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O conhecimento do que se lia e como se lia nos conventos e mosteiros portugueses no Antigo Regime constituem ainda hoje objetos de estudo em aberto.

À procura de respostas, foram consultados e selecionados, entre outros, os artigos que apresentam maior relevância: “As bibliotecas nos mosteiros da Antiga congregação beneditina portuguesa” de José Amadeu Coelho Dias, “Nobres leteras…Fermosos volumes”: inventários de bibliotecas de franciscanos observantes em Portugal no século XV” e “Do recomendado ao lido: direcção espiritual e prática de leitura entre franciscanas e clarissas em Portugal no século XVII” de José Adriano de Freitas Carvalho.

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No seu artigo, Dias (2011) evidencia a importância dos mosteiros beneditinos na perpetuação da cultura ao longo da história, considerando as livrarias destes “uma fonte de materiais de memória.” Esta realidade deve-se ao valor indescritível que atribuíam ao livro e ao papel deste na vida dos religiosos. Segundo o autor referido, desde os primórdios da criação da primeira ordem religiosa, a de S. Bento, a leitura era muito importante nas instituições religiosas para a evolução espiritual e intelectual dos monges. Os religiosos “sabiam bem que os livros da cultura são tão necessários à vida das instituições religiosas como o alimento para o corpo humano” (DIAS, 2011, p. 139), de modo que nas suas ocupações estabeleceram horas para ler. Desta forma, as atividades dos beneditinos iam além de “Ora & Labora”. Tinham um horário rigoroso e distinto não só para orar e trabalhar, mas também para ler, obrigatoriamente, duas horas por dia, e quatro na Quaresma, “havendo quem vá pelas celas verificar se os irmãos estão ou não a ler” (DIAS, 2011, p. 140).

Portanto, o ato de ler no ambiente monástico era sujeito a um conjunto de regras definidas, que diziam respeito à distribuição do tempo e das atividades dos religiosos. Relativamente ao que se lia, numa perspetiva abrangente podemos deduzir o conteúdo das leituras a partir dos inventários e catálogos. Para ilustrar, consideramos relevante o exemplo que Dias traz sobre o conteúdo da Livraria do Mosteiro de Carvoeiro, cujo inventário de extinção de 1834 continha secções de Bíblia, Exegese, Patrística, Clássicos gregos e latinos, História monástica, História Pátria, Espiritualidade, Hagiologia, Literatura, Dicionários de línguas (espanhol, francês, toscano, latim), Moral, Medicina, Sermões, Retórica, Gazetas e Folhetos. A presença dos Clássicos gregos e latinos e dos dicionários de línguas mostra um largo espectro de preocupações intelectuais. A que se deve este interesse que não se resume apenas à leitura de textos religiosos ou de espiritualidade, mas procura explorar também outras áreas de cultura e conhecimento?

Acerca das bibliotecas beneditinas portuguesas dos séculos XVI-XIX, Dias (2011, p. 143-144) relata:

Apenas reformada e estabelecida, a Congregação dos Monges Negros de S. Bento do Reino de Portugal (1566-67), logo no Capítulo Geral, reunido no Mosteiro de Tibães (1570), procurou-se dar relevo à formação intelectual dos monges, levando-os, inclusive a frequentar a Universidade de Coimbra. Ai […], bastantes deles foram mesmo professores, muitos foram pregadores, alguns dedicar-se à história e genealogia, e bastantes

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foram cronistas dos mosteiros, diaristas e cronistas da Congregação, professores da Universidade de Coimbra…”

Assim, em virtude da variedade de preocupações referidas e do interesse por várias áreas de conhecimento, a leitura não se limitava apenas a ser um instrumento ou forma de retiro e enriquecimento espiritual. Nestas circunstâncias, o ato de leitura aufere novas dimensões, podendo ser caracterizada como leitura crítica, leitura meditativa, leitura construtiva que podia ter lugarsó com base em textos científicos ou literários eruditos e complexos. Trata-se de uma realidade que, transposta no contexto atual, ganha conceções de evidentes atividades de criação de novos conhecimentos, de novos saberes.

Uma realidade diferente da anterior é ilustrada por Carvalho (1995, 1997) nos seus artigos sobre as leituras religiosas, desta vez, das freiras e frades dos conventos franciscanos no século XVII, que faziam parte das ordens mendicantes.

A forma organizacional dos estabelecimentos das ordens mendicantes, que privava os conventos de autonomia no seu funcionamento, tinha uma influência determinante nas práticas de leitura. Desta forma, as leituras eram recomendadas e orientadas na comunidade religiosa através da seleção de textos feita por confessores, diretores espirituais e mestras de noviças.

É notável, neste contexto, o exemplo do frei António das Chagas, que nas suas Cartas Espirituais dirigidas às freiras “não se cansará de recomendar a leitura de vidas dos santos” (CARVALHO, 1997, p. 11) aconselhando às religiosas ler todos os dias uma hora por dia. No que concerne à pergunta “como liam?”, Carvalho (1997, p. 15) refere “que nem todos leriam ou poderiam ler as mesmas obras, […] do mesmo modo”, comentando que as obras recomendadas pelo frei. António das Chagas apontariam para um modo de “leitura pessoal”.

Ler e praticar os Exercícios Divinos de las três vias de N. Esquio, meditar no Tratado do Amor de Deus de São Francisco de Sales, no Combate Espiritual de Lorenzo Scupoli ou nas Meditaciones sobre los Principales Misterios de Nuestra Fe de Luís de La Puente, não só nos remete para títulos concretos destinados a aproximar o espírito e as almas das freiras à luz e paz do divino, como também, oferece sugestões claras de como ler. Meditar uma leitura, certamente não é uma leitura em voz alta ou em grupo, algo bastante comum em ambientes conventuais. Meditar, neste sentido, pressupõe uma

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interiorização e uma reflexão da palavra lida, implica uma leitura pessoal, que vai além dos atos de rezar ou orar.

Contudo, o autor manifesta-se pessimista quando afirma que não se sabe se os livros recomendados foram realmente lidos, “as recomendações são tratadas como se de reais leituras se tratasse” (CARVALHO, 1995). Por outro lado, as informações contidas em crónicas das instituições, por exemplo, raramente mencionam que as religiosas tivessem seguido as orientações de leitura dos confessores. Uma explicação para este cenário seria a de que tratando-se de leitura de meditação, esta é de difícil acesso à compreensão, ou a de não conseguirem entrar na posse do livro. A austeridade que derivava dos princípios de organização e funcionamento das instituições mendicantes, determinava escassez de livros nas livrarias das mesmas, e neste caso as leituras dos franciscanos dependiam da disponibilidade dos textos (CARVALHO, 1995, p. 11). No caso da leitura dos frades franciscanos a leitura individual tem evidências de ser a mais praticada. Esta ocorria de acordo com o estatuto e funções que o leitor desempenhava dentro da instituição religiosa. Assim, aos mestres de noviços, confessores e pregadores exigiam-se leituras de estudo para reger, orientar ou aconselhar os membros da comunidade que se encontravam na sua subordinação (CARVALHO, 1995, p. 22).

Além da leitura individual, Carvalho (1995, p. 14), refere outro tipo de leitura que é a “leitura em comum lida por um e ouvida por todos, teremos de considerar a do coro e a da mesa”… Além de lugares, são modos e momentos também consagrados à leitura…”. Não podemos deixar de constatar que é muito interessante e completa esta última observação acerca da “leitura em comum”, associada a um lugar – coro ou mesa, a um modo de ler – em voz alta, a um momento – que mais do que uma dimensão temporal, é uma dimensão espiritual pela qual muitos anseiam.

Portanto, em comparação com os beneditinos para quem a leitura não era apenas uma fonte de alimentar a alma, mas também de desenvolvimento intelectual, os franciscanos seguiam leituras de espiritualidade, ou seja, eram direcionados para “a sapientia e não para a curiositas” (CARVALHO, 1995, p. 10).

Sobre o que se lia, e numa perspetiva mais abrangente, pois refere-se às livrarias conventuais femininas no geral, podemos deduzi-lo do artigo de Barata (2011), onde refere que o conteúdo bibliográfico destas bibliotecas incluía livros litúrgicos, livros de teologia, livros de moral, as hagiografias, as biografias de religiosos, os exercícios

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espirituais, os livros de cantochão, os martirológios, as vidas de Jesus, as regras, as histórias e as crónicas das ordens religiosas e dos conventos.

Todavia, Campos (2015), à semelhança de Carvalho (1997), afirma que o facto de existirem livros numa biblioteca ou de os religiosos possuírem livros, não significa que tenham sido lidos. Neste seguimento, Carvalho (1997) refere a dificuldade de abordar e fazer uma análise objetiva acerca das leituras das freiras que viviam num círculo fechado: “[…] esse complexo e complicado mundo da leitura nos conventos e mosteiros, onde se lia por obrigação, por devoção, por obediência, por recreio e tantas vezes, […] por “dever profissional”, já que a leitura vem sempre encarada como uma forma de ars orandi… que era a razão de ser da vida religiosa” (CARVALHO, 1997, p. 53).

A título de conclusão sobre a função da leitura, esta sempre foi associada ao meio de índole espiritual, independentemente da natureza da instituição religiosa.

As modalidades de leitura, que compreendem igualmente os lugares de leitura, os tempos de leitura, praticados nos espaços religiosos, eram estabelecidas nas regras e de acordo com os estatutos de cada ordem.

A partir dos artigos consultados, verifica-se que não é simples analisar o fenómeno da leitura em instituições de memória que já há muito que se desvaneceram, sem deixar vestígios de memórias claras neste sentido. No entanto, não foi difícil de observar que a tipologia religiosa da instituição influenciava as leituras, proporcionando atividades mais ricas ou mais modestas, ou seja, as livrarias pertencentes às Ordens beneditinas, no nosso caso, harmonizavam práticas de leitura mais variadas do que as livrarias pertencentes à Ordem dos mendicantes. Outra diferença é que os frades liam para estudar, pregar, instruir, enquanto as freiras limitavam-se às leituras espirituais.

Várias observações podem ser feitas finda a revisão de literatura. A primeira concerne o facto de que as livrarias conventuais portuguesas no Antigo Regime terem traços comuns com as livrarias conventuais dos outros países europeus, no nosso caso com as de França. A capacidade de perdurar, a austeridade dos princípios tradicionais, permitiram às livrarias conventuais resistir e afirmarem-se como veículos de saberes e de guardiões de património, independentemente do seu espaço geográfico. No entanto, esta perpetuação foi interrompida aquando da extinção das ordens religiosas e, com estas, das livrarias. Assim, Barata (2003, p. 65) relata que “Para formar as livrarias conventuais, foram certamente necessários séculos, décadas ou anos de dedicação e

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tenacidade, para dispersa-los e fragmenta-los irremediavelmente bastou uma lei e uma arrecadação deficiente.” A extinção das livrarias religiosas e a dispersão dos conteúdos bibliográficos destas por várias bibliotecas, por vezes sem indicações que permitam estabelecer uma relação entre a origem e o destino, levam a uma certa dificuldade nas tentativas de investigação dos respetivos núcleos e livrarias.

Noutra ordem de ideias, esta revisão de literatura revelou que a perpetuação destas livrarias foi possível devido aos instrumentos normativos, às regras e estatutos que estabeleciam práticas concretas de aquisição de livros, de uso de espaços de leitura ou de livros, independentemente da natureza da instituição religiosa.

Por outro lado, as diferenças das instituições religiosas determinaram as atividades e os interesses da comunidade, que por sua vez tiveram influência direta na dimensão da livraria (grande ou pequena) ou no caráter do conteúdo (temáticas restritas ou variadas). Em termos de organização física dos documentos, as livrarias utilizavam sobretudo o princípio funcional, por tamanho, por exemplo. O critério temático era menos aplicado, utilizava-se com preponderância em bibliotecas de grandes dimensões.

31 2. Convento de Nossa Senhora da Arrábida: apontamentos de fundação e da construção