarela vai] disseminando a população da côrte, e em diversa provincias lavra o mesmo mal” (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 19.04.1876, p.2). Outra vez sob a ameaça de uma doença, o jornal alertava que um verão “pressuroso” se aproximava, indagando que “[...] se não houver sérias providencias entre nós, qual a sorte que nos aguardará? [Tememos assim a] indiferença com que vai sendo aqui encarado pelos poderes competentes o mal que se nos avezinha” (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 19.04.1876, p.2). Quais os problemas a serem vencidos, ou ainda, o que existiria de propício ao surgimento do mal que se avizinhava? As águas pestilentas e os cortiços86, afirmava taxativamente:

[...] vivemos aqui cercados de terrenos pantanosos, grande parte das ruas da capital apresentam o triste aspecto [...] de um sem numero de lagoas formadas pelas agoas pluviais que dentro em breve ficarão estagnadas por falta de chuvas que renovem as mesmas agoas, tornando assim essas lagôas verdadeiros focos de mephíticas exalações miasmáticas [...] Não pequeno numero de albergues, conhecidos pela denominação de cortiços, fructo de moderna especulação nesta cidade, onde impera o maior abandono de limpeza, são outros tantos focos de miasmas (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 19. 04.1876, p.2).

85 Em 1844, dizia-se: “A cidade de Belém e a maior parte das cidadese povoados da província estão

situados em uma grande planície, coberta por espessas florestas, entrecortada pelos braços numerosos do Amazonas, cujas águas transbordam, segundo a abundância das chuvas e a força das marés, e submergem uma grande extensão de terrenos argilosos, os quais se reduzem a pântanos à margem das águas dos dois principais braços do Amazonas: Bujaru e Guajará. Duraante as chuvas, do mês de abril ao mês de agosto, esses transbordamentos se efetuam sobre terrenos lodosos, que recebem os despojos vegetais das florestas virgens. A fermentação pútrida é de fácil operação nessas misturas de águas estagnadas e detritos vegetais, sob a influência do sol (SIGAUD, 2009. [1844], p.152).

86 Sob a presidência do Intendente Antonio Lemos, a sessão da Câmara Municipal realizada em 18

de junho de 1900 aprovou: Parágrafo segundo: Entenda-se por cortiço serie de quartos, geralmente de madeira, dando todos para um pateo ou corredor commum pelo qual se communicam com a via publica, sem o conforto necessario nem o mais rudimentar principio de hygiene, servindo de residência a muitos indivíduos e não dispondo de banheiros, cosinhas e latrinas em numero correspondente ao dos seus habitantes (O PARÁ, 09.07.1900, p.3).

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A insalubridade das moradias, o abandono – seria ausência? – de hábitos higiênicos, bem como, a incômoda e nociva presença das águas impuras, simbolizavam a contramão da civilidade ora gestada por médicos e pelo Estado. Nesse sentido, Sidney Chalhoub (2006), ao refletir sobre os cortiços do Rio de Janeiro Imperial, afirma que ao longo da primeira metade dos Oitocentos esta forma de habitação perturbava o controle social das camadas pobres ao mesmo tempo em que era uma constante ameaça à higiene da cidade. Por isso, o poder público centrava suas ações na melhoria das condições de higiene dessas moradias em busca de soluções, estratégia que mudaria de forma radical a partir das “[...] décadas seguintes: na formulação de Maurício de Abreu, a ênfase deixaria de ser prioritariamente a forma, as condições da moradia, e passaria a ser o espaço, o local da habitação (CHALHOUB, 2006, p.33. Grifos do autor).

Em meados dos anos de 1800 Belém ainda vivia sob o peso de doenças e do descaso com questões ligadas à salubridade. Nada parecia mudar naqueles tempos de Império, e a câmara municipal era acusada por seus críticos de ser zombeteira da lei, menosprezando os interesses e o bem-estar dos belenenses. Entendendo ser competência primeira do poder municipal

[...] a limpesa das ruas, praças, caes, fontes, aqueductos, chafarises, e tanques, por isso que dela depende a salubridade publica [criticava a crônica o fato de cotidianamente serem encontrados] a cada passo nas ruas e praças de nossa capital animaes mortos, ahi aputrefassem-se exalando nauseabundos e mephiticos gases, e se conservão até ficarem reduzidos a esqueletos, sem que a municipalidade com elles se embarace (DIÁRIO DE BELÉM, 27.08.1868, p.1. Grifos meus).

A julgar pela crônica, a água – ou sua conservação, salubridade e formas de uso –, continuava a ser um problema central para a saúde pública. Lixo, animais mortos e em estado de putrefação, espalhados pelas ruas da cidade, fontes e chafarizes sem a devida limpeza e cuidados higiênicos. Ironicamente, a crônica

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dizia que eram os urubus, que abundavam na cidade, aqueles que faziam o papel da municipalidade, devorando os animais mortos. Por isso, a população chamava tais aves de “fiscaes da câmara – porque são os que cuidão na limpesa da cidade” (DIÁRIO DE BELÉM, 27.08.1868, p.1). Por outro lado, afirmava a crônica que os poços públicos nunca tinham sido lavados ou, pelo menos, o cronista a isso nunca