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Alceu e Anacreonte: dois poetas e duas obras nas redes de seus rótulos

Para o estudo de Alceu e Anacreonte, o problema que cabe aqui comentar diz respeito à forte presença da 1ª pessoa do singular em seus fragmentos e à relação poeta-

persona que, do século XIX em diante, se tornou um dos principais centros das atenções

no estudo da lírica arcaica82. Parte da crítica moderna, sobretudo aquela de perspectiva romântica – que, tomando “a criação literária e a prática de vida do autor como uma unidade”, diz Wolfgang Rösler (1985, p. 137), em “Persona reale o persona poetica?”, busca relacionar “uma à outra por meio da biografia” –, leu o emprego freqüente do “eu” na lírica de modo marcadamente biografista83, como já se fazia na Antigüidade.

Essa atitude biografista, no caso da crítica antiga, explica-se pelo grande interesse pela figura dos poetas por trás dos poemas, o que, por sua vez, acabou por transformar os críticos em “poetas da ficção biográfica”, afirma Diskin Clay, em “The theory of the literary persona in Antiquity” (1998, p. 10). Lembra esse helenista: entre “os críticos gregos, a separação do poeta de sua persona chegou tarde e com enorme dificuldade” (p. 16); Catulo (século I a.C.) foi o primeiro poeta antigo “a protestar que ele não podia ser lido em seu livro e a dissociar-se de sua poesia [Poema 16]”, embora, para Clay, ao dramatizar o problema em versos, ele remova “a base de seu argumento”. E tal perspectiva se intensifica quando se trata da mélica monódica, cuja origem pré- literária decerto remonta às canções populares – um “atributo quase universal de sociedades tradicionais”84 –, em que prevalecem a temática dos sentimentos e costumes humanos e a 1ª pessoa do singular – às vezes, nomeada com o nome do próprio poeta.

82

Ver Slings (1990, pp. 1-30) e Gerber (1997a, pp. 6-8). 83

Gerber (1997a, p. 7) diz: “Foi outrora moda tratar a maioria [das declarações] como autobiográfica e, conseqüentemente, criar a partir delas um perfil elaborado da vida do poeta, seu caráter e sua resposta aos eventos contemporâneos. Este, na verdade, não é um fenômeno moderno, mas remonta aos próprios gregos, sobretudo os compiladores de vitae, e aos escoliastas”. Sobre a postura dos críticos antigos, ver ainda Lefkowitz (1978, pp. 459-69; 1981) e Clay (1998, pp. 9-40).

84

Bowie (1984, p. 3). O ato de cantar acompanha o homem como manifestação espontânea; diz Robb (1994, p. 257): “Canções de trabalho, canções de casamento, cantos fúnebres, cantigas eróticas de esperançosa sedução (ou vituperação desapontada), os lugares-comuns da iniciação de uma geração mais velha para a mais nova – tudo isso é provavelmente tão velho, ou quase, quanto a total aquisição da fala por nossa espécie”. Ver Dover (1964, p. 199) e, sobre as origens da lírica grega, também Lesky (1995, pp. 133-4, 1ª ed.: 1957), que comenta as formas pré-literárias do gênero manifestadas na vida cotidiana: os cantos de culto aos deuses; os cantos de lamento ou de celebração nos “momentos culminantes da vida e da morte”; o “canto que acompanha o trabalho” nos teares, na colheita das uvas. Bremer (1990, p. 42) observa que esses cantos eram motivados pelo “ritmo da vida” e pelo “calendário religioso de uma dada comunidade” envolvida na sua performance enquanto audiência, participante ativa e patrocinadora. Isso se nota na épica homérica, afirma Dalby (1998, p. 204), em que boa parte da “música retratada na Ilíada e na Odisséia pode ser relacionada aos gêneros líricos da poesia grega arcaica que nos são conhecidos”.

Assim sendo, ao tomarmos para estudo poetas monódicos, como Alceu e Anacreonte, é preciso, para chegar às suas obras, enfrentar a grande sombra que a elas fazem suas próprias figuras. À semelhança do que se passa com Safo, mas em menor intensidade, o caso desses dois poetas – Alceu, o reacionário, e Anacreonte, o bon

vivant – representa uma situação nada incomum no mundo dos estudos literários: aquela

em que o poeta – sua personalidade e sua biografia – é confundido com a persona de seus textos, tornando-se maior, ou quase, que estes.

Antes de ir aos fragmentos de Alceu e Anacreonte, faz-se, pois, necessária a discussão da problemática relação poeta-persona na abordagem crítica de seus versos.

1. Alceu

Filho de uma família aristocrática da próspera Mitilene, na ilha de Lesbos – cuja fama pelo cultivo da poesia liga-se decerto a uma rica “tradição poética eólica, nativa”,

que gerou Terpandro e Árion nos séculos VIII-VII a.C.85 –, Alceu teria nascido em

torno de 630 a.C., e, como Arquíloco, Tirteu e muitos outros, foi poeta e guerreiro. Sua datação o torna contemporâneo de Safo, com quem compõe os dois grandes nomes da lírica lésbio-eólica da Grécia antiga e dos quais temos um conjunto da obra significativo, embora fragmentário.

Não sabemos se Alceu teve algum tipo de relacionamento ou contato com a

poeta86, mas, como ela, compôs sobretudo mélica monódica de métrica tradicional

eólica em dialeto local, o lésbio-eólico - “plausivelmente um produto da influência do dialeto jônico sobre um dialeto ‘proto-Tessálio’ (...)”87. Vale lembrar que da Tessália e da Beócia, no continente grego, partiram as principais ondas de imigração para a ilha lésbia e a costa norte da Ásia Menor no final da era do Bronze (c. 2600-1000 a.C.)88.

Nada fácil é chegar a uma estimativa da produção poética de Alceu, uma vez que a maioria absoluta de seus fragmentos – nenhum deles completo –, conservados em fontes papiráceas dos séculos I e II d.C., estão em condições precárias, em maior ou

85

Ver Bowie (1984, p. 2). 86

O Fr. 384 Voigt, preservado em Heféstion (14. 4), muitas vezes citado para comprovar tal contato, é problemático. Eis seu único verso: ⊗ 'IÒplok' êgna mellixÒmeide! êpfoi [ápphoi] (⊗ “Ó sacra [Safo?]

de violácea guirlanda, de sorriso-mel...”). Para outra tradução, cf. Campos (1998, p. 173). A leitura de ápphoi é o problema, e a emenda mais comum é Sápphoi. Ver edições de Alceu (Voigt e LP), da fonte,

Consbruch (1971, p. 45), e estudo de MacLachlan (1997, p. 137), que não crê nessa emenda. 87 Ver Bowie (1984, p. 5).

88

menor grau. Ademais, não há certeza quanto ao número de livros de sua edição em

Alexandria – talvez dez –, cujos critérios de organização ignoramos89. Segundo

Antonietta Porro, em Vetera Alcaica (1994, pp. 3-4), um dos poucos dados nos

testimonia sobre a edição do poeta é que tanto Aristófanes de Bizâncio, quanto o seu

sucessor, Aristarco, foram seus editores na Biblioteca de Alexandria.

Alguns traços gerais da poesia de Alceu se revelam no seu precário corpus. Tudo indica que seus interesses cobriam um amplo leque de temas: política, deuses, amor, amizade, vinho, mito, reflexão moral e filosófica. Além disso, observa Kirkwood (1974, p. 62), percebe-se nos fragmentos uma “variedade substancial de forma” e um forte

imediatismo que coloca a poesia de Alceu em diálogo permanente com o presente90.

Não deve ser à toa, portanto, que os testimonia mostram o poeta como influência importante para seus sucessores, entre os quais Horácio se destaca em Roma; para ele, Alceu foi um dos modelos mais importantes91.

É notório o profundo envolvimento do poeta com a política de Mitilene, em processo de transformação desde a primeira metade do século VII a.C., quando, em meio às turbulências sociais, entrou em colapso a monarquia dos Pentílidas92, há tempos no poder, e a essa queda se seguiram tiranias – processo este típico do mundo político arcaico vivenciado em numerosas localidades da Grécia. A voz que ouvimos na persona poética de Alceu foi a voz da “nobreza lésbia”, ressalta Anne P. Burnett, em Three

archaic poets (1983, p. 107), lutando para reavivar um passado aristocrático idealizado

e inadequado à pólis, à nova sociedade e às suas novas demandas.

Nos chamados “poemas políticos” de Alceu93, destaca-se a figura do tirano

Pítaco, que traz consigo uma das questões mais espinhosas da biografia do poeta: a relação entre Alceu e o tirano que integrará, mais tarde, a lista dos sete sábios gregos. Nenhum dos três breves e lacunares fragmentos de Alceu que integram o corpus desta tese é político, e em nenhum deles está presente Pítaco. Tão forte é, no entanto, sua imagem na obra do poeta que é impossível passar por ela sem, no mínimo, comentá-la,

89

Ver Pardini (1991, pp. 257-84), Porro (1994, p. 5), Lesky (1995, p. 162) e MacLachlan (1997, p. 140), para os quais o critério de organização dos livros não teria sido o métrico, como no caso de Safo. MacLachlan defende o do tipo de canção como possível critério. Porro e Lesky preferem pensar num critério temático para a distribuição dos poemas.

90

Ver MacLachlan (1997, p. 137). 91

Ver Martin (1972, pp. 112-25), Podlecki (1984a, p. 81), Campbell (1990, pp. 211) e MacLachlan (1997, p. 140).

92

Essa linhagem soberana em Lesbos dizia descender de Agamêmnon, filho de Atreu, rei de Argos e chefe da expedição contra Tróia. Isso porque Pentilo, fundador do assentamento grego na ilha, era dado por filho de Orestes, este filho do Atrida. Ver Jeffery (1978, p. 237) e Boardman (1999, p. 85).

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como mostram todos os estudos sobre Alceu. Para muitos, como Bowra (1961, p. 135), a “poesia de Alceu é, em grande medida, um reflexo imediato de uma vida devotada à ação, especialmente à política e à guerra civil”; e é na sua “resposta imediata e poderosa aos eventos” que reside a “força dessa poesia de ação” (p. 157), completa o helenista.

Os detalhes são obscuros e complicados, mas a relação Alceu-Pítaco é assim usualmente resumida a partir dos fragmentos do poeta e dos testimonia acerca dos dois personagens. Em dado momento das convulsões políticas internas e da sucessão de regimes tirânicos pós-queda dos Pentílidas, Pítaco aliou-se a dois irmãos do jovem Alceu para depor um dos tiranos então no poder, Mégacles. Quando adulto, Alceu se uniu ao grupo de Pítaco que substituiu um outro tirano, Melancro (c. 612/09 a.C.), por um de seus membros, Mírsilo, com quem o próprio Pítaco passou a dividir o comando de Mitilene até 597 a.C., data aproximada da morte, natural ou não, de Mirsilo. Pítaco,

em seguida, torna-se o aisumnếtēs (afisumnÆthw), o governante escolhido de Mitilene

por um tempo limitado (595-85 a.C.), enquanto Alceu, rompido com ele, parte com seus aliados para o primeiro de dois exílios - este na lésbia Pirra. O poeta-guerreiro parece ter retornado a Mitilene na tentativa de depor Pítaco; com o fracasso da empreitada, vê-se forçado a um segundo exílio, talvez na Lídia ou em Pirra novamente. Por fim, Alceu retorna a Lesbos e é perdoado por Pítaco, que vem a morrer, assim como, provavelmente, o poeta em cerca de 570 a.C.94.

O retrato antigo de Alceu, assim como o moderno, está estreitamente relacionado a esse quadro político, e depende sobretudo dos versos do poeta e dos

testimonia sobre sua biografia – estes construídos de maneira questionável do ponto de

vista da historicidade, pois estão embasados, como é usual na tradição antiga, numa leitura biografista das canções políticas de Alceu. Tal retrato é, pois, bastante problemático, e não apenas pela sua base literária, mas porque, naquelas canções – segundo Estrabão (séculos I a.C.-I d.C.), “as chamadas stasiōtiká de Alceu” (XIII, II,

3)95 –, a voz poética fala de Pítaco com notável ódio e vale-se constantemente da

invectiva para atacá-lo. Mas o tirano nunca é por nós ouvido, uma vez que ele é o objeto dos comentários de Alceu e de outros antigos, jamais o sujeito.

94

Para essa síntese: Page (2001, pp. 151-97, 1ª ed.: 1955). Ver ainda Di Benedetto (1955, pp. 97-118), Lesky (1995, p. 158-61, 1ª ed.: 1957), Bowra (1961, pp. 135-6), Podlecki (1984a, pp. 62-5). O(s) exílio(s) do poeta está(ão) indicado(s) em pelo menos dois de seus fragmentos (69 e 130b Voigt): ver Carratelli (1943, pp. 13-21) e Page (pp. 197-209).

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Qual é, afinal, o retrato de Alceu? Aquele que as stasiōtiká consolidaram: “revolucionário” na idealização de antigos e modernos, “reacionário” na imagem que vem sendo relativizada pela conclusão de que Alceu não foi um herói da resistência, mas um revolucionário às avessas, um anti-revolucionário, afirma Burnett (1983, p. 116), em luta para garantir a manutenção do status quo e dos privilégios de sua classe, a aristocracia96. Hubert Martin Jr. declara, em Alcaeus (1972, p. 20): “Alceu, sectário e reacionário que é, parece, não obstante, ao menos vagamente ciente de que o seu mundo não é mais o mesmo, que mudanças sociais e econômicas ocorreram”; seu “ódio sectário”, continua Martin, “pode razoavelmente ser atribuído ao orgulho aristocrático e ao fracasso político” (p. 37).

É, portanto, para impedir mudanças em curso na Mitilene de seu tempo que a voz poética de Alceu se manifesta em 1ª pessoa do singular – recurso que vivifica as declarações dos seus textos97. Assim, as suas stasiōtiká “mostram como a velha têmpera heróica”, diz Bowra (1961, p. 137), que conhecemos da épica homérica, “tinha sido assimilada num mundo aristocrático sem perder suas principais características”. E, como declara Podlecki, em “Three Greek warrior-poets” (1969, p. 76), Alceu “escreve qual aristocrata que não abrirá mão de nada, nem mesmo da violenta revolução armada, para assegurar que o poder político esteja fixado em membros de seu próprio grupo social”. Em passagem de outro estudo, Podlecki (1984a, p. 74) arremata: “Está claro que Alceu e seus amigos colocavam em alta conta seus direitos hereditários e os privilégios que eles sentiam como um direito que lhes era devido por sua real ou imaginada elevada condição”.

A revisão da imagem do poeta implica a reconsideração de Pítaco e do que dele se pensava, pois os contornos que os versos de Alceu imprimem ao autocrata são produzidos pelo discurso passional e sectário da voz poética. Em testemunhos que se encontram, por exemplo, em Estrabão (XIII, II, 3) e na Vida dos filósofos eminentes (I, 74-76), de Diógenes Laércio (século III d.C.), Pítaco é elogiado pela maneira como conduziu Mitilene à paz interna e externa, administrando as mudanças que se impunham pela nova realidade econômica e social da pólis e restabelecendo a ordem convulsionada pelas sucessivas tiranias de c. 650 a.C. em diante98. Podlecki (1984a, p. 71) ressalta, com base nos referidos testimonia, que, ao contrário de Sólon (séculos VII-VI a.C.) –

96

Ver Page (2001, p. 177, 1ª ed.: 1955), Lesky (1995, p. 157-8, 1ª ed.: 1957), Bowra (1961, pp. 136-7). 97

Ver MacLachlan (1997, p. 139).

98 Podlecki (1984a, p. 71) ressalta que Pítaco não foi um reformador, como Sólon, por exemplo, mas um moralizador, revisor e adaptador das leis existentes, mas ignoradas, em Mitilene.

célebre nomothétēs (nomoy°thw, “legislador”) e arconte de Atenas –, Pítaco não surge como um reformador, mas, sim, um moralizador, revisor e adaptador das leis existentes, porém ignoradas, em Mitilene. Merece atenção o fato de que a amarga e dura luta de Alceu contra as mudanças e esse aisumnếtēs lésbio em nada, ou quase nada, resultou.

Veja-se um dos ataques a Pítaco no Fr. 71 Voigt (vv. 3-13), de Alceu99:

éyÊ`rei ped°xvn !umpo!¤v.[ ... toca, partilhando o banquete ...[ bãrmo!, fil≈nvn ped' élem[ãtvn a lira, junto a fanfarrões vaz[ios eÈvxÆmeno! aÎtoi!in §pa[ 5 banqueteando-se, a eles ...[

k∞no! d¢ pa≈yei!' Atre˝da[n].[ mas que ele seja [Pítaco?] por boda parente dos Atrida[s] ...[ dapt°tv pÒlin »! ka‹ pedå Mur!¤[`l]v`[ devore a cidade como também junto a Mírsi[l]o[ ... yç! k' êmme bÒllht' ÖAreu! §pit.Êxe..[ até que a nós queira Ares ...[

trÒphn: §k d¢ xÒlv t«de layo¤mey..[ 9 virar; e que esta cólera pudéssemos esquece[r ... xalã!!omen d¢ tå! yumobÒrv lÊa! e que relaxemos da luta devora-coração §mfÊlv te mãxa!, tãn ti! 'Olump¤vn e da guerra civil, que um dos Olímpios ¶nvr!e, dçmon m¢n efi! éuãtan êgvn levantou, o povo à ruína levando, Fittãkv<i> d¢ d¤doi! kËdo! §pÆr[at]o`n.` 13 mas a Pítac<o> dando glória deleitável.

Aqui, a persona sarcasticamente fala dos tiranos Pítaco e Mirsilo, estabelecidos no comando de Mitilene. O banquete de fanfarrões, o governante que devora seu povo, a ligação por núpcias com a casa dos Atridas, ou seja, dos Pentílidas, deposta do poder por uma aliança composta por Alceu e pelos dois tiranos nos versos acima citados – tudo isso compõe a atmosfera de invectiva na 1ª pessoa do singular que se inclui num grupo claramente oposto a Pítaco, Mírsilo e seus aliados (vv. 8-11).

Em outro ataque a Pítaco, ficam claros o sectarismo e a postura parcial de uma voz que é poética e que se apresenta politicamente comprometida. Refiro-me à acusação

de que o tirano era de baixa extração social, kakopatrídēs (kakopatr¤dhw, “de ignóbil

nascença”), diz o Fr. 348 Voigt de Alceu, citado na Política (1285a, 35ss.), de

Aristóteles (século IV a.C.)100. Para os estudiosos, o conteúdo da vituperação não

merece crédito do ponto de vista de sua historicidade, pois, se o tirano havia sido aliado dos irmãos de Alceu e do próprio poeta, Pítaco seria, como estes, aristocrata, logo,

membro de uma associação aristocrática fechada, a hetairía (•tair¤a), um “grupo de

amigos, de companheiros” unidos pela amizade e pela guerra, a profissão hereditária101.

99

Fonte do fragmento: POx 1234 (século II d.C.). Ver Page (2001, pp. 235-40, 1ª ed.: 1955). Tradução minha. 100 Possivelmente o mesmo adjetivo ocorre nos fragmentos 67, 75 e 106 Voigt.

101

Assim, o Pítaco que aparece nos fragmentos de Alceu é um personagem, e a 1ª pessoa do singular, a persona do poeta – engajada, sim, numa causa historicamente fundamentada no contexto da vida política de Mitilene, mas construída literariamente. Gerber, em “General introduction” (1997a, pp. 7-8), observa que uma questão que se coloca quando tratamos da 1ª pessoa do singular na lírica é

“a questão da extensão em que o ‘Eu’ na poesia lírica é simplesmente representativo de visões sustentadas pela audiência é uma declaração altamente pessoal que pode, na verdade, ser posta em oposição à visão de ao menos parte dos membros de uma audiência, ou está representando um papel fictício. Essas abordagens não são mutuamente excludentes, em parte porque gênero e ocasião podem ser elementos significativos. (...) Também faz diferença se o poeta está meramente entretendo sua platéia ou está exortando os seus ouvintes rumo a uma dada direção de ação ou perspectiva. A interpretação do ‘Eu’, porém, é dificultada constantemente pela falta de contexto e pela natureza fragmentária do que sobreviveu”.

O que precisa ser enfatizado é que a 1ª pessoa do singular dos fragmentos líricos deve ser considerada com muita cautela, sem o mecanicismo fácil do biografismo, ou seja, do estabelecimento da relação direta persona-poeta. Não se trata de negar peremptoriamente que na lírica antiga, bem como na moderna, possa haver relação entre a figura histórica do poeta e a figura literária da 1ª pessoa do singular de suas composições. Em certos textos, como as canções políticas de Alceu, os elementos de correspondência entre as duas figuras são inegáveis; mesmo assim, a voz poética é sempre da persona, cujas palavras não podem ser tomadas por documento histórico.

Sabemos que as disputas políticas de Alceu com Pítaco marcaram os seus cantos. O problema em se tratando do estudo destes é o automatismo explicativo que ignora ou minimiza a existência de um filtro que medeia, inevitavelmente, a relação entre o poeta e sua persona: a forma – a linguagem, o metro, a construção sintática, a estruturação das imagens e assim por diante. A experiência pessoal, ao ser plasmada em versos, teve de ser filtrada, pensada, racionalizada; logo, já não é mais em tais versos uma experiência histórico-biográfica relatada, mas a representação desta102.

Tudo somado, o fato é que há divergências entre a imagem de Pítaco na mélica de Alceu, nos versos que sua persona claramente partidária nos canta, e aquela que emerge dos referidos testimonia. E esse fato, por sua vez, faz com que o autocrata não mais seja visto apenas como “um Franco ou Mussolini”, diz Burnett (1983, p. 116), mas também como o contrário dessas imagens, como “um homem sábio e moderado” a atuar na Lesbos arcaica “em defesa das mudanças e dos anseios” de seu tempo presente.

102

O envolvimento de Alceu com a sua própria classe e a política local faz-nos pensar, para o contexto e a audiência da performance das canções monódicas, o simpósio e, nele, a hetairía e os familiares. A essa platéia o poeta podia, com seus versos, repisar os valores aristocráticos idealizados e alimentar tanto o ressentimento para com seu grande inimigo e defensor das mudanças na pólis, quanto a dissensão interna da aristocracia. Gentili (1990a, p. 42, 1ª ed. orig.: 1985), afirma:

“A poesia de Alceu, nascida da e para a ação e destinada a uma audiência restrita por uma associação aristocrática, carrega a marca inconfundível da participação ativa, direta e imediata nos eventos que a inspiraram. Ela reflete a vida tumultuosa de uma associação política arcaica (hetairía) comprometida com o papel de um combatente no encontro conflituoso entre facções. A poesia, em meio a esse quadro, torna-se uma arma indispensável na luta política e uma expressão de alegria ou pesar que inspira o resultado dos embates”.

À hetairía, porém, não eram destinadas apenas as composições políticas. Canções convivais em torno do vinho integravam o cardápio do entretenimento no simpósio em que esse grupo devia se configurar também como o “grupo que bebe”, pois o partilhar das convicções políticas e dos prazeres do vinho servia como motivo de

unidade e reforço da aliança entre os hetaĩroi (•ta›roi, “companheiros de classe, de

armas, de política”103) do círculo de Alceu, marcando a lealdade que os ligava104.

Quando se fala em Alceu, fala-se em política, Pítaco e hetairía, que parece ter sido a sua audiência principal. Segundo Bonnie MacLachlan, em “Personal poetry”

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