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Álcman, Estesícoro, Íbico e suas obras: a questão da classificação genérica

1. Álcman

O mais antigo representante da mélica grega do qual há um corpus consistente

de textos é Álcman, cuja datação é apenas aproximada – final do século VII a.C.1 – e

cuja origem é ainda debatida – Sárdis, na Lídia (Ásia Menor), ou Esparta. O que de certo se sabe sobre ele é que passou sua vida nessa cidade grega continental.

A Esparta de Álcman é bem diversa daquela pólis em que de pronto pensamos e que foi criada, em grande parte, pela propaganda ateniense: fechada, conduzida por um regime oligárquico e organizada de modo militarista. Essa cidade, que já vislumbramos nas elegias de Tirteu (meados do século VII a.C.) a proclamarem “o ethos do estado- guerreiro com grande eloqüência”, sublinha James T. Hooker, em Ancient Spartans (1980, p. 72), configura-se de fato a partir do início do século VI a.C., num processo cujo auge se dá no período clássico. Nesse momento, o acirramento de suas rivalidades com Atenas – aberta, democrática e pólo da atividade cultural na época – culminará na longa “Guerra do Peloponeso” (431-404 a.C.), da qual Esparta sairá vitoriosa.

A vida espartana do século VII a.C. era marcada pelo cultivo da música inovada e ensinada por músicos estrangeiros que em Esparta se estabeleceram; pela circulação de produtos de luxo adotados no vestuário da aristocracia local; pela abertura às influências estrangeiras – egípcia e oriental, notadamente; e pelas constantes atividades culturais em que os jovens aristocratas deviam se envolver, treinando música, dança e canto2. É nessa atmosfera que respira nosso primeiro poeta mélico, e isso se faz sentir claramente nos fragmentos de sua poesia, como se verá no “Partênio do Louvre”.

Contraposta a essa pólis, a idéia de uma Esparta militarista, austera e fechada em si mesma é, todavia, tão forte que acabou por favorecer, acredita Charles Segal, em “Archaic choral lyric” (1990a, p. 168), já entre os antigos, a idéia da origem lídia de Álcman, conclusão que o helenista acredita não se sustentar diante de sua própria poesia e de seu dialeto, os quais “favorecem um nascimento espartano ou, no mínimo,

1

Robbins (1997, p. 224): “ele bem pode ter vivido até o século VI a.C.”, pelo menos até o seu início. O mesmo pensa West (1965, p. 188). Ver Page (1985, pp. 164-6, 1ª ed.: 1951), Huxley (1962, pp. 61-2), Campbell (1998, p. 192, 1ª ed.: 1967), Harvey (1967, p. 69), Gerber (1970, p. 82), Calame (1975, p. 228; 1977a, pp. 21-2), Hooker (1980, p. 74).

2

Para Esparta, ver Jeffery (1978, pp. 111-32) e Cartledge (1979, pp. 102-59). Para a Esparta de Álcman, D’Errico (1957, pp. 8-9), Fränkel (1975, p. 159, 1ª ed. orig.: 1951), Lesky (1995, pp. 176-7, 1ª ed.: 1957), Huxley (1962, pp. 62-3), Calame (1977a, pp. 22-42), Hooker (1980, p. 74), Podlecki (1984b, pp. 175-82), Segal (1990a, p. 169), Aloni (1994, pp. xiii-xviiii).

lacônio”. Há ainda uma terceira possibilidade, de que ele seja filho de pais lacônios, mas nascido em Sárdis, cidade mais importante, próspera e refinada da Lídia3.

A antiga e moderna polêmica da origem de Álcman dá-se, ainda, pela leitura biografista dos antigos de seu Fr. 16 Dav., anota Douglas E. Gerber, em Euterpe (1970, pp. 82-3). Cito os cinco versos da canção4:

oÈk ∑! énØr égre›o! oÈ- Não era homem rústico nem d¢ !kaiÚ! oÈd¢ †parå !ofo›- canhestro nem desinformado !in† oÈd¢ Ye!!alÚ! g°no!, nem um Tessálio de estirpe5 ÉEru!ixa›o! oÈd¢ poimÆn, nem Erisikheu nem pastor6 éllå %ard¤vn ép' ék′rçn. mas das alturas de Sardes.

Em Greek melic poets (1963, p. 170, 1ª ed.: 1900), Herbert W. Smyth declara que, como está dito acima, Álcman nasceu em Sárdis. Trata-se de uma leitura notadamente biografista e decerto influenciada, ainda, pelo fato de que os antigos,

baseados, em parte7, no Fr. 16 Dav., já haviam chegado a essa conclusão. Afinal, é

tendência bem documentada na Antigüidade, recorda Claude Calame, em “Alcman laconien/sarde à n’en plus finir” (1975, p. 227), “reconstruir a vida, desconhecida, dos autores clássicos a partir de elementos extraídos de suas obras”. Não espanta, portanto, a notícia dada num comentário antigo a Álcman (Fr. 13a Dav.), preservado no Papiro de

Oxirrinco (POx) 2389 (fr. 9, col. i), do século II d.C., segundo o qual Aristóteles

apoiou-se no fragmento citado para dar como lídia a origem do poeta.

Observando esse quadro, cujo estopim é o Fr. 16 Dav., Gerber (1970, p. 83) conclui que os antigos “ou não tinham mais do poema do que nós, ou assumiram, de seu conteúdo, que Álcman se referia a si mesmo”, ainda que em 3ª pessoa do singular, como em outros fragmentos. De todo modo, frisa o estudioso, o fragmento “não pode ter sido

3

Para Podlecki (1984a, p. 110), dados o dialeto de seus poemas, seu nome e o de um dos pais a ele atribuídos, Damas, Álcman é espartano. Similarmente, em sua edição comentada, Aloni (1994, pp. xxiv- xxv), e o estudo de Robbins (1997, p. 224), em seu estudo. Já para Fränkel (1975, p. 160, 1ª ed. orig.: 1951), Álcman seria um grego nascido na Ásia Menor, provavelmente em Sárdis; para Bowra (1961, p. 18), o poeta era lídio. Sobre esse debate, ver Page (1985, pp. 167-70, 1ª ed.: 1951), Lesky (1995, pp. 177, 1ª ed.: 1957), Campbell (1998, p. 192, 1ª ed.: 1967), Gerber (1970, pp. 82-3), Calame (1975, p. 228). Para a Lídia e a Frígia, reinos orientais vizinhos, na Ásia Menor, ver Boardman (1999, pp. 84-102).

4

As fontes do fragmento são o Léxico geográfico (verbete Erusíkhē, ÉErus¤xh), de Estéfano de Bizâncio (século VI d.C.), a Geografia (X, II, 22), de Estrabão (séculos I a.C.-I d.C.) e o tratado Sobre as negativas (21), de Crísipo (filósofo estóico, século III a.C.). Tradução: Souza (1984, p. 85).

5

A implicação de tal origem seria a de ser trapaceiro e glutão ou, simplesmente, grosseiro, diz Campbell (1998, p. 216) em sua edição comentada.

6

Campbell (1998, p. 216): “isto é, rústico e não nativo. Erísique era um vilarejo na Acarnânia” (centro- oeste do continente grego).

7 O retrato da Esparta militar e a menção na obra de Álcman a elementos lídios – que veremos no Fr. 1 Dav. – são outras bases de argumentação em prol da origem lídia do poeta. Ver Calame (1975, p. 227).

prova absoluta da origem de Álcman, ou não poderia ter existido controvérsia a respeito” entre os antigos, como existiu8.

Voltando nossos olhos, agora, para a geografia da mélica coral arcaica, vemos que seus poetas nos conduzem a pontos diversos do mapa grego, cujos contornos são marcados pela diversidade cultural, política, dialetal e religiosa. Tais pontos são as “áreas de fala dórica” do Peloponeso, onde atuou Álcman – que usou o dialeto local da Lacônia –, e do oeste grego, ou seja, das colônias na Sicília e no sul da Itália, de onde são originários Estesícoro e Íbico9. Nesses dois poetas, e em parte em Álcman, ressalta Segal (1990a, pp. 166-7), “a poesia coral tende a ser escrita num dialeto dórico literário mais ou menos convencional, que admite empréstimos à velha língua jônica da épica homérica e certa mistura de formas eólicas, essas mais freqüentes (...) em Píndaro, da Beócia, do que em qualquer outro poeta”10.

Se a influência da épica homérica na poesia coral não surpreende11, e os

doricismos ligam-se à geografia dos poetas corais, a influência lésbio-eólica demanda uma pausa. Para entendê-la, ressalta Albio C. Cassio, em “Futuri dorici, dialetto di Siracusa e testo antico del lirici greci” (1997, p. 203), é preciso lembrar que foram Terpandro (séculos VIII-VII a.C.) e Árion (séculos VII-VI a.C.), ambos citaredos da ilha de Lesbos, que levaram ao mundo dórico – mais precisamente, aos dois pólos culturais da época, Esparta e Corinto, respectivamente – suas “tradições musicais, métricas e lingüísticas” nele inseridas “de maneira definitiva”.

Os dois fragmentos remanescentes da obra de Terpandro têm autenticidade duvidosa; de Árion, nada restou. O primeiro é tido como um inovador da música grega no século VII a.C. – fase rica em experimentações na área – e inventor da “lira de sete

cordas”, notícia desmentida pela arqueologia12. Além disso, teria aperfeiçoado um

8

Ver Lefkowitz (1981, pp. 34-5). 9

Sobre a colonização no oeste, ver Dunbabin (1979) e Boardman (1999, pp. 161-224). 10

Sobre o dialeto dórico, ver Cassio (1997, pp. 204-5), para quem Estesícoro e Íbico “usaram (...) a mistura tradicional eólico-dórica (...) Mas o ambiente lingüístico em que nasceram e cresceram não era dórico, e, sim, jônico (...)”. Ver West (1973b, pp. 179-92), que expõe a tese da organização dos gêneros poéticos arcaicos em três tradições (jônica, dórica e lésbio-eólica) geográficas, dialetais e culturais (musicais, poéticas e míticas). Contra essa tese: Pavese (1972, pp. 13-74; 199-272) e Gentili (1990a, pp. 56-60, 1ª ed. orig.: 1985). Para a linguagem da mélica coral, ver ainda Kazansky (1997, pp. 16-20) e Hutchinson (2003, pp. 113-5; 228-9).

11

Ver Bowra (1961, pp. 20-1) e Janni (1965b e 1970) a respeito. 12

Sobre esses primeiros inventores, Lesky (1995, p. 155): “O desejo dos gregos de chegar até às origens de tudo fez surgir catálogos inteiros que consideramos com justificadas reservas”. No caso da alegada invenção da lira de sete cordas, essa notícia é derrubada pela grande probabilidade de que esse instrumento era usado entre minóicos e micênicos; ademais, um vaso de Esmirna (colônia grega na Ásia Menor), da segunda metade do século VII a.C., traz a sua imagem (p. 156). Sobre Terpandro, ver ainda Podlecki (1984a, pp. 89-92) e Robbins (1997, p. 233).

gênero da poesia citaródica, o nómos (nÒmow) – “lei, norma”; na música, “motivo fixo” – um “conjunto de padrões tradicionais em que a música era inserida”13.

Muito pouco se sabe sobre Árion, que surge como aquele que desenvolveu o ditirambo, subgênero da mélica coral de forte aspecto narrativo, e como um dos primeiros poetas a viver sob o patrocínio de um tirano, Periandro de Corinto. Nas

Histórias das guerras contra os persas (I. 23-4), de Heródoto (século V a.C.), Árion é

objeto de milagroso resgate nestas circunstâncias: sabedor da conspiração da tripulação coríntia que o levava à Itália e Sicília, mas que o queria roubar e matar, Árion, além de oferecer-lhes dinheiro, pede para cantar uma última vez e compromete-se a lançar-se ao mar em seguida. Todo adornado e munido da cítara, entoa um nómon órthion

(nÒmon ˆryion) – “canto ou hino de tom agudo (e aparentemente bem conhecido) em

honra de Apolo”14; é, então, resgatado por um golfinho encantado por sua arte.

O cultivo da música na vida espartana pode ter tido motivações de ordem estética e religiosa, ressalta Anthony J. Podlecki, em “Poetry and society in archaic Sparta” (1984b, p. 175), e é bem atestado nos testemunhos antigos, como no Sobre a

música (IX. 1134b), de Pseudo-Plutarco15, em que Terpandro aparece qual fundador de

uma das duas “escolas” (katastãseiw), por assim dizer, de “música” (mousikÆ) em

Esparta16. Veja-se, ainda, a Descrição da Grécia, de Pausânias (século II d.C.), que no livro sobre a Lacônia (III, XI, 9) fala do festival das Gumnopaidías, firmado no calendário da cidade a partir de 668 a.C. e fundado por um destes três personagens –

Taletas, Xenócrito ou Sacadas17. Esse festival, em que “os efebos estabelecem danças

[khoroùs histãsi] em honra de Apolo”18, decerto ao som da música, era mais seriamente considerado pelos lacedemônios do que qualquer outro19.

13

West (1971a, p. 309; ver pp. 309-11), Gostoli (1991, p. 98; 1993, pp. 167-8). Smyth (1963, p. lviii) observa, em sua edição dos mélicos gregos, que os nómoi “mais antigos eram melodias simples para a lira ou a flauta”; além disso, havia o nómos citaródico, de Terpandro, e o aulódico, com música e palavra; e o

nómos citarístico e aulístico, de “tipo puramente instrumental” (pp. lx-i).

14

Nota de Godley (1999, p. 27) à sua tradução. Ver comentário de How e Wells (1991, p. 64), que acrescentam que o nómos órthios, “de ritmo solene e medido”, “era atribuído a Terpandro e usado especialmente no culto a Apolo”; logo, a “canção de Árion foi um ato de culto”.

15

Ver Podlecki (1984b, p. 176) e Barker (2001, pp. 7-20); o tratado tem, atrás de si, a autoridade de figuras de relevo na história da música grega, como Glauco de Régio (séculos V-IV a.C.).

16

Texto grego: Einarson e Lacy (1996). Ver Ateneu (XIV. 632f), sobre os lacedemônios e a música. 17

Podlecki (1984b, p. 177), que revisa as três possibilidades de fundadores do festival em seu artigo. 18

ofl ¶fhboi xoroÁw flstçsi t“ ÉAppÒlvni. Texto grego: Jones e Ormerod (2000). Tradução e grifos meus. 19

Podlecki (1984b, p. 181) observa que o festival mais tarde passou a ser “um teste de resistência” ligado à vida militarista espartana. Sobre as escolas de música e os festivais em Esparta, ver ainda Calame (1977a, pp. 33-7) e Aloni (1994, pp. xv-xviiii).

A importância da música – e da dança também – na Esparta do século VII a.C. é, pois, inegável, e relaciona-se ao fato de que essa cidade abrigava, naquele momento, artistas de várias partes do mundo grego, notadamente músicos, que lá exerceram suas atividades inovadoras, as quais prepararam “o caminho para Álcman”, conclui Cecil M.

Bowra, em Greek lyric poetry (1961, p. 20)20. Terpandro e Árion são figuras marcadas

pelo lendário, personagens nebulosas da história da música grega. Com Álcman, adentramos o território da mélica coral, chão um pouco mais firme, embora lacunar e encoberto de sombras. É certo que os dados básicos de sua biografia nos escapam, mas dele há um corpus consistente de fragmentos – nenhum deles completo.

A edição de Álcman em Alexandria, cujos critérios desconhecemos, totalizava

seis livros de mélē (m°lh), de canções, e As mergulhadoras (Kolumb«sai) – um

“poema separado”21 perdido –, ou cinco livros de mélē e o Kolumbỗsai22. Para nós,

Álcman não apenas é o primeiro poeta mélico grego, mas o primeiro ao qual um subgênero da poesia coral é especialmente associado, o partênio, canção entoada por um

coro de meninas virgens (parthénoi, pary°noi), e destinada, como os demais subgêneros

corais, à performance em festivais cívico-religiosos23. São dos partênios os fragmentos mais extensos e estudados de Álcman.

Além disso, o poeta é, entre os antigos, “especialmente celebrado por sua poesia amorosa, que não necessariamente era pessoal”, diz Segal (1990a, pp. 169-70): “Temas eróticos eram, sem dúvida, proeminentes em suas canções de casamento ou hymenaia (...) e em seus partênios (...)”. Esse retrato de um Álcman poeta da paixão encontra-se em ao menos duas passagens. No Banquete dos sofistas (XIII. 600f) de Ateneu, lê-se que, segundo Camaleão (séculos IV-III a.C.), filósofo peripatético e gramático, o

harmonikós (èrmonikÒw) ou “teórico musical” Árquitas (primeira metade do século IV

a.C.) colocava Álcman como “o líder das canções eróticas e o primeiro a publicar uma

20

Ver Segal (1990a, p. 168). Sobre os citaredos Árion e Terpandro e suas atividades, ver Herington (1985, pp. 15-9). Lesky (1995, p. 176) afirma ainda que na produção desses músicos, que perdemos, “não podemos distinguir o que pertencia à lírica monódica e o que pertencia à lírica coral”.

21

Segal (1990a, p. 169). Ver a edição comentada de Aloni (1994, p. xxv). 22

Ver Campbell (1998, p. 193, 1ª ed.: 1967), Pardini (1991, p. 264), Aloni (1994, p. xxv), Robbins (1997, p. 224). Gerber (1970, pp. 83-4) nota: “Temos referências aos livros 1, 3, 4 e 5, e provavelmente ao livro 2, e as evidências sugerem que dois dos livros de Álcman consistiam em Partheneia”. Para o Kolumbỗsai, ver ainda Sirna (1973, pp. 37-61).

23

canção licenciosa”24. E no tardio léxico Suda (século X d.C., A 1289), segundo o qual

Álcman “era muito amoroso e o inventor das canções [melỗn] eróticas”25. Antonio

Garzya, em Studi sulla lirica greca (1963, p. 17), observa o exagero da afirmação em Ateneu; e, sobre o Suda, declara: “Não compreendemos bem a que coisas mais precisas o autor [do léxico] alude e devemos nos contentar em ilustrar sua afirmação com a presença de certa temática erótica que consta dos fragmentos de Álcman”.

Como mostram essas palavras, os dois testemunhos colocam o estudioso numa posição difícil por “termos perdido muito da poesia de Álcman que justificaria os dizeres de Ateneu”, lembra Segal (1990a, p. 185), e por termos do poeta uma imagem consolidada de mélico coral, o que não condiz, em princípio, com a poesia erótica, mais comumente ligada à canção monódica. Terá sido coral a produção erótica de Álcman? Ou monódica? Em “Monody, choral lyric, and the tyranny of the hand-book” (1988, p. 53), Malcom Davies nota que alguns fragmentos de Álcman tornam suspeita a classificação em “poemas corais”.

No corpus desta tese, são três as canções do poeta: o longo “Partênio do Louvre” (Fr. 1 Dav.) e os pequenos Frs. 58 e 59(a) Dav.. A primeira delas não impõe dúvidas: é coral. Mas o mesmo não vale para as outras duas, que podem ser pedaços descontextualizados de canções corais ou monódicas, o que não seria estranho diante do fato bem documentado de que os poetas arcaicos eram versáteis. Não devemos negar tal

qualidade a Álcman com base em rótulos, pré-concepções ou conclusões ex silentio26.

Afinal, indaga Davies (p. 55), “onde está sólida evidência de que Álcman nunca, jamais, praticou a canção monódica (...)?”. Esse mesmo tipo de dúvida se colocará diante de Íbico; mas antes de falar desse poeta, tratemos de Estesícoro, cuja situação, no que diz respeito à classificação de sua obra, parece mais complexa ainda.

24

(...) t«n §rvtik«n mel«n ≤gemÒna ka‹ §kdoËnai pr«ton m°low ékÒlaston (...). Texto grego para o livro XIII do tratado de Ateneu: Gulick (1999). A continuação da passagem citada é fonte do Fr. 59(a) Dav. de Álcman, que será estudado no capítulo 7.

25

ka‹ Ãn §rvtikÚ! pãnu eÍretØ! g°gone t«n §rvtik«n mel«n. Texto grego: Adler (1989, vol. I). Tradução minha.

26

Veja-se Carey (1989, p. 564) e sua conclusão de que, “onde quer que possamos estabelecer o modo de

performance, descobrimos que este foi coral (...), enquanto não há uma única passagem que fale de

2. Estesícoro

Segundo dados biográficos tradicionalmente aceitos, Estesícoro – pseudônimo

para Tísias (Suda, S 1095) –, nasceu em torno de 632/29 a.C., em Matauro (sul da

Itália), colônia lócria. Chamado pelos antigos “Estesícoro de Himera”, ele pode ter nascido nessa cidade dórico-calcidense da costa setentrional da Sicília, fundada pelos jônicos de outra cidade da ilha, Zanclos, e habitada também por exilados dóricos de Siracusa. O que parece certo é que em Himera ele passou grande parte de sua vida, encerrada em c. 556/53 a.C., em Catânia, colônia grega na costa leste siciliana27.

Pouco mais sabemos da biografia do poeta, cujo episódio mais famoso é a narrativa de sua cegueira, castigo advindo da vituperação de Helena – heroína cultuada como deusa em Esparta – numa canção; irada, ela o puniu, tornando-o cego. Para aplacar a ira divina, Estesícoro, então, recantou tudo o que antes cantara, eximindo-a do crime de adultério com Páris e da responsabilidade pela morte de guerreiros gregos em Tróia; feito isso, sua visão foi-lhe restaurada por Helena. É inegável o caráter lendário dessa narrativa, ao sabor das biografias antigas; mais direi sobre ela oportunamente.

A edição em Alexandria do poeta, diz o Suda (S 1095, verbete “Estesícoro”),

teria totalizado vinte e seis livros, um número impressionante em si mesmo e na comparação com o corpus magro e precário de sua obra que o tempo poupou – tão impressionante que tem encontrado o descrédito. Crêem muitos helenistas que mais condizente com nosso conhecimento da produção de Estesícoro é pensar em vinte e seis títulos de poemas, e não de livros28. Mas é impossível decidir sobre o valor do número.

Diferentemente da poesia de Álcman, a do poeta de Himera é “conhecida pela narrativa de temas épicos em metros líricos”, sublinha Segal (1990a, p. 186), o que confere singularidade à produção de Estesícoro. Isso está marcado nos testimonia, que sempre o aproximavam de Homero e o elogiavam “mais por suas virtudes épicas do que pelas estritamente líricas”, conclui o helenista (p. 187). Releia-se, por exemplo, o

epigrama 184 da Antologia palatina (IX)29. E leia-se o tratado Do sublime (século I

27

Ver Dunbabin (1979, pp. 168-9 e 300-1). Para biografia de Estesícoro: Bowra (1961, pp. 74-81), Lloyd- Jones (1980, pp. 9-12), Lefkowitz (1981, pp. 25-39), Podlecki (1984a, pp. 154-63), Tsitsibakou-Vasalos (1985, pp. 3-24), Robbins (1997, pp. 234-5). Para a datação, que é problemática, ver West (1971a, pp. 302-6), para quem a “vida produtiva do poeta provavelmente insere-se totalmente no século VI a.C.”. 28

Ver Harvey (1955, p. 158), Campbell (1998, p. 254; 1a ed.: 1967; 1991, pp. 4 e 29, n. 9), Gerber (1970, p. 146), Lloyd-Jones (1980, pp. 12-3), Pardini (1991, p. 264).

29

d.C.30), de ‘Longino’, no qual Estesícoro é chamado “o mais homérico” (XIII. 3), como Arquíloco e Heródoto31.

Entre os estudiosos, essa percepção é também comumente frisada. Luigi E. Rossi, em “Feste religiose e letteratura” (1983, p. 6), declara que “Estesícoro, à diferença de todos os seus colegas arcaicos e tardo-arcaicos, não é outra coisa que uma tradução integral da épica na forma métrica e musical da lírica. Ele narra como narra Homero, mas, à diferença de Homero, ele canta”. Adiante, o helenista classifica a obra do poeta como “épica alternativa relativamente à épica hexamétrica tradicional” (p. 11).

Apesar da inegável proximidade entre esses dois poetas, ressalta Graziano Arrighetti, em “Stesicoro e il suo pubblico” (1994, p. 12), que é preciso reconhecer ser muito difícil “determinar com maior precisão” a relação de Estesícoro com Homero. Considere-se, por exemplo, a dicção do poeta de Himera. Conforme a observação de Robert L. Fowler, em The nature of early Greek lyric (1987, pp. 48-9), ela “parece, à primeira vista, inalterada” com relação à dicção épica, mas é característica da lírica,

com “muitos epítetos não atestados na épica, um número razoável de ëpaj legÒmena

[hápaks legómena, “palavras ditas uma só vez”], novas combinações de velhas palavras épicas, expansões e outras modificações de fórmulas tradicionais” (p. 49).

Lembremos que a épica de forma alguma havia morrido com a Ilíada e a

Odisséia; ao contrário, continuou a ser produzida ao longo dos séculos por poetas e os

mitos nela trabalhados tornaram-se cada vez mais uma presença freqüente na iconografia do período arcaico em diante. Mas não são poucos os nossos problemas para uma avaliação da influência épica nos poetas elegíacos, iâmbicos e mélicos arcaicos em geral, e em Estesícoro em particular, cuja poesia mais se aproxima da tradição épico- homérica em vários aspectos. Não sabemos quão bem o poeta conhecia essa tradição nem podemos avaliar precisamente os contatos estabelecidos com ela, uma vez que a obra de Estesícoro está em condições muito fragmentárias e quase nada da épica posterior aos poemas homéricos nos restou.

Muito embora não possamos precisar as relações de Estesícoro com a épica, é possível estimá-la, em linhas gerais. Basta observarmos no poeta os temas, a dicção, o ritmo predominantemente datílico da métrica, tudo isso adaptado à lírica na forma, no

30

Datações menos aceitas: séculos I a.C. e III d.C.; ver Bowra (1960b, p. 230), Grube (1991, pp. xvii- xxi), Lesky (1995, p. 868), Romilly (2002, p. 235). O tratado é uma peça de crítica literária que teve forte impacto desde sua publicação, em 1554. Foi muito influente até o início do século XIX, quando passou às sombras, de onde saiu no começo do XX.

31

metro datílico-epítrito32, no dialeto poético marcado pelo doricismo, na performance cantada das composições cuja destinação ignoramos, mas que devem incluir festas cívico-religiosas locais e, nestas, as competições de recitação33.

O trabalho com a poesia mítica e narrativa, observa Segal (1990a, p. 187), faz de Estesícoro peça importante no “desenvolvimento da lírica narrativa prolongada em Baquílides e nas odes de Píndaro”, ambos dos séculos VI-V a.C.; os poemas do poeta do

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