• Nenhum resultado encontrado

Figura 1 - Campanha para a realização do Censo do IBGE, de 1991

Fonte: Imagem disponível em: https://claudisil.wordpress.com/2010/07/22/campanha-nao-deixe-sua- cor-passar-em-branco/. Acesso em: 15 dez. 2017.

“Não deixe sua cor passar em branco!” O cartaz acima exemplifica uma campanha realizada em prol da declaração da cor/raça dos brasileiros. Esta imagem circulou em 1991 e também em 2010, períodos em que ocorreram os recenseamentos da população pelo IBGE. “Confirme a sua descendência africana, seja lá qual for a cor da sua pele” é o texto que aparece no cartaz, em consonância com os cinco rostos de um menino negro, todos eles com tonalidades de pele diferentes. A imagem desperta alguns questionamentos importantes para compreender o segundo eixo que compõe a matriz de experiência da negritude: Por que a declaração do pertencimento étnico-racial tem se tornado tão importante nas últimas décadas? De que maneira a fabricação da população negra contribui para o seu governamento e para o fortalecimento das políticas afirmativas? Que relações podemos estabelecer entre a população negra, a negritude e a produção de subjetividades contemporâneas? Na medida em que recuo algumas décadas para mostrar como determinadas práticas sobre a população negra foram adquirindo importância, sigo lançando mão de aportes teóricos que auxiliam na compreensão das tecnologias de poder/saber/governo/ética que estão sendo colocadas em jogo na produção dos sujeitos que se nomeiam/são nomeados como negros no Brasil contemporâneo.

Para avançarmos na compreensão das ações políticas direcionadas a uma determinada população, os estudos realizados por Foucault sobre a governamentalidade são primordiais. Com a governamentalidade, “temos, de fato, um triângulo – soberania, disciplina e gestão governamental, - uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança”. (FOUCAULT, 2008, p. 143). Desse modo, ela funciona como uma grade de inteligibilidade que nos permite fazer uma leitura da racionalidade contemporânea e entender como se articulam as estratégias biopolíticas que incidem sobre a população negra. A partir de alguns de seus cursos, especialmente no Em defesa da sociedade (1976) e no Segurança, território e população (1978), é possível afirmar que vivemos na era da governamentalidade e que a biopolítica se faz presente por meio de práticas cada vez mais sutis, refinadas e articuladas com o neoliberalismo e a democracia.

De acordo com Karla Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 188), “o liberalismo, a partir da década de 1980, vem sendo ressignificado na forma de neoliberalismo”. Deste modo, “o que ocorre é uma troca de ênfases. Enquanto o foco esteve sobre a troca de mercadorias, a ênfase esteve do lado da produção [liberalismo], quando o foco se desloca para a competição, a ênfase deixa de estar na produção de bens, passando para o consumo [neoliberalismo]”. (SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009, p. 189). De forma mais ampla, o neoliberalismo pode ser também entendido como um “conjunto de práticas que constituem formas de vida, cada vez mais conduzidas para princípios de mercado e de autorreflexão, em que os processos de ensino/aprendizagem devem ser permanentes”. (LOPES, 2009a, p. 108). A importância atribuída pelo neoliberalismo ao consumo (de mercadorias, bens e serviços) contribui para a inclusão da população a partir de determinadas regras, descritas por Lopes (2009a): 1o) “manter-se sempre em atividade” (p. 109); 2o) “todos devem estar incluídos, mas em diferentes níveis de participação” (p. 110). Quanto mais condições há de os indivíduos participarem ativamente do jogo neoliberal, melhor o sistema se mantém. A partir de Foucault, a autora mostra que “o ponto comum existente entre o econômico e o social é a regra da não exclusão” (LOPES, 2009a, p. 112), o que faz com que as políticas inclusivas no âmbito das sociedades democráticas trabalhem também na lógica do governamento neoliberal.

A democracia constitui-se em um conjunto de princípios e práticas que organizam, caracterizam e são vivenciados pela população de um país, como a liberdade individual, a participação política e a busca pelos direitos de todos, considerados cidadãos. Silvio Gallo, em sua análise sobre as políticas públicas e educacionais colocadas em funcionamento nas últimas décadas, utiliza o termo governamentalidade democrática. Para o autor, “ele faz todo o sentido na história recente do Brasil, após mais de duas décadas de regime de exceção e no

contexto dos esforços de construção de uma redemocratização do país”. (GALLO, 2012, p. 59). Esse é o caso de suas análises com relação ao ensino de filosofia (GALLO, 2012) e das políticas voltadas à infância (GALLO, 2015), todavia considero esse conceito adequado para pensar também o conjunto de mudanças que compreendem a negritude no Brasil, especialmente aquelas relacionadas às lutas identitárias e à intervenção do Estado por meio de políticas públicas específicas para a população negra. Entre as características dessa governamentalidade, Gallo explicita:

A maquinaria de uma governamentalidade democrática pressupõe uma sociedade civil organizada, em face do Estado; uma economia que regula as trocas e garante a potência do mercado, com geração de riquezas; uma população, que é alvo das ações preventivas do Estado nos mais variados âmbitos, na garantia de sua qualidade de vida; a garantia da segurança dessa população como dever do Estado; e, por fim, a liberdade e a não submissão dos cidadãos como valor fundamental dessa organização social e política. (GALLO, 2012, p. 59).

A liberdade aqui deve ser entendida não pelo viés ideológico, mas como um pressuposto para as relações de poder e para o funcionamento da governamentalidade democrática. No entanto, é importante salvaguardar que as práticas, embora precisem de liberdade, não estão dispensadas de grandes intensidades de regulação. (GALLO, 2012). Tanto a liberdade quanto a regulação são elementos imprescindíveis para a operação da racionalidade contemporânea. No Brasil, a regulação se evidencia, por exemplo, na exigência de declaração do pertencimento étnico-racial dos sujeitos, o que constitui um modo de calcular e de definir à qual parcela da população cada indivíduo corresponde, mas partindo do pressuposto que esta é uma escolha pessoal (autodeclaração). No caso dos afrodescendentes, constituir uma população negra não é suficiente. É importante que o sujeito se autodeclare como tal e tenha condições de participação no jogo democrático neoliberal, respondendo positivamente às ações governamentais e tornando-se um sujeito negro também ativo do ponto de vista econômico. Liberdade e regulação andam juntas, e esta é uma das características da governamentalidade democrática que garante sua eficiência. As subjetividades são produzidas a partir das relações de governamento, mas tomando como princípio o desejo dos indivíduos.

Foucault mostra que, a partir do século XVIII na Europa, o coletivo de indivíduos passa a adquirir, paulatinamente, a forma de um corpo-espécie. A governamentalidade dá centralidade ao “movimento que faz aparecer a população como um dado, como um campo de intervenção, como o objeto da técnica de governo”. (FOUCAULT, 2000, p. 171). Ainda que

coincida com a antiga noção de povo, a população torna-se o objeto político e econômico alvo das ações de regulamentação do Estado Moderno. “A população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas observações, em seu saber, para chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida”. (FOUCAULT, 2008, p. 140). Tínhamos, então, um “corpo novo”, como menciona Foucault (2005b):

Não é exatamente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder; não é tampouco com o indivíduo-corpo. É um corpo novo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de “população”. (FOUCAULT, 2005b, p. 292).

Na medida em que o surgimento da noção de população está diretamente vinculado à forma de governar e às relações de soberania exercidas pelo Estado, no decorrer do século XIX haverá também uma transformação do direito político, invertendo a regra do “fazer morrer” e “deixar viver”, em vigência por séculos, em detrimento do “fazer viver” e “deixar morrer”. (GADELHA, 2009). Essa mudança da ordem das práticas políticas, que também tiveram início na segunda metade do século XVIII, fará emergir uma nova tecnologia de poder, que Foucault (2005b) nomeou de biopolítica. Diferente da tecnologia disciplinar, que age sobre o corpo e produz efeitos individualizantes, a tecnologia de poder biopolítico, ou o biopoder, é centrada na vida, “se dirige à multiplicidade dos homens”, uma massa global que será chamada de população. “A biopolítica lida com a população, a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder”. (FOUCAULT, 2005b, p. 292-293).

Preocupado com a manutenção da vida, o estado governamentalizado vai lançar mão de aparatos científicos para desenvolver estudos estatísticos, que possibilitem a realização de previsões e de medições com vistas ao controle e a regulamentação do corpo-espécie. Neste período, os mecanismos de controle sobre a população passam a ser cada vez mais refinados, na medida em que as descobertas científicas oferecem ao Estado possibilidades de melhor conduzir, ao mesmo tempo, a todos e a cada um. Articulam-se, portanto, o poder disciplinar e o poder biopolítico. Foucault (2000, p. 171) adverte: “Devemos compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo”, mas pela relação de complementaridade entre ambas, pois a disciplina continuará sendo valorizada e fundamental no gerenciamento da população.

Com o objetivo de analisar as relações de poder que se desdobram no interior da biopolítica, Foucault se debruçou sobre a guerra das raças, descrevendo como, no século XIX,

se desenvolveu uma espécie de discurso que possibilitou o fortalecimento do racismo moderno, um racismo baseado na crença de diferentes raças e sobre o qual o Estado deveria ter controle. (GADELHA, 2009). A raça adquiriu, nesse período, fundamentações científicas e articulou-se com as narrativas sobre a nação moderna, constituindo-se como fator determinante do êxito de uma nação, da mesma forma que o território e a língua. Como desdobramentos da naturalização da guerra das raças, temos “um tipo de gestão governamental que lança mão dessa teoria, desse racismo biológico, para o controle do corpo- espécie da população”. (GADELHA, 2009, p. 107). Um estado moderno racista, assim, é aquele que se utiliza do controle biopolítico que tem sobre a população para utilizar-se de “discursos biológicos-racistas sobre a degenerescência, pois eles funcionam de modo a legitimar e garantir práticas de segregação, de normalização e, no limite, práticas de extermínio social”. (GADELHA, 2009, p. 107).

Como mencionei brevemente na seção anterior, os estudos científicos sobre as raças no Brasil geraram preocupação (e algumas discordâncias) entre os teóricos do final do século XIX e início do século XX. Para a maioria deles, a mestiçagem era vista como uma forma de degenerescer a raça35. Assim, a civilização brasileira já estaria condenada desde o seu princípio. Para Silva (2015, p. 14, grifo do autor), “a miscigenação foi um dos maiores problemas enfrentados para se tentar certa objetividade para categorizar a população brasileira, a começar pelas classificações dos tipos humanos que compunham essa população cromatizada por séculos de misturas ‘raciais’”. O grande problema da nação era, em primeiro lugar, o negro, visto como inferior na hierarquia das raças e, em segundo lugar, o pardo, que constituía considerável parcela da população brasileira e era visto como um lugar de indecibilidade. As práticas eugênicas que irão se desdobrar nas primeiras décadas do século XX, como as políticas sanitárias urbanas e as medidas educativas, estarão vinculadas às tentativas de intervenção na hereditariedade do brasileiro, caracterizando uma postura biodeterminista das raças brasileiras. (SILVA, 2015). Essas seriam as primeiras medidas biopolíticas do Estado no Brasil, “em que o corpo-espécie da população foi trazido para o centro dos debates nacionais, sobretudo aqueles debates que tinham no processo de medicalização da sociedade sua ênfase”. (SILVA, 2015, p. 20).

As medidas sanitaristas e os primeiros estudos estatísticos realizados no Brasil fornecem indícios de que o Estado governamentalizado começa a ser gestado bem mais tarde,

35

Estes foram os posicionamentos de Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) e Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). A visão positiva da mestiçagem de Sílvio Romero (1851-1914) parece ter sido uma exceção, ainda que o estivesse baseada na crença de que a mestiçagem levaria a população brasileira ao branqueamento. Para mais detalhes, ver Weschenfelder e Silva (2018, no prelo).

por volta das primeiras décadas do século XX. Esse processo está diretamente vinculado ao refinamento e a criação de instrumentos de controle biopolíticos do corpo-espécie de brasileiros. Embora já haja um interesse com relação à contagem e à classificação dos residentes durante o século XIX, é a partir da promulgação da República em 1889 que ela passa a ser motivo de maior atenção. O primeiro censo de abrangência nacional realizado com êxito ocorreu apenas em 1920. Em 1930, o censo foi adiado em função do golpe de Estado que colocou no poder Getúlio Vargas. Foi com a criação do IBGE, em 1936, que essa tarefa passa a ser centralizada e regulamentada. (SILVA, 2014). A partir do estudo realizado por Carla B. da Silva (2014), podemos afirmar que a noção de população brasileira emerge entre as décadas de 1920 e 1930. Segundo a autora, “a população emerge, no Brasil, quando se estabelece a constância de seus fenômenos, quando é possível conhecê-la, quando é possível posicioná-la numa rede discursiva. Ao dizer/narrar a população, constrói-se a população”. (SILVA, 2014, p. 61-62). Fica visível, portanto, a importância dos estudos estatísticos para o desenvolvimento de saberes que permitem ao Estado acionarem políticas que atinjam a população que se quer governar. Samuel Bello e Clarice Traversini (2011) mostram que os saberes estatísticos funcionam como uma tecnologia de governo que opera em favor de uma governamentalidade neoliberal. Segundo os autores, “para conduzir e regular a população não é suficiente produzir-lhe um saber; há necessidade, também, de produzir registros impressos que possibilitem transportar e dispor as informações coletadas”. (BELLO; TRAVERSINI, 2011, p. 860-861).

Se a noção de população brasileira se constitui apenas nas primeiras décadas do século XX, a partir da década de 1930 a ideologia da democracia racial torna-se o principal discurso da identidade nacional, como já foi abordado anteriormente. A ênfase na mestiçagem como tradução do encontro das raças no Brasil também pode ser entendida como um gesto da governamentalidade biopolítica que passava a agir sobre essa população. Diante disso, vale questionarmo-nos: Desde quando podemos falar em uma população negra no Brasil e como ela torna-se algo tão presente nos documentos legais, na mídia e nas instituições de ensino? É possível inferir que a noção de população negra é bastante recente, e está relacionada ao ingresso de lideranças negras no planejamento, execução e avaliação das políticas afirmativas. É somente com a articulação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, que essa participação oficialmente se efetiva. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), o termo população negra já era frequente: “O governo federal, por meio da SEPPIR, assume o compromisso histórico de romper com os entraves

que impedem o desenvolvimento pleno da população negra brasileira”. (MEC; SEPPIR, 2004, p. 8, grifo meu). No Estatuto da Igualdade Racial (2010) encontramos a definição para o termo: Art. 1º, inciso IV: “população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (BRASIL, 2010).

Assim, nas últimas décadas, uma das principais questões do censo do IBGE é “qual é a sua cor/raça?”, podendo ser optadas por cinco categorias: branco, preto, pardo, amarelo ou indígena. Essa maneira de definir a cor/raça no Brasil efetivou-se apenas em 1991, embora questões sobre a cor já tenham sido realizadas anteriormente. Segundo consta no site do IBGE36, no primeiro Censo Geral do Império, “apesar da pobreza dos meios disponíveis, 10.112.061 habitantes foram recenseados em 1872, em todas as províncias, e a sua distribuição se fez segundo a cor, o sexo, o estado de livres ou escravos, o estado civil, a nacionalidade, a ocupação e a religião”. Essa questão desaparece do censo de 1890, sendo substituída pela categoria mestiço e ressurge para não mais desaparecer a partir do censo de 1940. Naquele período, além da vinculação à cor, havia a categoria “outros”. (GUIMARÃES, 2008). Fica evidente, como mostrou Silva (2014, p. 61), que “a racionalização do saber estatístico fabrica a própria noção de população”.

A ênfase cada vez maior sobre a população negra é um elemento que merece atenção. Somando a valorização desta população (que é resultante da soma de todos aqueles que se autodeclaram pardos e pretos), ao esforço em romper com o mito da democracia racial, que exalta a mestiçagem, temos as tentativas de fortalecimento da negritude, que convoca o afrodescendente a assumir sua condição racial. Semelhantemente ao ocorrido no final do século XIX, a mestiçagem retorna como um problema de identificação nacional, especialmente para aqueles que contribuem para a construção de novas narrativas para o Brasil, pautadas na negritude. Entre o preto e o branco, o mestiço é aquele que assume múltiplas tonalidades, e ao mesmo tempo não pertence a nenhum dos opostos. A indefinição do pardo constituiu sobre essa cor/raça uma posição de entrelugar. Para Bhabha (2007, p. 20), “esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação”. O pardo marca a passagem de um oposto ao outro e ao mesmo tempo borra qualquer noção de fronteira. Para fins estatísticos, o pardo é uma cor que resulta do cruzamento entre as raças brancas e negras: é o símbolo da mestiçagem. Mas sua soma aos

36

Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/sinteses-historicas/historicos-dos-censos/censos-demograficos. Acesso em: 5 jan. 2018.

autodeclarados pretos mostra que há importantes estratégias de governamento da população negra em funcionamento.

O efeito mais problemático da soma de pretos e pardos, ao meu ver, incide sobre as populações indígenas, já que muitos ameríndios se autodeclaram como pardos. É provocador o texto de José Murilo de Carvalho (2007), intitulado Genocídio racial estatístico. O argumento de Carvalho (2007) está em denunciar a cópia do modelo norte-americano de racialização, mas organizando-o de modo que o indígena acabe restrito àqueles que se declaram como tal, resultando quase que somente às etnias indígenas das reservas. Além disso, se não houvesse o estabelecimento das cinco categorias de cor/raça, os brasileiros exibiriam grande variedade de nomenclaturas, como já demonstrou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, realizada em 1976. Segundo Schwarcz (2012, p. 100, grifo da autora), “de forma diversa à do censo, em que a cor é determinada pelo pesquisador, nesse caso os brasileiros se atribuíram 136 cores diferentes, reveladores de uma verdadeira ‘aquarela do Brasil’”. Ao acusar os defensores da atual divisão das categorias de cor/raça do IBGE de genocidas, Carvalho (2007, p. 113) é enfático:

Os genocidas somam pretos e pardos e decretam que todos são negros afrodescendentes. Pronto. De uma penada, ou de uma somada, excluem do mapa demográfico brasileiro toda a população descendente de indígenas, todos os caboclos e curibocas. Escravizada e vitimizada por práticas genocidas nas mãos de portugueses e bandeirantes, a população indígena é objeto de um segundo genocídio, agora estatístico.

Para além da crítica das formas de classificação étnico-racial estabelecidas atualmente, os argumentos de Carvalho (2007) são importantes para mostrar o quanto essa discussão ainda está longe de obter um ponto final. Marcadas pelo embate político e ideológico, é perceptível que as relações de poder que constroem as políticas públicas de caráter afirmativo nos últimos anos têm a participação muito mais incisiva das lideranças negras, o que favorece esta definição e não outras. Prova disso é a Lei nº. 10.639/2003, que contemplou apenas o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana e, somente em 2008, com a aprovação da Lei nº. 11.645, foi estabelecido o ensino da história e da cultura indígena. Como nos mostra Kassandra da Silva Muniz (2009, p. 9), “principalmente para os movimentos negros, essa aglutinação [a soma de pretos e pardos] foi uma estratégia de luta importante com fins de adquirir uma representatividade política mais relevante, uma vez que estavam todos sob o mesmo guarda-chuva da morenidade brasileira”. Sem dúvidas, a noção de população negra é central para o fortalecimento das narrativas que dão sustentação à matriz de experiência da

negritude. Concordo com Schwarcz (2012, p. 98), no entanto, de que “é importante questionar um sistema classificatório que, na impossibilidade de definir tudo, cria um novo termo para dar conta do que escapa da seleção”.

Em um país em que as relações étnico-raciais são fluídas e dinâmicas, a definição de critérios claros de cor/raça torna-se elemento importante para a produção de subjetividades. Na governamentalidade democrática e neoliberal, a luta pelos direitos e o combate ao racismo