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Tornar-me professora foi uma escolha realizada ainda na infância, mas foi durante o curso de graduação que tornar-me também pesquisadora passou a ser uma possibilidade. Após cursar o Magistério, durante o Ensino Médio, e já atuando como docente na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, optei por cursar História – Licenciatura, na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), entre os anos de 2005 a 2009. Desde 2006, atuava como bolsista no Departamento de Educação desta universidade, junto a projetos de pesquisa sobre políticas educacionais. Em 2008, ingressei na pesquisa Identidade Cultural, Etnicidade e Educação no Vale do Rio Pardo, coordenada pelo professor Dr. Mozart Linhares da Silva, como bolsista PIBIC/CNPq. A partir daquele momento, aproximei-me das teorizações de Foucault e da temática das relações raciais, cultura e educação. No ano seguinte, minha monografia de final de curso abordou a (in)visibilidade do negro e as histórias de in/exclusão presentes em locais marcados pela colonização alemã, tendo como título Sujeitos falhos: o discurso pedagógico-curricular na construção da identidade afrodescendente de Santa Cruz do Sul – RS (2009). Na ocasião, realizei um estudo da localização espacial das escolas deste município, identificando nos dados do censo escolar um percentual muito expressivo de alunos não-brancos nas regiões periféricas da cidade (40%), em detrimento do índice de alunos nos bairros centrais (15%). (SILVA; WESCHENFELDER, 2010). Além disso, o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana era praticamente inexistente no currículo escolar.

Esta primeira pesquisa possibilitou-me olhar de modo interessado também para outros municípios que compõem o Vale do Rio Pardo/RS. Embora grande parte da região seja marcada pela imigração europeia, especialmente a alemã, alguns locais apresentam especificidades no modo como as relações raciais são produzidas. Este é o caso do município de Venâncio Aires. O modo como alguns sujeitos negros eram visibilizados nesse espaço produziam em mim indagações e o desejo de continuar pesquisando este tema. Seria possível que Venâncio Aires fosse um local “menos racista”? O que a história desse espaço teria a dizer com relação ao negro venâncio-airense? Foi assim que em 2010 ingressei no Mestrado em Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Orientada pela professora Dra. Elí Henn Fabris, decidimos trabalhar

com o jornal Folha do Mate, mídia impressa de maior circulação no município. A pesquisa que resultou na dissertação intitulada A produção do sujeito negro: uma analítica das verdades que circulam em Venâncio Aires – RS (2012), com financiamento da Capes, teve como objetivo entender como se constitui o sujeito negro em Venâncio Aires - RS, a partir da análise das relações de poder e dos discursos que são colocados em circulação neste município pelo jornal, entre os anos 1970 e 2010.

Os resultados da investigação mostraram que o regime de verdades que circula em Venâncio Aires concede espaços de visibilidade ao negro e celebra a sua diferença, mas dificulta ou impede que se desenvolvam práticas interculturais no município, especialmente na Educação. Além disso, foi possível identificar três discursos que são colocados em circulação pelo jornal Folha do Mate, a saber: a) o discurso da comunidade, que ao estabelecer os jeitos de ser e viver na comunidade venâncio-airense opera de forma a produzir determinadas normas que conduzem os indivíduos, definindo os que podem e os que não podem participar da vida comunitária do município; b) o discurso politicamente correto, que se configura como uma tentativa de contornar a diferença e o preconceito existente em Venâncio Aires, potencializando-se através do uso do termo “moreno” para referir-se aos afrodescendentes. Como uma característica do multiculturalismo, o discurso politicamente correto se torna perverso, na medida em que coloca em exercício a tolerância; c) o discurso da diversidade étnico-racial: sua emergência foi identificada a partir de um deslocamento discursivo observado no material de pesquisa, no ano de 1988. Esse discurso procura evidenciar a vivência pacífica das diferentes culturas no mesmo espaço, contornando qualquer sintoma de conflito que possa ocorrer por meio da diferença. (WESCHENFELDER, 2012).

Durante e após a conclusão do mestrado, exerci a função de professora de História, Sociologia e Filosofia em escolas públicas e particulares da região, além da função de coordenadora pedagógica de uma escola da rede municipal de Vera Cruz. Ao mesmo tempo, continuei participando de congressos e cursando disciplinas como aluna especial na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesse período, o processo de edição da dissertação para transformá-la em livro também foi um trabalho importante. Com o apoio da Ong Alphorria – Movimento dos Afrodescendentes de Venâncio Aires, o livro Processos de (in)visibilidade do sujeito negro: o jornal de Venâncio Aires/RS em questão (Edunisc, 2015) possibilitou que a pesquisa circulasse pelo município, oferecendo especialmente às escolas e à comunidade negra instrumentos para dar continuidade ao trabalho educativo e político proposto pela Lei n. 10.630/2003.

O ingresso no Doutorado em Educação ocorreu em 2014, também na Unisinos e com orientação da professora Dra. Elí Henn Fabris. O interesse em dar continuidade aos estudos sobre a mesma temática abordada nas pesquisas anteriores, mas agora focalizando os processos de subjetivação do sujeito negro, estava em consonância com as investigações desenvolvidas na linha de pesquisa Formação de Professores, Currículo e Práticas Pedagógicas. Os últimos escritos de Foucault, que analisam a subjetivação através da dimensão ética do sujeito e do governo de si e dos outros, já estavam sendo intensamente estudados em seminários, leituras dirigidas e no interior do Grupo de Pesquisa Gepi. Além disso, orientada pela banca de avaliação, em especial pela professora Dra. Maura Corcini Lopes, minha dissertação já anunciava em seu último parágrafo o desejo de uma pesquisa futura:

Depois de desenvolver uma analítica das verdades que circulam no jornal Folha do Mate e que produzem o sujeito afrodescendente, o próximo passo seria desenvolver um estudo sobre as suas formas de subjetivação, inspirado nos últimos escritos publicados de Michel Foucault. O que não foi possível enxergar até o momento é como o sujeito afrodescendente se posiciona na lógica da governamentalidade, o que ele faz com o que é dito sobre ele e como isso o subjetiva. (WESCHENFELDER, 2012, p. 164).

Portanto, se a pesquisa realizada no Mestrado em Educação possibilitou entender como o negro é produzido a partir dos discursos que circulam em um determinado espaço, a pesquisa desenvolvida no curso de Doutorado em Educação objetivou descrever e analisar como se constituem os modos de subjetivação dos sujeitos contemporâneos que se reconhecem como negros, articulando o processo de produção dessas subjetividades com a educação. A subjetivação permite compreender como nos constituímos sujeitos a partir da relação com nós mesmos e com os outros, e como nos conduzimos diante das formas de governamento contemporâneas. De acordo com Foucault (2014b, p. 133, grifo do autor), “a ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir’ os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades”. Para essa tarefa, fui em busca de espaços em que os sujeitos negros falam de si. Em 2014, tive acesso ao blog Blogueiras Negras (BN). O contato com os textos produzidos por mulheres negras e publicados nesta comunidade virtual foi intenso desde o primeiro momento, pois não deixou dúvidas de que eu estava diante de uma materialidade potente e que possibilitaria desenvolver o tema a que tinha me proposto.

Durante três anos, as narrativas autobiográficas das mulheres negras acompanharam meus estudos, seja através dos exercícios analíticos, seja por meio das muitas leituras sobre as

temáticas que circundam a Tese. Por algum tempo, minha orientadora e eu questionamos a escolha única desta comunidade virtual para responder à problemática da pesquisa20. Seria possível que estas narrativas produzidas no interior de um espaço exclusivo para mulheres negras oportunizariam pensar de outros modos a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER), considerando que nosso anseio era justamente defender as possibilidades de viver com o outro, diferente de si? Nossas primeiras análises identificavam uma afirmação identitária muito forte, que nos conduzia para o alerta da dimensão essencializante deste modo específico de tornar-se mulher negra. Foi com o investimento teórico no campo do feminismo negro e na compreensão da subjetivação que novas possibilidades analíticas foram surgindo. Ao mesmo tempo, a categorização dos excertos das narrativas e o trabalho exaustivo em cima destes materiais fizeram evidentes diversas temáticas abordadas por estas autoras, desde uma perspectiva privilegiada que merecia (e muito) minha atenção. Esta transformação no modo de olhar para as narrativas deve-se, também, à realização do doutorado sanduíche na University of Wisconsin-Madison, entre os meses de junho e novembro de 2017.

O estágio sanduíche foi uma das minhas prioridades durante o doutorado. Em 2014, iniciei meus estudos na Língua Inglesa e, muito em função da bolsa integral que oportunizou a dedicação exclusiva ao curso, pude apropriar-me de uma segunda língua com a fluência necessária para estudar nos EUA. Após alguns contratempos com relação à bolsa e ao visto, neste ano de 2017 pude realizar um intercâmbio de 5 meses como Visiting Scholar junto ao Departamento de Currículo e Instrução da UW-Madison, orientada pela professora Dra. Gloria Ladson-Billings. Meu plano de trabalho teve como objetivo “conhecer as políticas de formação docente e as demandas contemporâneas para a educação multicultural21 americana, analisando esse processo a partir da Teoria Racial Crítica”. Fui agraciada com a oportunidade de estudar não apenas com a Dra. Ladson-Billings, reconhecida nos EUA e internacionalmente pelos seus trabalhos no campo da educação multicultural, mas também com o Dr. Thomas Popkewitz, uma das principais referências da nossa linha de pesquisa. Além disso, as aulas que frequentei e as bibliotecas da universidade foram fundamentais para que eu pudesse avançar meus estudos sobre ressentimento, negritude, branquitude, racismo, feminismo negro e educação multicultural. Foi lá que tive maior clareza sobre a importância do posicionamento do pesquisador que estuda as relações raciais, de problematizar os privilégios da branquitude e da proximidade entre as mulheres negras brasileiras e

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Ressalto que a banca de avaliação do Projeto de Tese foi determinante para as escolhas realizadas e para o desenvolvimento das problematizações desta pesquisa.

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Vale ressaltar que o campo da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) no Brasil é conhecido como

americanas. As referências internacionais utilizadas na Tese resultam deste estágio proveitoso na UW-Madison, mas os ganhos extrapolam estes escritos e são difíceis de mensurar.

No período de realização da pesquisa, mantive o olhar atento aos estudos e investigações que se relacionam com o tema pesquisado, especialmente aqueles que tratam dos processos de subjetivação e das temáticas da negritude e da ERER. Os alertas no Google Acadêmico contribuíram para ampliar o escopo da revisão bibliográfica feita para a qualificação da proposta.22 Nesta versão final, opto por ir lançando mão destes estudos na medida em que auxiliarem no desenvolvimento das discussões aqui realizadas. Além da revisão sistemática, os exercícios de escrita sobre o tema e o corpus empírico também contribuíram para o avanço das análises das narrativas autobiográficas. Ao todo, foram oito textos publicados em anais de eventos, em forma de capítulos de livro ou artigos submetidos a revistas reconhecidas no campo da Educação. A maior parte destes textos escritos em parceria da orientadora e de colegas.23 Todas as produções possuem análises das narrativas autobiográficas publicadas no BN, que para a escrita final da Tese foram repensadas e ampliadas. No entanto, há discussões aqui que são totalmente inéditas, como aquelas que trazem o estudo do ressentimento e abordam o tema do ressentimento racial. Reconheço que a escrita constante sobre as narrativas foi determinante para desenvolver o argumento central desta Tese:

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Desde 2015, mantenho três alertas no Google Acadêmico, que enviam regularmente para meu e-mail novas publicações sobre identidade negra, processos de subjetivação e black people, abarcando também pesquisas internacionais sobre o tema.

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Os textos foram os seguintes: 1) Blogueiras Negras: “sou mulher!” “sou preta!” Formas de subjetivação da

mulher negra contemporânea, apresentado e publicado nos anais eletrônicos do 6º Seminário Brasileiro de

Estudos Culturais e Educação/3º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação (WESCHENFELDER; FABRIS, 2015); 2) O discurso da negritude presente nos textos das “Blogueiras Negras”: uma análise de

inspiração genealógica, apresentado e publicado nos anais eletrônicos do XXVIII Simpósio Nacional de

História da ANPUH (WESCHENFELDER, 2015); 3) O governo biopolítico da população negra no Brasil

contemporâneo, apresentado e publicado nos anais eletrônicos do V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica,

III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação e XVII Simpósio Internacional IHU (WESCHENFELDER; FABRIS, 2015); 4) Ir para a escola, um ato de coragem: narrativas de mulheres negras sobre suas experiências

escolares, texto completo apresentado e publicado nos anais da 38O Reunião Nacional da ANPEd (WESCHENFELDER; FABRIS, 2017); 5) Capítulo de livro: OLIVEIRA, Sandra; WESCHENFELDER, Viviane I. Docência, inclusão e relações étnico-raciais: A constituição do/a professor/a para uma educação

inclusiva. In: BRANCHER, Vantoir R.; MEDEIROS, Bruna A.; MACHADO, Fernanda C. (Orgs.). Caminhos

possíveis da inclusão I: Gênero, Políticas Afirmativas e Inclusão: dilemas do nosso tempo. p. 45-59. Editora Appris, no prelo; 6) Capítulo de livro: WESCHENFELDER, Viviane I.; BAHIA, Sabrine Borges de M. H.

Educação das relações étnico-raciais na constituição da docência contemporânea: uma análise a partir de narrativas de professoras negras. In: FABRIS, Elí T. H; DAL’ÍGNA, Maria Cláudia (Orgs). Modos de ser

docente no Brasil contemporâneo: articulações entre pesquisa e formação. Livro do Grupo de Pesquisa Gipedi. No prelo; 7) A cor da mestiçagem: o pardo como entrelugar e a produção de subjetividades negras no Brasil

contemporâneo, aguardando publicação na revista portuguesa Análise Social (WESCHENFELDER; SILVA,

2018); 8) Tornar-se mulher negra: escrita de si em um espaço interseccional, artigo submetido para avaliação na Revista de Estudos Feministas (WESCHENFELDER; FABRIS, 2018).

Esta argumentação encontra-se desenvolvida ao longo dos 7 capítulos que compõem a Tese, apresentados a seguir.