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Problemas surgem não quanto mulheres brancas escolhem escrever sobre as experiências de pessoas não-brancas, mas quando esse material é apresentado como ‘autoritário’. (hooks, 2015, p. 48, grifo da autora).68

Ouvir e refletir. Ao longo da pesquisa, coloquei-me em posição de escuta atenta às manifestações e aos posicionamentos das mulheres negras. O estudo das narrativas autobiográficas e a leitura dos demais textos publicados no BN, bem como a participação em alguns eventos coordenados por mulheres negras, produziram em mim uma atenção constante para com a investigação em andamento. Muitas vezes questionei-me em que medida estaria autorizada a trabalhar com textos de uma comunidade virtual, produzidos e publicados por mulheres negras em que não poderia tornar-me integrante. Como autora branca que não participa deste espaço intersecional, será que teria os cuidados éticos suficientes para trabalhar com as histórias de vida destas mulheres negras? Não estaria de certo modo desafiando uma de suas bandeiras mais importantes de luta, que é a possibilidade de serem protagonistas da produção do conhecimento sobre si mesmas? Em função desta inquietação constante, fui atrás de subsídios teóricos para a continuidade da pesquisa e para a realização das análises, lendo com atenção os posicionamentos das próprias mulheres negras sobre o tema.

Neste processo, procurei conhecer as principais críticas das mulheres negras em relação a discussão sobre serem elas objeto/sujeito de pesquisa realizadas por pessoas brancas. A negligência a este tipo de produção cresce ao mesmo tempo em que intelectuais negras passam a desenvolver o pensamento feminista negro no Brasil. A oportunidade de produzir conhecimento sobre si e sobre o outro (branco) é paulatinamente conquistada com luta e resistência das mulheres negras, muitas delas a primeira geração a frequentar a universidade.

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Traduzido do original: “Problems arise not when White women choose to write about the experiences of non- white people, but when such material is presented as ‘authoritative’”.

Diante destas questões tão amplamente debatidas no BN, fui mantendo sempre a pergunta sobre as finalidades e os pressupostos éticos da minha pesquisa. Na medida em que decido trabalhar com as narrativas autobiográficas de mulheres negras, comprometo-me eticamente com estes sujeitos. Não cabe a mim deslegitimar suas demandas políticas, nem buscar pelas essencializações de suas narrativas, pelo contrário. Por não vivenciar os mesmos processos discriminatórios que as autoras, o mínimo que posso fazer é ler respeitosamente suas produções e posicionar-me politicamente com elas contra a permanência do racismo, questionando também os privilégios que posso vivenciar por ser uma mulher branca.

As primeiras pesquisas que olhavam para as experiências dos sujeitos subalternizados justificavam-se pelo interesse em “dar-lhes a voz”. Posteriormente, cientes de que como pesquisadores não damos a voz a ninguém, pois são os indivíduos que falam por si, procuramos “dar visibilidade” às histórias de vida e às experiências destes grupos que ainda sofrem processos intensos de exclusão. Trabalhar com as narrativas do BN implica em analisar as discursividades que circulam nestes textos sem este intuito, já que as mulheres negras têm conquistado a visibilidade por si mesmas. Diante das mudanças proporcionadas pelos sujeitos que se reconhecem como negros, nossa função como pesquisadores também vem se alterando, o que implica neste exercício constante de reflexão. Como sugere Cláudia Fonseca (2010a), talvez seja necessário que em nossas pesquisas desenvolvamos uma ética do desconforto. Segundo a antropóloga, “trata-se de uma inquietação ética que não se resolve com uma cartilha de regras nem se restringe a um só momento da pesquisa”. (FONSECA, 2010a, p. 62). Na medida em que repensava as questões de pesquisa e adentrava no material, foi ficando mais perceptível que minha tarefa era a de compreender o processo de subjetivação vivenciado pelas mulheres negras e seus efeitos para as relações raciais, para então problematizar a temática da ERER. Por mais que a compreensão envolva o olhar teórico e o posicionamento do(a) pesquisador(a), não me cabe julgar as experiências das autoras das narrativas ou mesmo sugerir outros caminhos para os processos subjetivos que elas vivenciam. De acordo com D. Jean Claudinin (2013, p. 199),

Nós temos, assim como negociamos o consentimento, que continuar pensando sobre nossas responsabilidades relacionadas aos participantes em nossas investigações. Assim como refletimos cuidadosamente sobre quem somos e quem nos tornamos, em nossas investigações narrativas refletimos cuidadosamente sobre quem nós somos em relação aos sujeitos na pesquisa.69

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Traduzido do original: “We have, as we negotiated informed consent, continue to think about our relational responsabilities to the participants in our inquiries. As we think carefully about who we are, and are becoming, in our narratives inquiries we think carefully about who we are in relation with those in the research”.

Os estudos desenvolvidos na UW-Madison contribuíram muito para o amadurecimento de algumas questões que envolvem a dimensão ética da pesquisa70. Intelectuais filiados ao campo da Teoria Racial Crítica (CRT) e outros estudiosos das relações raciais e da educação multicultural têm como pressuposto a reflexão sobre o próprio pertencimento étnico-racial. É quase consenso de que nossas posições de sujeito constituem nosso olhar como pesquisadores. De acordo com Roni Berger, “pesquisadores precisam se concentrar cada vez mais no autoconhecimento e sensibilidade; compreender melhor o papel de si na produção do conhecimento; monitorando-se cuidadosamente no impacto de seus preconceitos, crenças e experiências pessoais nas suas pesquisas”71. (2015, p. 220). Independente da posição que ocupamos em relação aos sujeitos com os quais pesquisamos, é necessário refletir sobre este posicionamento e suas implicações para os resultados da pesquisa. Metodologicamente, o(a) pesquisador(a) que não participa da comunidade pesquisada é considerado um outsider. Sem jamais vivenciar “na pele” o peso da discriminação racial, por exemplo, minhas análises devem ter a vigilância constante sobre como descrevo e interpreto as experiências dolorosas do racismo. Por outro lado, como mulher e pesquisadora engajada em muitas demandas da comunidade negra, minha posição de outsider também pode e deve ser problematizada em alguns momentos. Isso porque, segundo Berger, “um pesquisador não [tão] familiarizado com a experiência específica em estudo pode abordá-lo a partir de um ponto de vista novo e diferente, colocando novas questões que podem levar a direções inovadoras”.72 (BERGER, 2015, p. 227).

Em relação ao BN, é importante levar em consideração as potencialidades e limitações que o estudo têm a partir de minha relação com a comunidade virtual de mulheres negras. Como alguém que não está envolvido no processo de organização e publicação dos textos do blog, nem mesmo tem uma relação de participação que possibilitaria falar em nome de um coletivo, construo meu olhar desde uma posição que estaria mais próxima dos(as) leitores(as) do blog. Ao mesmo tempo, como pesquisadora, há um interesse muito maior em compreender as condições sobre o que é publicado e os efeitos do que é dito pelas mulheres. Como mulher negra, certamente minha participação na pesquisa seria distinta. Mesmo que fosse integrante

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Agradeço à professora Dra. Mary Louise Gomez, que tão gentilmente acolheu-me em suas aulas do seminário “Introduction to Narrative Inquiry”. As leituras e as discussões realizadas neste período foram de grande valia para minha formação como pesquisadora.

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Traduzido do original: “researchers need to increasingly focus on self-knowledge and sensitivity; better understand the role of the self in the creation of knowledge; carefully self monitor the impact of their biases, beliefs, and personal experiences on their research”.

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Traduzido do original: “a researcher unfamiliar with the specific experience under study may approach it from a fresh and different viewpoint posing new questions that may lead to innovative directions”.

do BN, no entanto, participar da comunidade como pesquisadora implicaria um posicionamento diferente das demais autoras. Deste modo, entendo que sempre há implicações do pesquisador em relação a comunidade pesquisada e elas devem ser levadas em consideração ao longo da pesquisa. Como mostra Fonseca (2010a, p. 63),

A dimensão ética manifesta-se de novo na formulação do problema, no recrutamento de aliados, na seleção e tratamento dos sujeitos pesquisados. A própria linguagem do texto final envolve considerações éticas, a depender de quem é eleito como plateia: ora a comunidade internacional de pesquisadores, planejadores e profissionais, ora donas de casa e leitores do diário local.

Assim como a maioria dos blogs, o BN caracteriza-se como um espaço público. Salvo o caso em que o(a) proprietário(a) do blog restringe o acesso de seu conteúdo a um grupo restrito, em que são necessários login e senha, todos os blogs disponíveis na internet estão acessíveis para todos lerem seu conteúdo. Gerenciado pelas coordenadoras do BN, este é um espaço de publicação de mulheres negras e geralmente direcionado a esse público. Embora nem todos possam publicar no blog ou participar do fórum de discussão, todos podem ter acesso às publicações. Atenta às normas do BN, enviei para as facilitadoras do blog um e-mail informando sobre a realização da pesquisa. Utilizei o mesmo e-mail que as autoras enviam textos para publicação. Vale ressaltar que nunca tive resposta deste contato. A mensagem enviada encontra-se no Apêndice A e contém em seu texto a proposta da realização de pesquisa também na comunidade negra de Vila Arlindo, modificada após a banca de qualificação. No entanto, mantive ao longo das publicações realizadas o cuidado em identificar as autoras pelo seu nome completo e sempre disponibilizar o link para o acesso do texto completo na nota de rodapé. Nesta Tese, informo também a data de publicação do texto e identifico os escritos do blog em itálico. Esta forma de apresentação dos excertos das narrativas vai ao encontro da política de organização do blog, que privilegia e valoriza a autoria e exige sua manutenção. Segundo o Blogueiras Negras:

Todo o site tem licenciamento Creative Commons Atribuição Uso Não Comercial Compartilhamento pela mesma licença 3.0 (by-nc-sa 3.0) e pode ser reproduzido apenas por veículos que não tenham fins lucrativos (caracterizados pela ausência de anúncios, não associação com a venda de conteúdo online ou impresso, ausência de patrocínio e apoios, etc) e que partilhem expressamente da mesma licença Creative Commons, além de observar as premissas abaixo:

· Para reproduzir nosso conteúdo, é preciso que seja respeitada a estrutura de nossos posts (nome da

autora, corpo do texto e links de rodapé).

· A republicação de nossos textos aconteça somente após um prazo de 24 horas da sua publicação

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“O pesquisador anda numa corda bamba, procurando garantir a riqueza de detalhes que mantém fidelidade ao texto etnográfico, ao mesmo tempo que exerce uma vigilância constante aos limites éticos de sua ousadia”. (FONSECA, 2010b, p. 213). Ampliando as palavras de Fonseca (2010) para além da etnografia, é preciso também ponderar que a autoria dos textos não garante a total proteção dos sujeitos, uma vez que muitas mulheres negras talvez não cogitassem a possibilidade de suas narrativas tornarem-se corpus empírico de qualquer investigação. Por outro lado, entendo que respeitei ao longo da pesquisa a política do blog e tenho de alguma forma contribuído para alavancar as discussões propostas pelas mulheres negras, que se reconhecem como “sujeitas de nossa própria história e de nossa própria escrita, ferramenta de luta e resistência. Viemos contar nossas histórias, exercício que nos é continuamente negado numa sociedade estruturalmente discriminatória e desigual”74 Vale considerar que após entrar em contato com o BN, o texto de apresentação da página foi modificado, mostrando que as coordenadoras estão cientes da amplitude do alcance do blog: “Somos um veículo de comunicação produzindo um conjunto de informações atualizadas 5 vezes por semana, com textos originais, atingindo não só mulheres negras e afrodescendentes, mas também todos aqueles que lutam, vivem e partilham do projeto feminista e antirracista de sociedade”.75

Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade, obtendo aprovação imediata. Embora a submissão do projeto contasse também com a realização da pesquisa junto aos sujeitos afrodescendentes em Venâncio Aires, já havia descrito nesta proposta os cuidados éticos com relação ao BN. Além disso, as narrativas coletadas neste município serão trabalhadas posteriormente, dando continuidade a esta etapa da investigação. A partir desta descrição sobre os procedimentos éticos da pesquisa, fica evidenciado que não existe fórmulas prontas que deem conta de todas as suas dimensões. A ética extrapola o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, como mostra Fonseca (2010). Uma ética do desconforto é necessária, quando estamos trabalhando com sujeitos que fornecem as narrativas para nossas pesquisas. Tenham eles condições de reivindicar outros modos de serem reconhecidos como participantes da pesquisa ou não, nosso dever é manter sempre a reflexão sobre o que fazemos. Isso implica tomar nosso próprio trabalho como apenas mais uma produção sobre determinado tema, sem qualquer pretensão de mostrar a verdade, ou de dar a última palavra sobre o que pesquisamos. Nesta direção, a discussão proposta por bell

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Disponível em: http://blogueirasnegras.org/quem-somos/. Acesso em: 24 nov. 2015. 75

hooks (2015), sobre as pesquisas produzidas por pessoas brancas com mulheres e homens negros, tem sido importante para minha reflexão. Meu compromisso é também de valorizar o trabalho realizado por intelectuais negras(os), e tenho procurado fazê-lo ao longo da pesquisa. Finalizo esta seção com suas palavras:

Eu não quero sugerir que pessoas brancas não têm escrito livros excelentes que focalizam a experiência negra; poucos o têm. Mais do que isso, quero dizer que esses livros não devem ser vistos como mais significantes e válidos que livros semelhantes de pessoas negras. Até que o trabalho de escritores e intelectuais negros tenham respeito e séria consideração, essa supervalorização do trabalho feito por brancos, no qual sempre existe em um contexto em que o trabalho feito por negros é desvalorizado, ajuda a manter atitudes racistas e de supremacia branca. (hooks, 2015, p. 43-44)76.