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206 207época, teve o custo aproximado de mil reais por aluna (esta

No documento Série: ESCRITOS DA DANÇA (páginas 104-107)

frustração ficou gravada em minha memória de adolescente, constituindo-se em célula impulsora desta iniciativa); tercei-ro, por trabalhar, atualmente, enquanto professora de dança do ventre, com diversos formatos e possibilidades de corpos, muitos deles mutilados, e, por isso, buscar figurinos que man-tenham uma uniformidade nas diferenças para meus grupos de alunas (por exemplo, escolhemos que todas dançarão de saia longa feita de veludo molhado preto e decidimos que cada aluna tem a liberdade de fazer ou encomendar a saia no modelo que gosta mais ou que melhor se adapta ao seu corpo); e quarto, por ter ministrado uma oficina gratuita de dança do ventre, com criação de coreografia, em região descentralizada do município, juntamente com um programa da Prefeitura de Porto Alegre, na qual participavam, ao mes-mo tempo, alguém com possibilidade de comprar um figurino considerado luxuoso, repleto de strass e cristais, e alguém que mora na rua.

O processo teve seu início a partir da pesquisa do que consiste um figurino denominado luxuoso nesta arte, chegan-do-se à conclusão de que ele é um conjunto composto por um top (ou sutiã) e um cinturão bordados com muito brilho de cristal legítimo, de strass, de pérolas, de miçangas, de vidri-lhos e de canutividri-lhos. No cinturão, correntes de pedrarias que se movem e fazem som quando o quadril vibra na dança. Na ponta das correntes, o brilho do ouro, da moeda ou de uma pedra de cristal maior que as pedras que constituem a corrente. Além desse conjunto, que pode estar etiquetado com o nome da grife ou do atelier, uma saia longa completa o modelo-base.

Determinado o modelo, o passo a seguir foi utilizar a mesma estrutura, porém pensando em que materiais do lixo poderiam trazer o brilho e o barulho ao corpo que dança. Os materiais mais utilizados foram:

− Lacres de latinhas de refrigerante, que fizeram as pontas das correntes e conferiram som à vibração dos quadris;

− Pedaços de canudos plásticos, que, costurados, for-maram as correntes dos cinturões e dos tops;

− CDs inutilizados, que foram cortados, estruturando a base para o cinturão e refletindo a iluminação em cena;

− Plásticos prateados, tais como saquinhos de chá e

gelatina, que fizeram os detalhes;

− Alumínio de diversas embalagens, como os

encon-trados no leite em pó e no café;

− Sobras de tecidos (uma saia foi elaborada a partir de tecidos que haviam sido colocados no lixo ao final de um casamento);

− Restos de bijuterias, como brincos que faltam o par, cintos e colares quebrados.

A seguir, imagens do meu figurino:

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Imagem 2: Cinturão confeccionado com materiais de descarte. Foto: Sonia Melnik

A ideia do meu luxo feito de lixo tomou conta do gru-po da oficina citada, e o luxo do lixo tomou progru-porções de grupo, gerando uma confecção coletiva com a ciência de que o nosso lixo pode ser o nosso luxo, porque, para fazer luxo, é preciso muito lixo, mas é do lixo que também pode surgir o meu, o teu, o nosso luxo.

E é dessa ideia, é do descartado e do descartável, que quatorze figurinos personalizados foram confeccionados por (mais de) quatorze participantes. A coleta de materiais contou com a ajuda de parentes e amigos. A elaboração do meu, e dos outros figurinos, foi uma construção coletiva e familiar, em um grupo onde um ajudou o outro. Houve quem nunca tivesse pego em uma agulha e que descobriu as bele-zas da criação que vem do reciclado. Houve quem fez brin-cos de flores de garrafas pet, bordados em CDs inutilizados. E houve quem não dançou, mas que esteve envolvido com o figurino das praticantes de dança, ensinando o melhor jeito de bordar, costurando para quem não conseguia ou orien-tando quem quisesse aprender.

Imagem 3: Top, bracelete e colar de uma aluna confeccionados com materiais de descarte. Foto: Sonia Melnik

Imagem 4: Cinturão de uma aluna confeccionado com materiais de descarte. Foto: Sonia Melnik

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Imagem 5: Nosso luxo. Foto: Sonia Melnik

E fazendo do lixo um figurino de luxo, a dança torna--se mais sustentável, economicamente, na medida em que facilita o acesso de quem tem poucos recursos financeiros para investir em seus trajes de aula e de apresentações; so-cialmente, estimulando uma rede saudável de relações onde a comunidade se une pela causa; e ambientalmente, através do estímulo ao reaproveitamento do lixo.

É possível pensar em algumas alternativas de espaços para abordar a dança nessa linha de pensamento. Vamos a uma possibilidade: como nos últimos tempos a dança vem se inserindo nas escolas de Porto Alegre já na Educação In-fantil, eis um ótimo espaço de trabalho na interface dança e sustentabilidade no qual é possível abordar a cultura com as crianças e, ao mesmo tempo, incentivar o desenvolvimento sustentável, fomentando a criatividade e a conscientização ambiental, sugerindo possibilidades de reutilização dos resí-duos sólidos para os alunos e para a comunidade escolar.

Estes escritos apresentaram uma reflexão a partir de uma possibilidade – entre tantas existentes – na interface dan-ça e sustentabilidade. Muito pode ser aperfeiçoado, conti-nuado e modificado dessa experiência. Práticas como essa podem ter continuidade, somando-se a outras realizadas na cidade, sendo direcionadas à cultura, à educação e à peda-gogia da dança e, concomitantemente, ao meio ambiente, à saúde, à reciclagem, à sustentabilidade. Fica aqui o regis-tro, para a memória da dança de Porto Alegre, de uma ex-periência entre tantas outras que abordam a amplitude da dança na cidade para, assim, ser reproduzida, modificada, adaptada, ampliada, reciclada.

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No documento Série: ESCRITOS DA DANÇA (páginas 104-107)

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