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Delegação de voz discursiva em A parábola do filho pródigo

No documento Parábolas e paixões (páginas 80-84)

No texto em exame, o enunciador opera desembreagens internas, pois o narrador dá a palavra às pessoas do enunciado já instaladas no enunciado. Assim, intercalam-se a desembreagem enunciva e a desembreagem enunciativa. O narrador vale-se da desembreagem enunciva, pois projeta no enunciado um ele [“E (Jesus) disse:...”]; o interlocutor de primeiro grau (Jesus), da mesma forma, instala no interior do enunciado os actantes do enunciado (terceira pessoa – “Um certo homem...”, “...ele se indignou e não queria entrar...” etc), os espaços do enunciado (aqueles que não estão relacionados ao aqui, mas ao espaço do lá – “...partiu para uma terra longínqua...”, “... um dos cidadãos daquela terra...” etc) e os tempos do enunciado (tempos do então: pretérito imperfeito, pretérito perfeito 2 – “E o seu filho mais velho estava no campo; e, quando veio e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças” etc). Porém, os interlocutores de segundo grau valem-se da desembreagem enunciativa, projetando, no enunciado, o eu-aqui-agora da enunciação, instalando, assim, no interior do enunciado, os actantes enunciativos (eu/tu – “Pai, dá-me a parte ...”), os espaços enunciativos (aqui/aí – “... eu aqui

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De todos os evangelhos canônicos, o de Lucas é o único que é endereçado especificamente a alguém: “...igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lucas 1. 3-4).

pereço de fome”) e os tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1 e futuro do presente – “Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti”).

Na sintaxe do discurso, os efeitos de realidade decorrem, em geral, dessas desembreagens internas. Quando, no interior do texto, cede-se a palavra aos interlocutores, em discurso direto, constrói-se uma cena que serve de referente ao texto, cria-se a ilusão de situação real de diálogo [“E ele (um dos servos) lhe (filho mais velho) disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo”]. Assim, Jesus, o interlocutor, não “disse que o servo disse”, mas tratou de repetir “tais quais” suas palavras. O mesmo faz o narrador no início do texto [“E (Jesus) disse:”]. Teria Jesus dito exatamente essa parábola, nessa ordem, com esses termos, nesse contexto ? Pouco importa, pois a ilusão de realidade foi conseguida.

Contribui também para esse efeito de realidade o fato de se atribuir a voz a um sujeito designado de antemão como portador de autoridade. O narrador, ao se referir pela primeira vez a Jesus no evangelho, já o instala como divindade: “Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lucas 1. 32-33).

Semântica discursiva

Em A parábola do filho pródigo, a figura terra longínqua reveste o tema da independência; as figuras desperdiçar a fazenda, viver dissolutamente e gastar tudo investem o tema da má administração de bens; as figuras Pai e pecar contra o céu compõem o tema religioso monoteísta; as figuras fazenda (herança), roupa, anel, sandália, bezerro cevado e abundância de pão recobrem o tema da riqueza/fartura; grande fome, padecer necessidades, desejar comer a comida dos porcos formam o tema da pobreza/escassez; comer, alegrar-se, música e danças (= festa), o tema da alegria; meretrizes, o tema da sexualidade, da devassidão etc.

Alguns desses temas aparecem combinados por meio de antíteses, que, segundo Fiorin (2005: 120), são “oposições figurativas ou temáticas num determinado texto” :

a) “ Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome !” – opõem-se aqui os temas riqueza/fartura e pobreza/escassez;

b) “...meu filho estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado” – por meio de antíteses constituídas de metáforas (morto e perdido = separação; reviveu e foi achado = comunhão), opõem-se os temas independência e dependência.

No texto em exame, os percursos figurativos apresentados desenrolam, pelo menos, três leituras temáticas, o que o torna um discurso pluriisotópico:

a) tema socioeconômico da má administração de bens;

b) tema religioso do arrependimento do pecador;

c) tema psicológico da passagem da adolescência à idade adulta marcada pelo desejo de independência e pela iniciação sexual.

Essas leituras temáticas estão inter-relacionadas. Para cada uma delas, pode haver diferentes investimentos figurativos, todos eles caracterizados pela oposição de traços espaciais e sensoriais que separam, no texto, a dicotomia independência versus dependência.

traço independência vs. dependência

espacial terra longínqua casa paterna

gustativo bolotas comidas por porcos bezerro cevado

visual descalço, maltrapilho sandálias, melhor roupa, anel

auditivo lamentação música e danças

Quadro 4: Traços espaciais e sensoriais dos investimentos figurativos em A parábola do

O lexema pai – com suas acepções possíveis de genitor ou de Deus – conecta duas leituras temáticas. Assim, quando lido segundo uma isotopia humana, o termo pai estabelece a leitura do filho que sai de casa e leva uma vida dissoluta; quando lido segundo uma isotopia divina, estabelece a leitura do homem que se afasta de Deus e cai em pecado.

O lexema dissoluto (gerador da forma adverbial dissolutamente), por sua vez, com suas acepções possíveis de dissolução, decomposição ou de depravação, devassidão abre, na leitura da isotopia humana, duas outras leituras: a da má administração da herança ou a da vida devassa.

Interpretando o termo pai como Deus, estabelece-se um plano de leitura religiosa. Dessa forma, terra longínqua figurativiza qualquer lugar distante da presença de Deus, no qual o homem – figurativizado em filho mais moço – prioriza os prazeres materiais (figurativizados em herança, vida dissoluta, meretrizes etc), caindo, assim, em pecado; em contrapartida, casa paterna figurativiza a casa de Deus, a comunhão espiritual com o Pai. Os porcos são animais considerados impuros pelos judeus. Apascentá-los e desejar comer o que eles comem figurativiza o estado deplorável a que o homem chega por distanciar-se de Deus; o bezerro cevado, por sua vez, figurativiza aquilo que é nutrido e guardado para uma ocasião muito especial (na parábola em questão, esse momento é o arrependimento do pecador). Somente os cativos andavam descalços. O filho descalço figurativiza, então, o homem escravo do pecado. Colocar as sandálias, portanto, figurativiza a libertação da vida pecaminosa. O anel figurativiza a aliança de Deus com o homem. A lamentação figurativiza a tristeza que há na vida do pecador; a música, ao contrário, a alegria de Deus por receber um pecador convertido. Ninguém lhe dava nada mostra a falta de compaixão e de misericórdia dos moradores da Terra em oposição ao Pai que tudo dá a quem está em comunhão com Ele. O filho mais velho figurativiza o homem que, julgando nunca ter saído dos caminhos do Pai, inconforma-se com a misericórdia de Deus com os ímpios.

Entendendo, porém, o termo pai como genitor, estabelecem-se outros dois planos de leitura inter-relacionados: um de caráter socioeconômico; outro, psicológico.

A leitura socioeconômica manifesta-se ao figurativizar um filho ambicioso e perdulário como filho mais moço. O lugar em que o filho vai morar sozinho é figurativizado como terra longínqua. A irresponsabilidade administrativo-financeira é figurativizada em desperdiçou a sua fazenda, vivendo dissolutamente; o estado de mendicância a que chega o perdulário após gastar tudo é figurativizado em desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, ninguém lhe dava nada, estava morto, tinha-se perdido etc.

A leitura psicológica, por sua vez, é revelada ao figurativizar um adolescente como filho mais moço, que, estando independente do pai (uma terra longínqua), inicia a vida sexual, chegando à devassidão (desperdiçando a fazenda com as meretrizes).

Nas três leituras, porém, o pai – seja Deus, seja o genitor – está pronto para receber o filho de volta.

Esses conectores isotópicos podem ser representados por meio do seguinte esquema:

PAI 42

leitura religiosa leitura profana

viver pecaminosamente viver DISSOLUTAMENTE 43

dissolver a herança levar uma vida libertina

(leitura socioeconômica) (leitura psicológica)

No documento Parábolas e paixões (páginas 80-84)