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O éthos de Jesus

No documento Parábolas e paixões (páginas 119-124)

Esquema 13 Percurso da vida à morte em A parábola do rico e Lázaro

4 O éthos e a ideologia de Jesus

4.2 O éthos de Jesus

Barthes (1975: 203) define o éthos como “os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório para causar boa impressão [...]”, ou seja, pode-se afirmar – em termos greimasianos – que o orador deve estabelecer um contrato fiduciário com seus ouvintes.

Barros (2001: 37) ressalta que, no contrato fiduciário, o destinador, graças a um fazer persuasivo, busca a adesão do destinatário. Dessa forma, o discurso de Jesus caracteriza-se tanto pelo fazer-fazer (os ouvintes devem assumir certos comportamentos para adquirirem o reino de Deus) quanto pelo fazer-crer ( o público deve reconhecer como verdadeiro o fazer do pregador).

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Na Retórica aristotélica, já se apontavam três características responsáveis pelo estabelecimento desse contrato de confiança :

Os oradores inspiram confiança: (a) se seus argumentos e conselhos são sábios, razoáveis e conscientes, (b) se são sinceros, honestos e equânimes e (c) se mostram solidariedade, obsequiedade e

amabilidade com seus ouvintes (ARISTÓTELES, Retórica II, 1378a

6, apud AMOSSY, Ruth (org.), 2005: 37).

É importante, porém, frisar que essa confiança deve ser resultante da imagem que o enunciador constrói em seu discurso, ou seja, o éthos discursivo, e não de uma imagem preexistente, o éthos prévio.

No evangelho, já se tem um éthos prévio de Jesus, dado pelo narrador. Lucas, por exemplo, delega voz ao anjo Gabriel para que ele apresente à Maria o sujeito Jesus como divindade:

Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim (Lucas 1. 31-33).

O narrador mostra também um menino Jesus prodígio, ouvindo e interrogando doutores no templo: “E todos os que o ouviam muito se admiravam da sua inteligência e das suas respostas” (Lucas 2. 47).

Finalmente, o evangelista apresenta o homem Jesus como portador de autoridade: “E muito se maravilhavam da sua doutrina, porque a sua palavra era com autoridade” (Lucas 4. 31).

Interessa, entretanto, para este trabalho, examinar alguns discursos apaixonados e de paixão produzidos por Cristo para que – dessa totalidade discursiva – se depreenda o tom passional de Jesus, que levará à construção de seu éthos.

É importante, primeiramente, destacar que o enunciador não se expressa de uma maneira fixa; leva-se em conta o quadro interativo, que implica papéis, lugares e momentos de enunciação específicos. Greimas e Courtés (1989: 150) ensinam que enunciador e enunciatário constituem o sujeito da enunciação, ressaltando-se, assim, o papel do co-enunciador. Com efeito, a imagem do enunciatário constitui uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador: no caso de Jesus, por exemplo, o discurso que ele produzia para um auditório formado apenas pelos “pecadores” não era o mesmo que produzia para um auditório formado somente pelas autoridades religiosas. Dessa forma, dependendo do lógos e do páthos, Cristo expressa uma dimensão de éthos diferente. Fiorin (2004: 121) explica as dimensões de éthos enumeradas por Aristóteles, e Jesus – dependendo da ocasião – vai valer- se de uma destas:

a) a eúnoia, que significa a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. O que usa a eúnoia se apresenta como alguém solidário com seu enunciatário, como um igual, cheio de benevolência e de benquerença e erige suas provas muito mais com base no páthos. Assim, ao contrário dos legalistas – fariseus, escribas e saduceus – Jesus desenvolvia seu discurso em um tom pacífico, afetuoso e paternal, mostrando sua compaixão por aqueles rejeitados pela sociedade. Lucas, no capítulo 6 de seu evangelho, registra que Jesus, olhando para seus discípulos, disse-lhes:

Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis fartos.

Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sois quando os homens vos odiarem e quando vos expulsarem da sua companhia, vos injuriarem e rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho do Homem.

Regozijai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu; pois dessa forma procederam seus pais com os profetas (Lucas 6. 20-23).

A filosofia de Cristo opunha-se, também, às doutrinas da Lei, que traziam um fardo pesado a todos os que delas se desviavam. Tomando emprestado de Maingueneau (2005: 78) o termo por ele usado para referir-se ao discurso de

São Francisco de Sales, pode-se dizer que, em muitas parábolas, Jesus manifesta o éthos de “doçura”. Nelas, Cristo vai evocar um mundo em que se perdoa ao pecador arrependido, estabelecendo-se, assim, um cosmos harmonioso. Na parábola da dracma perdida, por exemplo, Lucas afirma: “Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e pecadores para o ouvir”. E é exatamente para esse auditório que Cristo, após contar a parábola, vai dizer: “Digo-vos que, assim, haverá mais júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. A solidariedade que Jesus tem com os rejeitados o faz, certa vez, dizer às autoridades religiosas: “Os sãos não precisam de médicos, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento” (Lucas 5. 32).

b) a areté, que significa a virtude, mas virtude tomada em seu sentido primeiro de “qualidades distintivas do homem” (latim uir, uiri), portanto, a coragem, a justiça, a sinceridade; nesse caso, o orador apresenta-se como alguém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista. O que se vale da areté se apresenta como franco, temerário e constrói suas provas muito mais com os recursos do éthos. A doçura que Jesus emprega, quando se dirige aos pecadores chamados ao arrependimento, converte-se em ácida crítica quando se dirige aos adversários. Assim, Jesus desqualifica os fariseus e os escribas, que se estabelecem nos evangelhos como antifiadores69. Para ilustrar, pode-se citar o seguinte discurso registrado no evangelho de Lucas, capítulo 11, versículos 37 a 52:

Ao falar Jesus estas palavras, um fariseu o convidou para ir comer com ele; então, entrando, tomou lugar à mesa.

O fariseu, porém, admirou-se ao ver que Jesus não se lavara primeiro, antes de comer.

O Senhor, porém, lhe disse: Vós, fariseus, limpais o exterior do copo e do prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e de perversidade.

69 Antifiadores são elementos desqualificados de maneira performativa pela enunciação que os

Insensatos ! Quem fez o exterior não é o mesmo que fez o interior ? Antes, dai esmola do que tiverdes, e tudo vos será limpo.

Mas ai de vós, fariseus ! Porque dais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças e desprezais a justiça e o amor de Deus; devíeis, porém, fazer estas coisas sem omitir aquelas.

Ai de vós, fariseus ! Porque gostais da primeira cadeira nas sinagogas e das saudações nas praças.

Ai de vós, que sois como as sepulturas invisíveis, sobre as quais os homens passam sem o saber !

Então, respondendo um dos escribas, disse a Jesus: Mestre, dizendo estas coisas, também nos ofende a nós outros !

Mas ele respondeu: Ai de vós também, doutores da Lei ! Porque sobrecarregais os homens com fardos superiores às suas forças, mas vós mesmos nem com um dedo os tocais.

Ai de vós ! Porque edificais os túmulos dos profetas que vossos pais assassinaram.

Assim, sois testemunhas e aprovais com cumplicidade as obras dos vossos pais; porque eles mataram os profetas, e vós lhes edificais os túmulos.

Por isso, também disse a sabedoria de Deus: Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns deles matarão e a outros perseguirão, para que desta geração se peçam contas do sangue dos profetas, derramado desde a fundação do mundo;

desde o sangue de Abel até ao de Zacarias, que foi assassinado entre o altar e a casa de Deus. Sim, eu vos afirmo, contas serão pedidas a esta geração.

Ai de vós, doutores da Lei ! Porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós mesmos não entrastes e impedistes os que estavam entrando.

Na própria parábola do fariseu e o publicano, analisada no capítulo anterior, a figura do publicano é justificada por Jesus; a do fariseu, recriminada por ele. Da mesma forma, em A parábola do bom samaritano, o sacerdote e o levita são criticados; o samaritano, elogiado.

Assim, Jesus – empregando estratégias da eúnoia e da areté – constrói, por meio de seus discursos, um éthos de dualidade (doçura/ acidez), caracterizando-se, para a Semiótica, como um sujeito complexo, capaz de conciliar contrários. Cabe ainda registrar que essa complexidade de caráter o identifica com o herói mítico70.

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Fiorin (2005: 23) ressalta que “no universo mítico cristão, a partir da oposição semântica de base /divindade/ versus /humanidade/, têm-se seres complexos, como Cristo (divindade e humanidade), ou neutros, como os anjos (nem divindade nem humanidade)”.

Depreendidos o éthos de Lucas e o de Jesus, constata-se que, entre eles, há coincidências: misericórdia com os pobres, com os doentes, com os pecadores; comunhão de bens; censura aos avarentos, aos ricos e aos orgulhosos. E o mais interessante: embora o éthos de Cristo seja criado discursivamente por Lucas, o éthos de Lucas é resultado dos ensinamentos que ele assimilou de Cristo por meio do apóstolo Paulo. Cristo, então, é orientador de Lucas, e o evangelista infunde isso em sua obra.

No próximo item, será feito um exame de como o éthos dual de Cristo vai fazê-lo entrar em constante confronto com as autoridades da época.

No documento Parábolas e paixões (páginas 119-124)