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Delegação de voz discursiva nas parábolas

No documento Parábolas e paixões (páginas 41-46)

Bem observam Calloud et alii (1978: 226) que

Enquanto a narrativa principal camufla seu narrador, a parábola é uma narrativa contada, produzida por um ator particular, Jesus, e dirigida a outros atores que são encontrados dentro do texto. Assim, ela é uma narrativa dentro de uma narrativa (tradução nossa)17.

Dessa forma, as parábolas são narrativas secundárias e fictícias ligadas ao resto das narrativas evangélicas, que são principais e históricas.

17

Whereas the primary narrative conceals its narrator, the parable is stated as a told narrative produced by a particular actor, Jesus, and intended for other actors all of whom are found within the text. Thus, it is a narrative within a narrative.

[...] as parábolas parecem ser narrativas fictícias, enquanto o resto das narrativas evangélicas, incluindo as histórias de milagre, parece ser narrativa histórica (CALLOUD et alii, 1978: 226, tradução nossa)18.

Deve-se aqui entender o termo histórico não necessariamente como uma realidade dos fatos, mas como efeito de sentido de realidade produzido por uma ancoragem actancial, espacial e temporal, ou seja, ata-se o discurso a pessoas, a espaços e a datas que o receptor reconhece como “reais” ou “existentes”; assim, por meio de uma concretização semântica, os atores, os espaços e o tempo das narrativas evangélicas são preenchidos com traços sensoriais que os iconizam19, fazendo-os “cópias da realidade”.

Lucas, por exemplo, coloca-se como destinador-manipulador, procurando levar o narratário a crer que sua narrativa é real, e não fictícia. Assume, para isso, no prefácio de seu evangelho, uma posição de historiador.

Visto que muitos houve que empreenderam uma narração

coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos

transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por

escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que

tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído (Lucas 1: 1-4, grifo nosso).

O evangelista fundamenta a fidedignidade de sua narração em três pontos: 1) informações colhidas de testemunhas oculares (“...conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares...”); 2) pesquisa meticulosa (“... depois de acurada investigação...”); 3) cronologia20 (“...exposição em ordem...”).

18

[...] the parables appear to be fictive narratives, whereas the rest of the Gospel narratives, including the miracles stories, appear to be historical narratives (CALLOUD et alii, 1978: 226).

19

Iconização é o investimento figurativo exaustivo da última fase do procedimento de figurativização, com o objetivo de produzir ilusão referencial ou de realidade (BARROS, 2002: 87).

20 Entende-se cronologia aqui como o registro dos fatos na ordem em que aconteceram no mundo

real. Essa preocupação cronológica manifestada pelo autor aproxima a narrativa evangélica da História, causando efeito de sentido de realidade.

Assim, Lucas temporaliza, actorializa e espacializa seu discurso, incluindo nele pessoas e acontecimentos seculares com o objetivo de sublinhar a importância da história de Jesus no mundo todo21. Observe-se o seguinte exemplo:

No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes, tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe, tetrarca da região da Ituréia e de Traconites, e Lisânias, tetrarca de Abilene, sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto (Lucas 3. 1-2).

Os elementos décimo quinto ano do reinado de Tibério César, Pôncio Pilatos, Judéia, Herodes etc ancoram o texto na História e criam a ilusão de referente e, a partir daí, de fato verídico.

A delegação interna de voz é outro recurso discursivo utilizado pelo narrador do evangelho para criar efeito de realidade, pois parece que a própria personagem é quem toma a palavra e, assim, o que se ouve causa a ilusão de ser exatamente o que ela disse. Tome-se o seguinte exemplo:

Estando Jesus a observar, viu os ricos lançarem suas ofertas no gazofilácio. Viu também uma viúva pobre lançar ali duas pequenas moedas, e disse:

Verdadeiramente vos digo que esta viúva pobre deu mais do que todos. Porque todos estes deram como oferta daquilo que lhes sobrava; esta, porém, da sua pobreza deu tudo o que possuía, todo o seu sustento (Lucas 21. 1-4).

Produz-se, assim, a ilusão de Jesus ter dito exatamente isso, nessa ordem, com esses termos e nesse contexto.

Semioticamente, pode-se dizer que, quando se produz um enunciado, estabelece-se um “acordo fiduciário” entre enunciador e enunciatário, o qual determina o estatuto veridictório do texto. Segundo Barros (2001: 77), além de efeitos de realidade,

[...] pode-se pretender obter efeitos de mentira ou de falsidade, de irrealidade ou de ficção, de distanciamento da enunciação. Os exemplos são muitos: as histórias contadas com a indicação de “histórias de pescador”, as fábulas que se dizem sempre fábulas, as

21

Esse assunto será retomado no quarto capítulo, quando se examinar o éthos de Lucas (cf. p.109- 110).

histórias infantis que começam com “Era uma vez...”. Todas elas produzem efeitos de mentira, de irrealidade ou de ficção.

Nas parábolas complexas, por exemplo, Jesus emprega três estratégias discursivas básicas que produzem efeito de sentido de ficção:

a) a introdução da narrativa com o pronome indefinido certo. Ex.: “Um certo homem tinha dois filhos...” (A parábola do filho pródigo); “Havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo...” (A parábola do rico e Lázaro); “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores...” (A parábola do bom samaritano); “Havia em uma cidade um certo juiz que não temia a Deus, nem respeitava homem algum.” (A parábola do juiz iníquo);

b) a instalação de atores anônimos22 – identificados apenas por seu papel temático (fariseu, publicano, samaritano, sacerdote, filho mais velho, filho mais novo, viúva etc) – e o emprego de tempo e de lugar indefinidos;

c) o encerramento da narrativa com uma sentença doutrinal. Ex.: “... haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (A parábola da ovelha perdida); “... há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (A parábola da dracma perdida); “Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus” (A parábola do rico insensato); “...qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado” (A parábola do fariseu e o publicano).

Além disso, na maioria das vezes, o narrador – antes de desembrear o discurso ao interlocutor Jesus – indica ao narratário que será contada uma parábola. Observem-se os seguintes exemplos:

22

De todas as parábolas de Jesus, a do rico e Lázaro é a única em que um ator é identificado por um nome próprio.

a) “Afluindo uma grande multidão e vindo ter com ele gente de todas as cidades, disse Jesus por parábola:” (A parábola do semeador – Lucas 8. 4);

b) “Então, lhes propôs Jesus esta parábola:” (A parábola da ovelha perdida – Lucas 15. 1);

c) “E lhes proferiu ainda uma parábola dizendo:” (A parábola do rico insensato – Lucas 12. 16);

d) “Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar sempre e nunca esmorecer:” (A parábola do juiz iníquo – Lucas 18. 1);

e) “Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros:” (A parábola do fariseu e o publicano – Lucas 18. 9);

f) “Ouvindo eles estas coisas, Jesus propôs uma parábola, visto estar perto de Jerusalém e lhes parecer que o reino de Deus havia de manifestar-se imediatamente” (A parábola das dez minas – Lucas 19. 11);

g) “A seguir, passou Jesus a proferir ao povo esta parábola:” (A parábola dos maus viticultores – Lucas 20. 9);

h) “Ainda lhes propôs uma parábola, dizendo:” (A parábola da figueira – Lucas 21. 29).

Dessa forma, a verdade geral que Jesus quer passar em suas parábolas – que independe do tempo e da época – está ligada ao efeito de ficção, de exemplaridade.

Estabelece-se, assim, dentro do contexto dos evangelhos, a oposição “realidade versus ficção”, que pode ser representada pelo seguinte quadrado semiótico:

realidade ficção

evangelho parábola

não-ficção não-realidade

No documento Parábolas e paixões (páginas 41-46)