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Como conhecer melhor as áreas de interesse nas livrarias das comunidades conventuais, que já há muito que não existem?

Uma fonte significativa acerca dos conteúdos bibliográficos, bem como dos outros aspetos de funcionamento das livrarias conventuais durante o Antigo Regime, são os inventários e catálogos elaborados ao longo do tempo. Neste contexto, merece ser mencionada a tipologia dos inventários e catálogos, exposta por Giurgevich e Leitão (2016, p. XXVI), que os divide em dois grupos, a saber “Vida interna” - elaborados pelas livrarias na iniciativa das congregações internas, e “Reorganização externa” – realizados pelas livrarias na imposição do Estado.

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Segundo os mesmos autores (GIURGEVICH e LEITÃO, 2016, p. XXVI), os do primeiro grupo referem: Catálogos de livraria, Inventários gerais dos bens móveis ou específicos da livraria, Inventários post-mortem e dos espólios dos religiosos, Inventários de doação, Livros de despesas e listas de livros encomendados/desejados e Livros de empréstimos das obras da livraria. Os do segundo grupo são: Inventários mandados fazer pela Real Mesa Censória, Inventários resultantes do inquérito da Junta do Exame sobre o Estado Actual das Ordens Religiosas e Inventários de sequestro e de extinção (GIURGEVICH e LEITÃO, 2016, p. XXVI)

Obviamente, em termos de descrição das coleções por assuntos, que pudessem oferecer uma imagem clara acerca dos conteúdos bibliográficos conventuais, nem todos os documentos acima mencionados são significativos. Os mais relevantes neste aspeto são os catálogos elaborados para serem remetidos à Real Mesa Censória. O Edital de 10 de julho de 1769 exigia que todos os livros e manuscritos fossem agrupados por temas divididos em sete classes: Teologia, Jurisprudência, Filosofia, Matemática, Medicina, História e Belas Artes. Esta classificação que posteriormente se consolidou como paradigmática no contexto português (CAMPOS, 2013, p. 84), remete-nos para os conteúdos que as coleções das livrarias, inclusivamente as religiosas, albergavam. Sem uma análise prévia, e visto que se tratava de livraria conventual cujo objetivo residia em ir ao encontro das necessidades dos religiosos, e tendo em conta o contexto sociocultural no qual a Igreja Católica tinha uma influência decisiva na vida de todos, consideremos como uma variável óbvia que a temática dos livros era preponderantemente religiosa. Admitindo que esta suposição seja verídica, resta saber, neste caso, além de livros de âmbito teológico, quais eram as preocupações espirituais e intelectuais dos religiosos. À procura de esclarecimento neste sentido, tomemos como ponto de partida a análise efetuada por Campos (2015, p. 88) sobre os temas contemplados nos catálogos de 61 bibliotecas religiosas, realizados em 1769 ao pedido da Real Mesa Censória, e onde é apresentado o seguinte quadro temático com as respetivas percentagens: Teologia - 55%, Jurisprudência – 9%, Filosofia – 3%, Medicina - 2%, Matemática – 1%, História – 17%, Belas Letras – 11%.

Numa perspetiva comparativa com os interesses temáticos dos particulares, consideremos um estudo sobre as livrarias particulares de Torres Vedras, baseado também em estudo de catálogos que foram submetidos à Real Mesa Censória. Ainda que desigual, pois trata-se de uma abordagem de caráter regional e socioprofissional, a análise em causa, elaborada por Ricardo Raimundo (2008, p. 207), mostra um quadro

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temático quantificado, com preferências de leitura ou estudo, não muito diferente dos interesses livrescos dos religiosos: Teologia – 52%, Jurisprudência – 15 %, Belas Letras - 11%, História – 9%, Medicina – 7%, Filosofia - 5%, Matemática -1%. Destes quadros podemos deduzir que as preferências temáticas dos particulares, além da obrigatoriedade de cada um possuir um livro religioso, derivavam das necessidades profissionais. No caso dos religiosos, o facto de integrarem nas suas coleções cerca de 45% de livros de outras áreas de conhecimento, que não de carácter teológico, denota não apenas preocupações de ordem espiritual, mas também um vivo interesse pelo conhecimento e pelo saber em geral.

Numa outra ordem de ideias, o que atesta o horizonte de interesses dos religiosos, podemos destacar um leque de conteúdos mais específicos das coleções religiosas, a partir dos catálogos ou inventários elaborados por livrarias conventuais para utilização interna. Meramente a título de exemplo, no Catálogo da Livraria dos Conventos dos Congregados de Braga, de 1823, encontramos temas mais alargados, fora do domínio teológico: “Juristas”, “Filozofos e Mathematicos”, “Medicos e Cirurgicos”, “Chronologos, e Historioradores”, “Poética, e Poetas”, “Geographos” (GIURGEVICH e LEITÃO, 2016, p. 364), onde a designação de Juristas, Médicos, etc., indicam autores de livros de direito, de medicina, sendo estas designações associadas aos temas.

Os inventários de extinção de 1834 não são tão elucidativos em termos de apresentação das áreas de conhecimento das coleções religiosas, devido à estrutura sumária de descrição dos documentos. Estes inventários contêm na sua maioria poucos elementos de identificação dos livros, uns têm caráter mais topográfico, descrevendo os documentos por ordem alfabética do autor ou título com a indicação da disposição dos livros nas estantes.

Neste contexto, é bem-vinda a análise sobre as livrarias conventuais femininas, efetuada por Barata (2011, p. 138), que em relação ao conteúdo bibliográfico destas bibliotecas incluía livros litúrgicos, livros de teologia, livros de moral, as hagiografias, as biografias de religiosos, os exercícios espirituais, os livros de cantochão, os martirológios, as vidas de Jesus, as regras, as histórias e as crónicas das ordens religiosas e dos conventos. Observamos que a temática é preponderantemente de caráter religioso, e segundo o autor, “são raras as obras de temática profana – obras de carácter práctico e cariz funcional como: farmacopeia geral e farmacopeia lusitana, livros de botânica, gramáticas, dicionários, vocabulários, obras para aprendizagem da leitura e da

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escrita” (BARATA, 2011, p. 138). Por outro lado, segundo estudos pontuais sobre as livrarias de grandes dimensões, a temática apresentava-se bastante extensa e variada, e ia desde a temática religiosa, inclusivamente livros de antigos eruditas, até livros proibidos tais como a “Encyclopédie” de Voltaire e Diderot, no caso da Biblioteca do Mosteiro de Tibães, por exemplo (DIAS, 2011; GIURGEVICH e LEITÃO, 2016). Destes exemplos deduzimos que o conteúdo das coleções varia de livraria para livraria. A temática, apesar de preponderantemente religiosa, não exclui textos de antigos eruditas ou até livros proibidos, destinados tanto ao apoio às práticas religiosas, bem como ao estudo e ao desenvolvimento pessoal.

Temos de mencionar que o surgimento da imprensa, tal como o envolvimento das instituições religiosas no processo de ensino, contribuíram na dinamização e no enriquecimento das coleções com novos e diversos textos, não apenas de âmbito religioso, mas também de outras áreas.

Estas observações são longe de ser uma análise completa referente ao conteúdo temático das livrarias religiosas, tanto na sua dimensão cronológica, como na sua variável institucional. Para conseguir um panorama mais completo seria necessário investigar os catálogos, inventários ou índices elaborados antes ou depois de 1770. Mesmo assim, seria impossível conseguir um delineamento paradigmático, pois nem todas as instituições religiosas tiveram a preocupação de seguir os princípios organizativos na gestão das coleções.