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Afrodite em Esparta:

- A fonte do Fr. 1 Dav., de Álcman: o Papiro do Louvre

Em 1863, Émile Egger publicou pela primeira vez o Papiro do Louvre (século I d.C.), em Mémoires d’histoire ancienne et de philologie. A descoberta dessa fonte deu- se em 1855, quando escavadores liderados por François A. F. P. Mariette encontraram- na; o papiro, hoje guardado no célebre museu francês que lhe dá o nome, estava entre as pernas de uma múmia, num envelope de musselina, nas ruínas do Serapeu, nos arredores da segunda pirâmide de Sakkarah (atual Mênfis)1.

Na fonte papirácea reproduzida na editio princeps de Egger (p. 160), vêem-se três colunas que somam 101 versos, sendo a segunda a mais bem preservada. O fim da canção se dá no verso 105, ao lado do qual há a coronis (⊗). O Fr. 1 Dav. seria o

primeiro do Livro I de Álcman em Alexandria2; tal livro se comporia de partênios que

são cantos de coros de adolescentes para proveito dos mesmos. Mas a autoria do texto ao poeta não está atribuída no papiro; Egger (pp. 165-6) a estabelece baseado no dialeto, na linguagem, no gênero, na coincidência de alguns dos versos do fragmento com versos preservados em outras fontes com atribuição de autoria ao poeta, e, ainda, na recorrência de palavras ou expressões do fragmento em outros textos de Álcman, como se verá nestas páginas. Trata-se de um dos poucos pontos inquestionáveis do “Partênio” ou “Partênio do Louvre”, como é conhecido o Fr. 1 Dav. do poeta3. Ei-lo:

col. i ] P̣vludeÊkh!: ...]... Polideuces;

oÈk §g∆]ṇ LÊkai!on §n kamoË!in él°gv eu n]ão conto Licaiso entre os mortos, 'Ena]r!fÒron te ka‹ %°bron pod≈kh e Ená]rsforo, e Sébro de ágeis pés

]n te tÚn biatån ]... e o poderoso 5 ]. te tÚn koru!tån ]... e o do elmo

EÈte¤xh] te Wãnaktã t' 'ArÆion Eutico] e o soberano Areio

____ ]ã t' ¶jokon ≤mi!¤vn: ____ ]... destacado entre os semideuses. ]n tÚn égrÒtan ]... o caçador

] m°gan EÎrutÒn te ]... o grande e Eurito 10 ]p≈rv klÒnon ] do cego o tumulto da guerra

]. te t∆! ér¤!tv! ]... e os mais valorosos ] parÆ!ome! ]... passaremos (pelos heróis?) ]ar A‰!a pant«n ]... Aisa dentre todos

] geraitãtoi ]... os mais velhos (venerandos?) 15 ép]°dilo! élkå de]scalça é a força

mÆ ti! ény]r≈pvn §! »ranÚn potÆ!yv que nenhum hom]em voe rumo ao céu, mhd¢ ph]rÆtv gam∞n 'Afrod¤tan e nem pr]tenda desposar Afrodite W]ãn[a]!!an ≥ tin' s]oberana ou alguma

] μ pa¤da PÒrkv ] ou a filha de Pórcis 20 Xã]rite! d¢ DiÚ! d[Ò]mon e as Cá]rites, da casa de Zeus... ____ ]!in §roglefãroi: ____ ]..., as de olhos de amor.

1

Ver Egger (1863, p. 159). Sobre o papiro e suas características, ver pp. 160-1. 2

Ver Page (1985, p. 2, 1ª ed.: 1951), Campbell (1998, p. 195, 1ª ed.: 1967) e Davies (1991). Contra: Calame (1983), em que o fragmento é editado como o terceiro (Fr. 3) do Livro I.

]tãtoi ]... ]ṭa da¤mvn ]... nume ]i f¤loi! ]... aos amigos 25 ]vke d«ra ]... presentes

]gar°on ]...

]≈le!' ¥ba ]... juventude

]ronon ]...

].ta¤a! ]...

30 ]°ba: t«n d' êllo! fi«i ]... ; e deles outro com flecha ] marmãrvi mulãkrvi ]... com marmórea pedra ].en 'A˝da! ]... Hades

]autoi ]...

]Äpon: êla!ta d¢ ]...; mas inesquecíveis

35, col. ii W°rga pã!on kakå mh!am°noi: feitos sofreram, males tendo planejado. ¶!ti ti! !i«n t¤!i!: Há algo como a vingança dos deuses; ı d' ˆlbio!, ˜!ti! eÎfrvn feliz quem alegremente

èm°ran [di]apl°kei o dia [en]tretece até seu fim, êklauto!: §g∆n d' ée¤dv sem pranto; e eu canto 40 'Agid«! tÚ f«!: ır« de Agidó a luz. Vejo-a W' Àt' êlion, ˜nper ïmin como o sol que para nós 'Agid∆ martÊretai Agidó chama por testemunha fa¤nhn: §m¢ d' oÎt' §pain∞n a brilhar. Mas a ela nem louvar,

oÎte mvmÆ!yai nin è klennå xoragÚ! nem censurar de modo algum me permite 45 oÈd' èm«! §∞i: doke› går ≥men aÎta a ilustre corego; pois ela mesma parece ser

§kprepØ! t∆! Àper a‡ti! proeminente, assim como se alguém §n boto›! !tã!eien ·ppon entre o rebanho pusesse um cavalo pagÚn éeylofÒron kanaxãpoda firme, vencedor, de cascos sonantes – t«n Ípopetrid¤vn Ùne¤rvn: dos de sonhos jacentes sob pedras. 50 ∑ oÈx ır∞i!; ı m¢n k°lh! Então não vês? O corcel é

'EnetikÒ!: è d¢ xa¤ta enético; mas a sedosa melena tç! §mç! éneciç! da minha prima

ÑAgh!ixÒra! §panye› Hagesícora brilhifloresce xru!Ú! […]! ékÆrato!: [c]omo ouro imaculado; 55 tÒ t' érgÊrion prÒ!vpon, e a argêntea face –

diafãdan t¤ toi l°gv; por que abertamente te falo? ÑAgh!ixÒra m¢n aÏta: Hagesícora: esta é a própria.

è d¢ deut°ra ped' 'Agid∆ tÚ We›do! Mas a segunda depois de Agidó em porte ·ppo! 'Ibhn«i Kolaja›o! dramÆtai: qual cavalo coláxeo contra ibênio correrá; 60 ta‹ Pelhãde! går ïmin Pois as Plêiades, contra nós –

Ùryr¤ai fçro! fero¤!ai! que à levantina um manto carregamos nÊkta di' émbro!¤an ëte !Ærion pela noite ambrosíaca –, como Sírio ê!tron éuhrom°nai mãxontai: astro erguendo-se, lutam.

oÎte gãr ti porfÊra! Pois não basta abundância 65 tÒ!!o! kÒro! À!t' émÊnai, de púrpura para nos defender,

oÎte poik¤lo! drãkvn nem matizada serpente pagxrÊ!io!, oÈd¢ m¤tra toda-áurea, nem lídia Lud¤a, nean¤dvn fita de cabelo – das jovens col. iii fianog[l]efãrvn êgalma, de violá[c]eos olhos adorno –, 70 oÈd¢ ta‹ Nann«! kÒmai, nem os cabelos de Nanó,

éll' oÈ[d'] 'Ar°ta !ieidÆ!, nem mesm[o] Areta, similar aos deuses, oÈd¢ %Êlak¤! te ka‹ Kleh!i!Æra, nem Cilaquis e nem Cleesísera,

oÈd' §! Afinh!imbr[Ò]ta! §nyo›!a fa!e›!: nem indo à casa de Enesímbr[o]ta dirás: 'A!taf¤! [t]° moi g°noito “Se Astafís me aparecesse

75 ka‹ potigl°poi F¤lulla e se me olhasse Filula

Damar[°]ta t' §ratã te Ϝianyem¤!: e Damár[e]ta e adorável Viântemis”. éll' ÑAgh!ixÒra me te¤rei. Mas Hagesícora me angustia.

oÈ går è k[a]ll¤!furo! Pois ela, a de bel[o]s tornozelos, ÑAgh!ix[Ò]r[a] pãr' aÈte›, Hagesíc[o]r[a], não está presente aqui, 80 'Agido› .... arm°nei para Agidó ...?...

yv!tÆr[iã t'] ëm' §paine›. [e] nosso festiv[al] louva. éllå tçn [..]... !io‹ Mas as ...?, ó deuses,

d°ja!ye: [!i]«n går êna acolhei; pois dos [deu]ses são a obra ka‹ t°lo!: [xo]ro!tãti!, e a consumação. Ó [co]rego –

85 We¤poim¤ k', [§]g∆n m¢n aÈtå se posso falar – [e]u mesma,

par!°no! mãtan épÚ yrãnv l°laka virgem, em vão grito, qual de uma viga glaÊj: §g∆[n] d¢ ta› m¢n 'A≈ti mãli!ta a coruja. Mas e[u] a Aótis sobretudo Wandãnhn §r«: pÒnvn går desejo agradar; pois dos penares ïmin fiãtvr ¶gento: para nós ela foi a cura.

90 §j ÑAgh!ixÒr[a!] d¢ neãnide! Mas graças a Hagesíco[ra] as jovens fir]Æna! §rat[ç]! §p°ban: sobre a [pa]z adoráv[e]l caminharam; t«]i te går !hrafÒrvi pois [a]o corcel de fora

..]t«! ed... ...]... ? ...

t[«i] kubernãtai d¢ xrØ e [ao] capitão é preciso, 95 k[±] nçÛ mãlị!̣ṭ' ẹ́ḳọỆḥṇ: [na] nau, acima de tudo ouvir.

è d¢ tçn %hrhn[¤]dvn Mas ela não é mais melodiosa éoidot°ra m[¢n oÈx¤, do que as Sir[e]nas,

!ia‹ gãr, ént[‹ d' ßndeka pois são deusas; e [um coro de onze

pa¤dvn dek[å! ëd' ée¤d]ei: meninas [can]ta [tão bem quanto um] de d[ez]. 100 fy°ggetai d' [êr'] À[t' §p‹] Cãnyv =oa›!i Sim, sua voz ressoa q[ual] cisne nas águas

kÊkno!: è d' §pim°rvi janya› kom¤!kai do Xanto; e ela, com desejável coma loira,

[ ] [ ]

[ ] [ ]

[ ] [ ]

⊗ [ ] [ ]

Quase cem anos após a revelação do Partênio, Denys L. Page, Alcman, the

Partheneion (1985, p. v; 1ª ed.: 1951), declara:

“É o mais antigo fragmento longo de um poema lírico na língua grega; é um dos poucos textos gregos de magnitude datado do século VII a.C. preservado até hoje; ele lida com questões de que antes tínhamos pouco ou nenhum conhecimento (...)

Para a sua audiência, o Partênio certamente era um simples entretenimento; para nós, é excepcionalmente difícil. A natureza da cerimônia, das personagens e das funções das personagens centrais, o pano de fundo das numerosas alusões, familiares aos espectadores contemporâneos, são obscuras para nós; e logo descobrimos que muito pouca ajuda nos vem de fontes externas. (...) nada se sabe sobre as circunstâncias [da performance do Partênio], (...) e quase uma em cada duas sentenças demonstradamente admite mais de uma interpretação (...)”.

O Fr. 1 Dav. está cercada por polêmicas filológicas e interpretativas, as quais, diga-se, começaram a tomar corpo tão logo seu texto veio à luz, na segunda metade do século XIX; praticamente todos os seus versos são debatidos – uma das razões para a fortuna crítica sempre crescente de um dos mais belos e difíceis textos da lírica arcaica. O papiro que o transmitiu até nós reforça esse fato, pois “diferencia-se da norma tanto na abundância de seus escólios, quanto no peso da autoridade destes”, anota Page (pp. 9-10), o que mostra que o Partênio já para os antigos era um texto apreciado, mas de difícil leitura. Sobre esses escólios, o helenista ainda diz:

“Os comentários incluem referências explícitas a cinco eruditos (Aristófanes, Aristarco, Panfilo, Sosífanes, e Estásicles), dois poetas (Homero e Hesíodo), e um historiador (Ferécides). E já que as referências aos eruditos afetam diretamente a leitura ou a interpretação do texto grego, deve-

se supor que cada um deles escreveu um comentário ao Partênio, e cada um dos nossos escólios representa uma compilação ou a cópia de uma compilação tirada daqueles comentários”4.

Editado a partir do Papiro do Louvre, o texto do Fr. 1 Dav. se divide em três

partes: narrativa mítica (vv. 1-35); gnốmē (gn≈mh, “sentença, máxima”, vv. 36-9);

auto-retrato do coro e da performance (vv. 39-105). Metricamente falando, elas se compõem de ritmos predominantemente trocaicos e coriâmbicos, e seus versos se agrupam em estrofes de catorze versos que, segundo Page (1985, p. 23; 1ª ed.: 1951), assim se escandem5:

1 ―∪―∪ ⎪ ―∪∪

2 ∪ ―∪∪― ∪―∪

3 ―∪―∪ ⎪ ―∪― vv. 1-6: quatro pares de dímetros trocaicos

4 ――∪∪―∪―∪ cataléticos + enóplio 5 ―∪―∪ ⎪ ―∪― 6 ∪ ―∪∪― ∪―∪ 7 ∪∪5 6 ∪―∪ ⎪ ―∪∪ 8 ――∪∪―∪―― 9 ―∪―∪ ⎪ ―∪―∪ ⎪ ―∪∪∪2 ∪ trímetro trocaico 10 ―∪―∪ ⎪ ―∪―∪ ⎪ ―∪―∪ trímetro trocaico 11 ―∪―∪ ⎪ ―∪∪∪3 2 ∪ dímetro trocaico 12 ―∪―∪ ⎪ ―∪―∪ dímetro trocaico

13 ―∪∪6 , 9 0―∪∪ ―∪∪ ―∪∪ tetrâmetro datílico + alcaico 14 ―∪∪7 7 , 9 1 ―∪∪ ―∪――4 9 , 6 3 , 7 7 . decassílabo ou alcmânico

―∪∪―7 , 2 1 , 3 5 ∪9 1

Esse esquema permite afirmar que o verso inicial do Partênio é, na verdade, o oitavo de uma estrofe apenas parcialmente preservada. Isso significa uma uma perda de sete versos no começo de nosso texto. Somados a um provável proêmio de uma estrofe e, no mínimo, a uma estrofe de introdução ao mito tematizado nos versos da primeira parte da canção, chegamos aos estimados trinta e cinco versos do início do Partênio, que a sorte não nos poupou. Estes, por sua vez, somados aos cento e cinco versos do papiro, totalizam cento e quarenta versos para a canção – dez estrofes de catorze versos. Se

esses cálculos – propostos por Hermann Diels em 1896 e em geral aceitos6 – estiverem

corretos, então o Partênio de Álcman estaria dividido em duas metades de cinco estrofes

4 Ver Davison (1938, pp. 440-1).

5 Ver ainda pp. 24-5 e 118-20. Os estudiosos, como Page, crêem não estar definida em Álcman a estrutura triádica que para nós se estabelece com Estesícoro. Ver Bowra (1961, pp. 38-9) e Gerber (1970, pp. 84-5). 6

Ver Davison (1938, p. 441), Page (1985, p. 1, 1ª ed.: 1951), Colonna (1963, p. 192, 1ª ed.: 1954), Bowra (1961, p. 38), Campbell (1998, p. 195, 1ª ed.: 1967; e 1988, p. 361, n. 2), Calame (1977b, p. 15; 1983, p. 312), Robbins (1991, p. 7). Adrados (1973, p. 325) discute como seria o proêmio perdido do poema.

cada uma. Haveria, portanto, equilíbrio entre a narrativa mítica na primeira parte, e a descrição da performance pelo coro, na segunda.

Eis aqui mais um motivo para contrariar a tendência de ignorar ou descuidar do bloco mítico do Partênio. Passando por boa parte dos estudos, das edições, dos comentários e das traduções do fragmento, verifica-se uma histórica concentração na sua 2ª parte (vv. 39-105), o que se explica pela precária condição material da 1ª (vv. 1- 35) que, por vezes, é desconsiderada ou cortada, como se sua precariedade física a tornasse dispensável7. Mas “evitar os versos 1-35, talvez no esforço de evitar construir um espaço em branco, impõe uma dificuldade considerável para a leitura do resto do poema”, diz com propriedade a ressalva de Yun L. Too, em “Alcman’s Partheneion” (1997, p. 9), em artigo que é um dos raros mais recentemente publicados a darem atenção à narrativa mítica na primeira parte do fragmento8.

Aqui, como em Too, toma-se a direção contrária dessa tendência, privilegiando a 1ª parte, mas sem deixar de lado o fragmento como um todo e a articulação de suas duas partes. Isso porque, uma vez que esta tese objetiva ao estudo da representação de Afrodite na mélica arcaica, é preciso atentar para essa deusa que, no Partênio, aparece uma única vez, justamente em seu lacunar e precário início (v. 17). Ademais, a má condição dos trinta e cinco versos que abrem o fragmento não inviabiliza por completo sua leitura, não justifica seu corte, e tampouco elimina a necessidade de entender os elos entre suas duas metades, se o que se pretende é a análise interpretativa do Fr. 1 Dav. e da presença de Afrodite, tão solidamente fundamentada no texto quanto possível.

Assim, nestas páginas, procedo à análise interpretativa do Partênio na busca de construir uma leitura integral de seus elementos internos e externos – seus aspectos formais e de conteúdo, seu modo e ocasião de performance, seu contexto histórico. O eixo central da leitura girará, evidentemente, em torno da representação de Afrodite, personagem que, neste capítulo, está inserida na primeira das cinco composições temáticas que os fragmentos do corpus desta tese permitem estabelecer. Quatro questões norteiam tal leitura: O que se passa na 1ª parte do fragmento, em que a deusa é nomeada (v. 17)? Com que finalidade e como Afrodite surge? Como entender o verso 17 no

7

Ver Lavagnini (1953, pp. 180-8, 1ª ed.: 1937) e Gerber (1970, pp. 79-81) e as traduções, iniciadas pelo v. 36, de Quasimodo (1996, pp. 38-40, 1ª ed.: 1944), Lattimore (1960, pp. 33-5, 1ª ed.: 1949), Souza (1984, pp. 83-5), Fowler (1992, pp. 99-100), Mulroy (1995, pp. 56-8). Pereira (1963, p. 99, 1ª ed.: 1959) traduz os vv. 36-40 e 52-7; Brasillach (1950, pp. 80-2) e Ramos (1964, pp. 25-6), os vv. 39-63 e 36-63, respectivamente; Lourenço (2006, pp. 15-7), os vv. 16-8 e 34-101. Nos estudos, os vv. 1-35 costumam ser apenas mencionados.

8

Além desse, destaca-se apenas mais um publicado depois de 1990: Robbins (1991, pp. 7-16). Entre publicações mais antigas, destaco, pelo tratamento cuidadoso dispensado à narrativa mítica do Partênio: Davison (1938) e Farina (1950), Page (1985, 1ª ed.: 1951).

contexto da narrativa mítica e do fragmento? Como se relacionam as duas partes do fragmento? Tendo essas questões em mente, voltemos nossos olhos para o fragmento.

- Mito, moral e narrativa no Partênio (vv. 1-35)

Dos versos 1-21, o coro canta um mito ao qual faz seguir uma moral. O estudo dos nomes legíveis e sua pesquisa nas fontes posteriores a Álcman ajudam a esclarecer o mito em pauta; é essa a tarefa que cabe cumprir primeiramente. Nos versos 22-35, permanecemos no relato mítico, mas este é inacessível pela precariedade textual.

1. A narrativa dos Hipocoontidas (vv. 1-21): o mito e suas fontes

Qual o mito narrado nesses versos que abrem o Partênio? O nome “Polideuces” (v. 1) lança-nos na mitologia espartana, pois Cástor e Polideuces (ou Pólux) são os

Dióscuros9, filhos de Tíndaro, o pai de Helena. Mas os nomes que sucedem o desse

herói nos versos 2-9 são obscuros; segundo relatos antigos, tratam-se dos filhos de Hipocoonte, primos dos Tindaridas. Vejamos o que nos contam sobre eles as fontes.

Clemente de Alexandria (séculos II-III d.C.) e escólio

Começo por um escólio anônimo a uma frase do cristão Clemente, na Exortação

aos gregos (27, 11), um ataque à religião helênica e seus deuses que – absurdamente,

argumenta ele – têm sentimentos humanos e podem ser fisicamente atingidos. Exemplo disso é o que se dá com o filho de Alcmena e Zeus: “E Sosíbio diz que Héracles foi

ferido na mão em luta contra os Hipocoontidas”10. O referido escólio afirma:

ÑIppokÒvn tiw §g°neto LakedaimÒniow, o <ofl> uflo‹ épÚ toË patrÚw legÒmenoi ÑIppokovnt¤dai §fÒ- neusan tÚn Likumn¤ou uflÚn, OfivnÚn ÙnÒmati, sunÒnta t“ ÑHrakle›, éganaktÆsantew §p‹ t“ pefo- neËsyai Íp' aÈtoË kÊna aÍt«n. ka‹ dØ éganaktÆsaw §p‹ toÊtoiw ı ÑHrakl∞w pÒ-lemon sugkrote› kat' aÈt«n ka‹ polloÁw énaire›, ˜te ka‹ aÈtÚw tØn xe›ra §plÆgh. m°mnhtai ka‹ ÉAlkmån §n aÄ. m°mnhtai ka‹ EÈfor¤vn §n Yr&k‹ t«n ÑIppokÒvntow pa¤dvn, t«n éntimnhstÆrvn t«nDioskoÊrvn.11

9

Para esses heróis – o mortal Cástor e o imortal Polideuces –, ver Burkert (1993, pp. 412-4). 10

Svs¤biow d¢ ka‹ tÚn ÑHrakl°a prÚw t«n ÑIppokovntid«n katå t∞w xeirÚw oÈtasy∞nai l°gei. Texto grego: Butterworth (1982). Tradução minha. Butterworth (p. xi) anota: Alexandria foi “o cenário de todo o trabalho mais relevante” de Clemente, provavelmente um ateniense de nascimento.

Havia um Hipocoonte lacedemônio, de quem os filhos, ditos “Hipocoontidas” por causa do pai, mataram o filho de Licímnio, de nome Eono – o companheiro de Héracles –, enraivecidos por este ter matado um cão deles. E em seguida Héracles, enraivecido com os Hipocoontidas, mobilizou uma guerra contra eles, matou muitos deles, e nesse evento foi ferida a sua mão. Lembra-se disso Álcman em seu Livro I. E lembra-se também Eufórion, no Trácio, dos filhos de Hipocoonte, pretendentes rivais dos Dióscuros.

Essas duas fontes trazem alguns dos poucos componentes do mito dos Hipocoontidas. O primeiro: de acordo com o escólio, Álcman, em fins do século VII a.C., e o poeta épico Eufórion, do III a.C., trataram desses heróis. O segundo: os dois relatos colocam Héracles – “o maior dos heróis gregos”12 – como inimigo dos filhos de Hipocoonte. O terceiro: em ambas as fontes, o combate entre esses heróis e Héracles resulta no ferimento que este sofre na mão, um dado que Clemente coloca sob a autoridade de Sosíbio (século III a.C.), “a mais celebrada autoridade em Álcman e nos

costumes lacônios”13. O quarto: a causa da guerra, diz o escólio, envolve um jovem

companheiro de Héracles, Eono, que matou o cão dos Hipocoontidas e, por isso, foi morto por eles. O elo entre essas ações reforça-se pela repetição vocabular marcada pelos sublinhados na citação à página anterior14. E, por fim, o quinto: no Trácio, poema perdido de Eufórion, os Hipocoontidas e os Dióscuros, Cástor e Polideuces, eram

antimnēstễres, ou seja, competiam pela mesma virgem como “pretendentes rivais”15. Reunidos, esses cinco componentes não chegam a completar o quadro do mito dos Hipocoontidas – este, aliás, não poderá ser finalizado, devido à escassez de elementos disponíveis. Mas alguns elos vão se compondo: a morte dos filhos de Hipocoonte, a luta destes com Héracles, a disputa erótica dos Hipocoontidas com os Dióscuros. O segundo evento se repete em Clemente e no escólio, e, como o primeiro, é

narrado no Livro I de Álcman, muito provavelmente no Partênio16. O terceiro, como se

verá no momento oportuno, pode ser especialmente relevante para o fragmento.

O comentário antigo a Clemente é, sem dúvida, uma fonte importante do mito e, portanto, para a leitura dos versos 1-15 da canção de Álcman, mas não a única.

12

Burkert (1993, p. 405). Para esse herói ver Burkert (pp. 405-12) e Gantz (1996, vol. I, pp. 374-466). 13

Page (1985, p. 10, 1ª ed.: 1951). Sobre Sosíbio, ver Campbell (1998, p. 197, 1ª ed.: 1967) e Pavese (1992a, p. 16), que lembram a notícia dada em Ateneu (III. 114f-115a = Fr. 94 Dav. de Álcman) de que o antigo historiador teria escrito o Sobre Álcman. Pouquíssimo restou além do testemunho de sua produção; a frase de Clemente é o Fr. 15 de Sosíbio (edição de Muller, 1848, vol. ii, p. 628).

14

Para a ação de matar perpetrada tanto pelos Hipocoontidas quanto por Héracles são empregadas formas verbais de phonéō (fon°v); para a fúria desses personagens, formas de aganaktéō (éganakt°v); para o verbo “lembrar”, relativo a Álcman e a Eufórion, a mesma forma de mimnếskō (mimnÆskv).

15

O texto do escólio a Clemente compõe o que é editado como o Fr. 29 (edição de Powell, 1925) do

Trácio de Eufórion. Sobre o poema, ver Lesky (1995, p. 795, 1ª ed.: 1957) e Bulloch (1990, p. 608).

16

Ver Campbell (1998, p. 197, 1ª ed.: 1967) e Calame (1977b, p. 55). Outros helenistas guardam certa reserva quanto a essa probabilidade; ver estudo de Robbins (1991, p. 12).

Diodoro da Sicília (século I a.C.)

Na sua Biblioteca histórica (livro IV, 33, 1-7), uma história do mundo centrada em Roma, Diodoro nos traz “o primeiro relato amarrado” do mito dos Hipocoontidas, ressalta John A. Davison, em “Alcman’s Partheneion” (1938, p. 442). Eis o que nos conta o escritor siciliano17:

[...] ÑIppokÒvn m¢n §fugãdeusen §k t∞w Spãrthw tÚn édelfÚn Tundãrevn, OfivnÚn d¢ tÚnLikumn¤ou f¤lon ˆnta ÑHrakl°ouw ofl uflo‹ toË ÑIppokÒvntow e‡kosi tÚn ériymÚn ˆntew ép°kteinan. §f' oÂw égana- ktÆsaw ÑHrakl∞w §strãteusen §p' aÈtoÊw: megãl˙ d¢ mãx˙ nikÆsaw pamplhye›w ép°kteine. tØn Spãr- thn •l≈n katå krãtow, katÆgagen §p‹ tØn basile¤an Tundãrevn tÚn pat°ra t«n DioskÒrvn [...]. ¶peson d' §n tª mãx˙ t«n m¢n mey' ÑHrakl°ouw Ùl¤goi pantel«w [...]. t«n d' §nant¤vn aÈtÒw te ı ÑIp- pokÒvn ka‹ met' aÈtoË d°ka m¢n uflo¤, t«nd' êllvn Spartiat«n pamplhye›w.

(...) Hipocoonte mandou ao exílio seu irmão Tíndaro, e os filhos de Hipocoonte, sendo vinte em número, mataram Eono, filho de Licímnio e caro a Héracles. Enraivecido com eles, Héracles marchou contra eles; e tendo vencido a grande batalha, matou vasto número deles. Tomando Esparta pela força, conduziu ao reinado Tíndaro, o pai dos Dióscuros (...). Ao todo, poucos caíram na batalha, do lado de Héracles (...); dentre os inimigos, o próprio Hipocoonte e, junto a ele, dez filhos, e um vasto número de outros espartanos.

Os sublinhados destacam os elementos novos com relação às duas fontes anteriores. Hipocoonte mandou ao exílio seu irmão Tíndaro, mas este foi posteriormente reconduzido ao trono por Héracles: eis um dado novo que se soma ao assassinato de Eono pelos Hipocoontidas na equação que resulta na intervenção de Héracles, a qual, no relato de Diodoro, não apenas serve de vingança contra tal crime, mas de instrumento político. Não sabemos o que levou Hipocoonte a exilar seu irmão – presume-se, a luta pelo poder. Já a aliança Héracles-Tíndaro configura-se aqui como a união de dois homens direta ou indiretamente afetados de forma negativa por Hipocoonte.

Outro dado que se destaca em Diodoro é o número de Hipocoontidas e a

contabilidade dos mortos na luta com Héracles: Hipocoonte tinha vinte filhos18; dez

pereceram junto ao pai e a muitíssimos outros espartanos aliados, somando baixas bem maiores, assinala o escritor, que as sofridas por Héracles e seus companheiros. Note-se, ainda, que a morte de Hipocoonte não havia sido claramente afirmada até aqui.

A leitura de mais essa fonte mostra que, em conformidade com o que se observa em geral na mitologia grega, há versões diversas em torno de um mesmo mito. No caso dos Hipocoontidas, dois elementos se repetem nas três fontes visitadas: a morte deles – seguramente tratada no Partênio – e o crime que a provocou, o assassinato de Eono,

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Texto grego: Oldfather (1967). Tradução minha.

motivo da vingança de Héracles. Mas, ao contrário do que se passa no escólio a Clemente, em que esse crime é relatado, Diodoro não faz qualquer menção ao episódio que o antecede, qual seja, o ataque de Eono ao cão dos Hipocoontidas. E à diferença das duas outras fontes, Diodoro não fala do ferimento de Héracles na mão.

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