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4 CONTRADIÇÕES DA CIDADANIA

4.3 Mobilização, automobilização e apropriação da cidadania

Há uma correlação entre automobilização e mobilização. Uma certa sequência de movimentos primeiramente internos ao indivíduo, que depois se manifestam externamente. É claro que em momentos de comoção a mobilização pode ser deflagrada de fora para dentro, contudo é preciso haver um movimento de dentro para fora para que a apropriação da cidadania efetivamente se dê.

No que se refere ao conceito de mobilização, Toro (1996, p.5) explica que “mobilizar é convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados”. A mobilização vai além da aglomeração e está diretamente ligada à escolha e à afinidade de ideais e motivações.

Pensando essa questão da aglomeração, Tarde nos traz uma diferenciação entre público e multidão que parece explicar a questão das mobilizações, no que concerne às afinidades de ideias e motivações. O autor (TARDE, 2005, p.5) distingue o público pela conformidade de ideias, costumes e motivações – não que estas características não sejam encontradas nas multidões, mas nesta segunda são mais dispersas, menos consistentes.

Até certo ponto, um público confunde-se com o que chamamos um mundo, “o mundo literário”, o “mundo político” etc., com a diferença de que esta última ideia implica entre as pessoas que fazem parte do mesmo mundo, um contato pessoal, trocas de visitas, recepções, o que pode não existir entre os membros de um mesmo público. Mas da multidão ao público a distância é imensa, como já se percebe, embora o público proceda em parte de uma espécie de multidão, da audiência dos oradores.

Entre os dois, há muitas outras diferenças instrutivas que ainda não indiquei. Pode-se pertencer ao mesmo tempo, e de fato sempre se pertence simultaneamente, a vários públicos como várias corporações ou seitas; mas só se pode pertencer a uma única multidão de cada vez. Daí a intolerância bem maior para com as multidões e, por conseguinte, para com as nações onde domina o espírito das multidões, porque nelas o indivíduo é tomado por inteiro, irresistivelmente arrastado por uma força sem contrapeso (…) é verdade que de um público superexcitado, como acontece com frequência, irrompem às vezes multidões fanáticas que percorrem as ruas gritando viva ou morte a qualquer coisa. Nesse sentido o público poderia ser definido como uma multidão. Mas essa recaída do público na multidão, embora perigosa ao mais alto grau, é afinal bastante rara (TARDE, 2005, p.14 – 15) Pode-se concluir que interesse comum é imprescindível para qualquer mobilização, seja ela formada por um público ou por uma multidão, é a conformidade de ideias e/ou a confluência de motivação que as movem. O público possui mais afinidades e ideias afins, é mais suscetível às mídias que compartilham de maneira mais homogênea os ideais, pleitos e ideias. A multidão, embora impelida por uma mesma motivação ou ideia, normalmente específica, é mais heterogênea, instável, possui agregados momentâneos e possivelmente com menos envolvimento. As multidões sempre podem ser engrossadas por curiosos, semi-adeptos, convencidos momentaneamente ou empurrados pela emoção. Baseando-se nesta teoria de Tarde, talvez as mobilizações advindas de um público seriam provavelmente mais estruturada e contidas, porém as mais volumosas e explosivas seriam as manifestações de multidões?

Para Cabral, a mobilização cognitiva, que busca a cidadania e a participação social, não acontece sem a automobilização, que ele define como a capacidade de promover em si mesmo a mobilização. O autor defende que esta capacidade e consciência que impulsionam a participação social e o exercício da cidadania, estão atreladas ao valor que o indivíduo atribui a sua própria opinião, à maneira de absorver a informação, ao acesso à mídia informativa e ao capital escolar12, estes dois últimos, na opinião do autor, mais influentes que o capital econômico. Sendo assim para ele, a motivação para se automobilizar depende muito mais de questões educacionais do que do poder aquisitivo do indivíduo. Cabe ressaltar que a educação, neste caso, está sujeita à exposição do individuo às mídias e aos contextos que lhe forneçam o devido conhecimento que lhe sirva de ponte para sua participação na cidadania.

Essa capacidade e consciência impulsionam a participação social e o exercício da cidadania: A automobilização está também correlacionada, embora mais mitigadamente, com a mobilização cognitiva e a exposição à mídia informativa, que assim continuam a andar a par. Em contrapartida, a classe social e o rendimento possuem fracas correlações, mostrando a mobilização depender mais diretamente do “capital escolar” do que do “capital econômico” ou do chamado habitus de classe (CABRAL, 2003, p.36).

Segundo Cabral, a vontade de automobilizar depende muito mais de questões educacionais

12 O conceito de capital escolar, segundo Valle (2008, p. 104-105), exemplo da distribuição diferenciada dos diversos capitais, contribui com a legitimação e reprodução da posição no espaço social.

do que da classe a que pertence o indivíduo. A educação, neste caso, está sujeita à exposição do indivíduo às mídias e aos contextos que lhe forneçam o devido conhecimento que lhe sirva de ponte para sua participação na cidadania.

Cabe aqui a observação de que o capital escolar e econômico, que juntos compõe o habitus de classe, não podem ser tão facilmente separados, sobretudo nos países em que a aquisição de capital escolar é tão comumente determinado pelo capital econômico.

Barbalet reconhece que a luta gerada em torno dos direitos da cidadania pode ser um importante elemento de mobilização, pois “tentativas de grupos socialmente subordinados para vencerem as suas desvantagens e reivindicarem aqueles direitos que não podem ser concretizados numa sociedade desigual” (BARBALET apud MORETZSOHN, 2011, p.146) estimulam a mobilização e a automobilização.

Para Moretzsohn, a fim de que os indivíduos usufruam do conhecimento, tornando-se ativos politicamente e capazes de exercer plenamente sua cidadania, é preciso que estejam capacitados não só materialmente, mas também do ponto de vista moral e educacional. Para isso é imprescindível o acesso à informação e a educação.

É possível concluir, então, que a mobilização necessita de: convergência de motivação ou ideais, acesso e assimilação do conhecimento, automobilização, consciência da cidadania, informação; e que a natureza participativa da rede não basta para que de fato se configure a participação e a mobilização; além disso, a mobilização e a própria opinião estão sujeitas a influências socioeconômicas. Para que de fato a ágora midiática virtual se estabeleça como espaço de mobilização e cidadania é necessária a construção deste espaço e do conhecimento, além da união e o diálogo entre todas estas características.

Ou seja, o acesso à informação e à educação são fatores diferenciais para a iniciativa ou participação em processos de mobilização, e a condição social afeta diretamente tanto o acesso à internet quanto à educação. É possível concluir então que a natureza participativa da rede por si só

não basta para que de fato se configure a participação e a mobilização. É necessária a união e o diálogo entre todas estas características, para que de fato a ágora digital se estabeleça como espaço de mobilização e cidadania.

Já na antiguidade, com o crescimento do Império Romano, o cidadão passou a ser mais alguém protegido pela lei do que alguém que participa de sua elaboração, migrando para uma participação mais passiva da cidadania. A divisão social de classes, entre dominadores e dominados, livres ou subordinados, define as relações interclasses, condicionadas pela divisão de propriedade e pela posição que cada sujeito ocupa em meio às relações de produção.

político, deslocando-se para a esfera do consumo e contribuindo para a naturalização das políticas de exceção. Além disso, é setorizada pelas políticas de assistencialismo e voluntariado, deixando de lado “a perspectiva universalista garantidora de direitos” (MORETZSOHN, 2011, p. 1). O atual modelo, assim, abandona tanto a noção de cidadania criada e exercida na Grécia Antiga, onde o cidadão obedecia a leis de cuja elaboração participava (MORETZSOHN, 2011, p. 142), quanto a noção moderna, calcada na universalidade de certos direitos e deveres.

Contudo se faz necessária a competência crítica em informação para a cidadania, como veremos mais adiante, para que aconteça a automobilização e posteriormente a mobilização para efetivas mudanças e conquistas cidadãs.