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4 CONTRADIÇÕES DA CIDADANIA

7.3 Ética, cidadania e informação

Discutir a ética necessária à propagação da informação, relacionando-a à influência do poder hegemônico, político e comercial envolvidos direta ou indiretamente na produção da informação, torna-se uma questão importante para a C.I. Pensar na informação como parte importante da construção e conscientização da cidadania e do que é realmente ser cidadão é necessário ao cidadão e ao acadêmico, ainda mais quando a questão é a cidadania ampliada, ou seja, aquela que extrapola as questões jurídicas e alcança as questões sociais.

[...] a Ética trata/estuda o que é bom para o indivíduo e para a sociedade, tendo em vista qual a natureza dos deveres na interação pessoa e sociedade; a Moral é o conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes e valores que guiam a conduta do indivíduo dentro do seu grupo social. A Moral é normativa, enquanto a Ética é teórica, procurando explicar e justificar os costumes de uma sociedade, bem como ajudar na resolução dos seus dilemas mais comuns. E, se é possível distinguir Ética de Moral, mais fácil e necessário se torna distingui-la da lei, embora esta tenha por base, natural e frequentemente, princípios éticos. Decorre, desta distinção, outra, que é subsequente: Ética não é deontologia e muito menos código deontológico, mas este será tanto melhor e oportuno, quanto mais e fundas raízes tiver na Ética. (SILVA, 2010, p. 108)

Gustavo Freire afirma que vivemos em uma época que exige uma plasticidade interativa da racionalidade, necessária para que enfrentemos “o universo das novas questões éticas, políticas e legais que se acumulam diariamente nas práticas científicas, empresariais, sociais e governamentais, na vida pública e na vida privada” (FREIRE, 2010, p.6). No âmbito da ética informacional, mais especificamente no que tange à gestão e transferência de inovação, o autor destaca ainda que se trata de processos conduzidos por agentes provenientes de culturas discursivas distintas. Por essa razão, “não haveria, em uma cultura progressivamente digital, um conceito eficaz de gestão da inovação – ou de gestão tout court – sem uma ética que Rafael Capurro chama ética intercultural da

informação” (FREIRE, 2010, p.6).19

Desta feita, discutir a ética da informação torna-se algo importante e inerente às questões de construção, trânsito, transferência e difusão da informação. Diante de novos sistemas e tecnologias de informação, novas questões morais se apresentam e faz-se necessário ser sensível nesta discussão às questões culturais envolvidas, sem atropelá-las, mas levando-as em consideração nesta construção.

Uma ética da informação diz respeito aos dilemas deônticos ou conflitos morais que surgem na interação entre os seres humanos e as tecnologias e sistemas de comunicação e de informação a fim de refletir e, sobretudo, disciplinar a criação, a organização e o uso das informações (FREIRE, 2010, p.7).

Sendo assim, a informação está impreterivelmente sujeita a algum tipo de poder e também às tecnologias e sistemas de comunicação, seguindo uma tendência hegemônica. Não é possível dissociar poder e informação, por isso a importância da ética na articulação da informação. Contudo, há que se buscar caminhos que propiciem e divulguem a importância da ética.

Pensando a noção de poder como Renato Janine Ribeiro (RIBEIRO, 2004 apud PINHEIRO, 2010), ele pode ser visto gramaticalmente como substantivo: “'coisa' ou dado apreendido pelos sentidos, parado e tangível”, ou verbo: “uma possibilidade, voltada para o futuro, de ir-se além do que se é ou se está...”, no sentido de criação.” Assim, Pinheiro (2004, p. 58) ressalta que “as ações de informação, mais do que a informação por si só, estão impregnadas, ao mesmo tempo, de poder e dessa possibilidade, desse futuro, portanto, são ações políticas e a ética da política é a da responsabilidade, como pensa Ribeiro”.

Pinheiro (2010, p. 61), citando Gilberto Dupas (2001), afirma que o autor “escreve sobre ética e poder na sociedade da informação, com o objetivo de buscar 'uma ética para os novos tempos, necessária e possível, que possa introduzir o dever onde tudo é poder'”.

Podemos aqui traçar um paralelo entre o que diz Pinheiro (2010), Ribeiro (2004) e Dupas (2001 apud PINHEIRO, 2010). O poder, a informação e a ética estão impreterivelmente ligados. E nesta ligação a ética é a argamassa que cerceia o abuso de poder. Quando há um “vínculo indissolúvel entre ciência e poder”, como afirma Japiassu (1977 apud PINHEIRO, 2010), o poder se relaciona à informação e a presença da ética torna-se ainda mais importante. Ainda quando este poder não é claramente político, e mesmo quando a ciência não está diretamente envolvida, existe

19 Acrescentamos que para Capurro (2010) afirma que a transformação das sociedades industriais dos séculos XIX e XX em sociedades informatizadas não ocorre da mesma forma em todos os lugares, fazendo surgir a “ética intercultural da informação”, referindo-se à relação entre normas morais e universais tal qual a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Para Capurro (2010), o objetivo de uma ética global da informação consiste na implantação e consolidação de uma série de instituições destinadas a promover a investigação e ação no campo da ética da informação a nível global. Para exemplificar, cita o caso da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Afirma que uma declaração universal de ética para a sociedade da informação necessita deforma imprescindível de uma análise intercultural ético-informacional crítica.

na informação um poder latente, que pode ser transformador, agregador, desagregador ou influenciador. Se pensarmos que ainda podem estar ligados à informação um poder efetivamente político e econômico, a responsabilidade ética se torna mais indispensável ainda, como ressalta Pinheiro:

Ao refletir sobre o conceito de responsabilidade podemos constatar que sua elaboração se dá no campo da ética e está fortemente vinculada à liberdade. Este elo significa que o estudo da responsabilidade implica necessariamente falar de ética, e como nesta comunicação ciência e tecnologia são o contexto do debate, por sua vez associadas ao poder, a ética da responsabilidade não pode ficar à parte num questionamento desta natureza. (PINHEIRO, 2010, p.58)

“A ciberética é uma teoria ética de regras e valores da comunicação via Internet e da sua governança” (CAPURRO, 2015, p. 323).20 Capurro destaca que com a possibilidade da utilização da internet como um meio de interferência nos processos informacionais do mundo físico, sua problematização se estende para além das questões do ciberespaço. Capurro destaca como um campo especial da ciberética a ética dos meios sociais, das ciberredes sociais. “A ciberética, em um sentido restrito, analisa as formas com as quais a internet condiciona a comunicação entre indivíduos, grupos, sociedades, empresas etc.” (CAPURRO, 2015, p. 323). Esse condicionamento pode ter efeito positivo, como no caso da liberdade de expressão e interação, ou ainda, no desenvolvimento de processos democráticos e participativos. Ou efeitos negativos. como nos casos de vigilância, controle, exclusão ou censura. “A ciberética pode conceber-se como uma teoria sobre a liberdade no meio digital” (CAPURRO, 2015, p. 323).

Capurro distingue a ciberética da ética da computação por ter como objeto as oportunidades que surgem do desenvolvimento e uso dos computadores em todas as áreas da sociedade. Seja a bioética, ao analisar as formas de aplicação de técnicas digitais nos processos de prevenção e melhoria da saúde individual e social; seja a ética da comunicação, ao analisar novos meios de comunicação baseados na internet; seja a ética da biblioteconomia e ciência da informação, relacionadas aos centros para a organização de documentos impressos e digitais, e seu acesso ao público; seja a roboética, que analisa a interação entre humanos e máquinas, também relacionada com a ética do big data, usuários, privacidade, brecha digital etc.; ou, ainda, seja a ética das ciberguerras: todos estes campos perpassam questões particulares em diferentes culturas, “assunto de que trata a ética intercultural da informação” (CAPURRO, 2015, p. 323).

Para Capurro, temos que considerar o mundo globalizado epistemologicamente, com seus centros de poder epistêmico-técnicos-digitais hegemônicos (Google, Facebook, Twitter, Apple etc.), que travam lutas entre diversos tipos de universalismos, como eram travadas as lutas de classe

baseadas na posse da terra e dos meios de produção. Há um embate de interesses acontecendo entre os membros do mercado digital hegemônico e os estados nação, que perpassam as tentativas de leis internacionais regulamentadoras e formas flexíveis de governança. De qualquer forma, as autoridades epistêmicas são inseparáveis da luta pelo poder.

As formas de legitimação e os objetivos são antagônicos e sujeitos a mudanças de época, assim como as mudanças de paradigmas no caso da ciência e as revoluções de regimes, pacíficas ou violentas, nos sistemas políticos. Mas também podem ocorrer mudanças graduais nas sociedades democráticas legitimadas por debates parlamentares, eleições livres, liberdade de imprensa e processos interativos informação e comunicação digital. (CAPURRO, 2015, p. 326).

As possibilidades são muitas e abertas. Contudo, há uma necessidade de, pelo menos, pensar a ética diante destes novos modelos, tecnologias e paradigmas. Para Capurro, em entrevista concedida a Schneider e Saldanha (2015), um dos principais dilemas ético-epistemológico da era da informação é a relação entre liberdade e segurança, que coloca em cheque os limites da vigilância e da censura exercidos pelo Estado, em conflito com seu objetivo de facilitar o exercício da liberdade cidadã dentro das leis. Outro problema levantado por ele é a vigilância massiva em conflito com o direito de privacidade individual ou coletiva. “A coleta dos dados pessoais ou personalizáveis, isto é, identificáveis como pertencendo a uma ou mais pessoas, de forma massiva (big data), não só por agentes do Estado, mas também por agentes privados, conduz a sérios conflitos com o direito à privacidade” (CAPURRO, 2015, p. 326).

Há um jogo entre o que precisa ou deve ser ocultado e o que precisa ou deve ser transparente. A a chave está justamente no equilíbrio destas forças e a ética deve guiar as ações de vigilância e transparência, liberdade e cerceamento pelo bem comum de fato, e não de interesses privados ou particulares.

Capurro vai além de Castells ao colocar a urgência em tratar destes assuntos principalmente diante da vigilância não somente advinda dos agentes políticos, como também de monopólios privados como Google, Microsoft ou Facebook, que cooperam aberta ou secretamente com serviços secretos estatais, como no caso da NSA (National Security Agency) dos EUA.

Se faz necessário, segundo Capurro (e concordamos com ele), repensar o conceito de brecha digital, normalmente mais voltado ao problema dos que tem ou não acesso à internet, em um contexto crítico da economia política digital e global. Hoje, com a popularização das tecnologias, especialmente dos celulares, este é o menor dos problemas, mesmo que ainda não liquidado. A questão preocupante passa muito mais neste momento por como a internet está sendo utilizada, não somente pelos usuários, mas também pelo estado e pelas corporações.

abertas e ocultas de injustiça, opressão social, vigilância, controle e homogeneização cultural com base em normas ditadas pelos agentes de monopólio público ou privado” (CAPURRO, 2015, p. 327). As lutas epistêmicas do séc. XXI são muitas e envolvem diversos tipos de agentes públicos e privados, e precisam ser levadas em consideração quando tratamos de informação.