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O “éthos” da proteção social: elementos para pensar o novo emergente da pesquisa

5 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS COLOCADOS EM AÇÃO: ALGUMAS

7.4 CONSTRUÇÃO DE UM DIAGNÓSTIVO CRÍTICO ACERCA DAS TENDÊNCIAS DA

7.4.1 O “éthos” da proteção social: elementos para pensar o novo emergente da pesquisa

Fica evidente, a esta altura da pesquisa, que, quando referenciamos a constatação analítica de éthos da proteção social, a consideramos como uma das nuances do relativismo incorporado à proteção social e o reconhecemos como uma forma de precarização desta proteção. O Estado contemporâneo tem governado por meio de níveis diferenciais de precariedade, e o entendimento de que a proteção social vem tornando-se não somente um aparato político de Estado, mas um modo de vida se revela, nesta pesquisa, como uma forma de precarização. A tônica encontrada na literatura acadêmica atinente à insegurança social é a maior evidência desta constatação. Portanto, não estamos aqui referenciando o éthos no sentido acrítico. Ao contrário, buscamos argumentar que o nível de desproteção social chegou a um limite tênue em que se proteger se tornou uma constante na vida das pessoas. Consideramos, para estas argumentações, quase um terço de século em que a racionalidade neoliberal rege as políticas públicas, comanda as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade e, consequentemente, a vida.

O novo emergente desta pesquisa, como sugere a última etapa da Análise Textual Discursiva, nos permite realizar uma conceitualização sobre a noção de éthos. Este exercício perpassa pela diferenciação entre éthos e êthos, dois termos de origem grega, tendo o êthos uma conotação abstrata, vinculada a costumes, e o éthos, designando fundamentalmente o sentido do que é habitual, usual (SPINELLI, 2009). Estudos foucaultianos indicam que é preciso conceber a Modernidade como uma atitude, como um éthos, este entendido como uma espécie de atmosfera coletiva que remete a uma determinada forma de pensamento de uma época. Já o termo êthos refere-se a um modo particular de conduzir-se, de portar-se, que indica para um caráter mais pessoal (LOCKMANN, 2016, p. 34).

Tal distinção se faz importante uma vez que, vinculada à proteção social, pode ser entendida tanto como um éthos de proteção social, ou seja, uma forma de vida coletiva que

assume a perpétua necessidade de gestão dos riscos, quanto um êthos de proteção social, onde cada sujeito toma para si a necessidade de proteger-se individualmente e constantemente. Esses elementos nos permitem seguir enfatizando, sobretudo, a perspectiva de éthos da proteção social dando sentido ao habitual, ao usual, que ganha forma de um modo de vida que, ganhando proporção, se torna coletivo. Importante salientar que a proteção social não tem, no neoliberalismo, o objetivo de garantir o bem-estar da população, mas de garantir uma situação econômica mínima para que cada sujeito possa, nesse espaço econômico, garantir e gerenciar os seus próprios riscos. Essa é a individualização dos riscos ou da política social individual (DARDOT; LAVAL, 2017).

Porquanto, o entendimento de éthos da proteção social como um modo de vida possui, subjacentemente, a compreensão acentuada das inseguranças sociais, da instabilidade constante, da desproteção. Neste ínterim, queremos argumentar acerca do sentido de precarização atrelada a estes entendimentos. O que queremos dizer quando reportamos para a “precarização da proteção social”?

La precarización significa más que puestos de trabajo inseguros, más que una cobertura social insuficiente dependiente del trabajo asalariado. En tanto que incertidumbre y exposición al peligro, abarca la totalidad de la existencia, los cuerpos, los modos de subjetivación. Es amenaza y constricción, al mismo tiempo que abre nuevas posibilidades de vida y trabajo. La precarización significa vivir con lo imprevisible, con la contingencia (LOREY, 2016, p. 17).

A precarização, portanto, abarca a totalidade da existência, os modos de subjetivação. Significa viver com o imprevisível, com a contingência. Esta forma de operar do Estado neoliberal indica que os governos já não se legitimam porque prometem proteção e seguridade. A forma de operar neoliberal procede mediante a inseguridade social, a regulação do mínimo de proteção social que corresponde a uma incerteza crescente. “En el curso de la demolición y reorganización del Estado del bienestar, así como de los derechos asociados al mismo, se ha conseguido establecer, gracias también a la proclamación de una supuesta ausencia de alternativas, una forma de gobierno basada en un máximo de inseguridad” (LOREY, 2016, p.18).

Como um instrumento de governo, a precarização também não pode ultrapassar determinado nível, de modo a colocar em perigo a ordem vigente. Neste caso, “a arte de governar hoje consiste em equilibrar este nível” (LOREY, 2016, p.18). Outro aspecto interessante é de que “os precários” tendencialmente estão “ilhados e individualizados”.

Andam, saltam em diferentes buscas e, portanto, abandonam as formas coletivas de proteção social (LOREY, 2016, p. 24). Estes argumentos ganham complementaridade quando articulados ao fato de que se proteger se tornou uma constante, ou melhor, prover a própria proteção se tornou uma constante na vida cotidiana.

Na obra que vem sendo referenciada, Estado de Inseguridade: Governo da precariedade, a autora referencia três dimensões do precário. Ele se compõe de inseguridade e vulnerabilidade, de incerteza e de ameaça (LOREY, 2016, p. 25), no sentido de que a condição precária não se mostra como meramente individual, pelo contrário, se mostra em todo momento como relacional e compartilhada com outras vidas precárias que designam a condição de vulnerabilidade, incertezas e ameaças.

No neoliberalismo, então, a função da precarização se desloca para o centro da sociedade e é normalizada. É um instrumento político e econômico normalizado (LOREY, 2016, p. 51, tradução nossa). Vejamos que a nova fase do capitalismo global, depois de três décadas de desenvolvimento, se depara com economias em contração em todo o mundo, favorecendo a lógica de expulsão (SILVA, 2019, p. 6). Importante considerar os debates em torno das relações no mundo do trabalho que se alteraram drasticamente, adensando a lógica da normalização da precarização.

Estas sinalizações apontam, desde outra perspectiva teórica, para “novas lógicas de expulsão” (SASSEN, 2016, p. 9). Em entrevista concedida em 2015 no Brasil27, a socióloga

Saskia Sassen considerou que “o momento da expulsão é o momento de uma condição familiar que se torna extrema. Você não é simplesmente pobre, você está com fome, perdeu sua casa, vive em barraco. Nós tendemos a parar no extremo. Não entrar nele. O extremo é muito, muito feio e não temos conceitos para capturá-lo [...] por isso, torna-se facilmente monstruoso”. Assim, desmembrar o social em contexto de desigualdade extrema é uma forma de expulsão, onde o extremo se torna invisível para nossas categorias de análise e remonta à brutalidade e complexidade de uma economia global. Expulsão carrega o sentido de “não fazer parte; ser mandado embora; não existir; expulsões de projetos de vida e de meios de sobrevivência; de pertencimento à sociedade28”. Isso significa mais do que simplesmente mais desigualdade e

pobreza. Significa sobreviver.

27 Entrevista concedida ao professor Jorge Felix. Ponto e vírgula, PUCSP, n. 18, 2015. Disponível em:

http://saskiasassen.com/PDFs/interviews/SS%20Nao%20e%20imigracao.pdf. Acesso em: 02 julho 2019.

28 Disponível em: http://www.blogdaeditorarecord.com.br/2016/12/06/expulsoes-de-saskia-sassen-por-debora-

O desmembrar do social como forma de expulsão se articula com “a expansão da racionalidade do mercado a toda existência” e da “racionalização da existência” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 27), onde a lógica de mercado se torna generalizada “desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 34). Interessante notar os modos de constituição do Estado frente a este cenário, agindo sempre de forma plural. Já mencionamos, neste estudo, o Estado se organizando na forma de redes políticas. Exemplificando: por via da filantropia, das empresas, grupos de consultoria, organizações internacionais, indivíduos criando redes de ação (BALL, 2014). No caso da Educação Escolarizada, o Estado estabelece relações com o setor privado, organizações da sociedade civil, políticos, entre outros, e assume, portanto, um papel mais amplo e flexível.

Sublinhamos que a precarização, como instrumento de governo, alcançou não somente a população em condições de pobreza, mas também a chamada classe média da sociedade. Esta ampliação sugere que “as condições de vida e de trabalho precárias estão normalizando-se em um plano estrutural e se convertendo em um instrumento fundamental de governo” (LOREY, 2016, p. 73, tradução nossa). O Estado, como estamos evidenciando, não se retira das antigas instituições fundamentais de seguridade, todavia tem se limitado cada vez mais a discursos e práticas de segurança policial e militar. Este elemento também foi notado nas categorias de análise da literatura acadêmica.

Problematizando ainda mais o papel do Estado, ele se limita a conservar um equilíbrio: quanto mais se reduz a seguridade social, mais aumenta a precarização, mais aumenta a necessidade de demonstrar reiteradamente que merecem um mínimo de seguridade; do contrário podem ser declaradas um risco. “Resulta que todos os mecanismos de seguridade contra os riscos, todas as instituições sociopolíticas são, dentro da lógica neoliberal, dispositivos que devem funcionar no mínimo” (LOREY, 2016, p. 75, tradução nossa). Portanto, a arte de governar do Estado consiste em tender a um máximo de precarização correlativo a um mínimo de seguridade, de proteção.

Tecendo articulações com os elementos abordados na parte um desta pesquisa, quando referenciamos que “o mundo está se metamorfoseando” (BECK, 2018, p. 15), reiteramos que as sociedades enfrentam contemporaneamente a era “dos efeitos colaterais indesejáveis de sua própria dinâmica [...] não é a pobreza, mas a riqueza; não é a crise, mas o crescimento econômico associado ao recalque de efeitos colaterais que estão impelindo a metamorfose de efeitos colaterais da sociedade (BECK, 2018, p. 69). A fome, a pobreza, as desigualdades sociais movem o sofrimento das pessoas, que acabam recorrendo para medidas desesperadas. “A bússola do século XXI” considera a metamorfose não como uma revolução ou reforma,

como algo intencional. A metamorfose está “prosseguindo de maneira latente, por trás dos muros mentais de efeitos colaterais que estão sendo construídos como naturais” (BECK, 2018, p. 161).

“O mundo torna-se individualizado e fragmentado. O indivíduo - o indivisível - torna- se o ponto de referência”. Neste sentido, a intervenção social não mais agrega o coletivo, pelo contrário, fica restrita a indivíduos. “O paradigma se desloca do nós para o eu” (BECK, 2018, p. 180). Vejamos que o neoliberalismo age na perspectiva de precarização das relações sociais, da intensificação da competitividade, limitando, portanto, a capacidade de resistência. O que mobiliza, então, são as alavancas da concorrência, da individualidade.

A seguir, em sintonia com os argumentos que estamos apresentando neste diagnóstico, conduziremos nossas argumentações no sentido de encontrar possibilidades de resistência à lógica neoliberal individualizante e precarizante.