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Capítulo III A vida nas aldeias da região litorânea: ritual, morte e xamanismo

3.1 Ëmï ró (“bolo da cinza”)

O ëmï ró (“bolo da cinza”, como eles traduzem para o português) acompanha a vida kaingang praticamente em todos os momentos. De fato, os Kaingang fazem ëmï ró durante as refeições matinais, acompanhadas pelo chimarrão, como foi possível observar quando os Kaingang chegaram na área conquistada por eles na Lomba do Pinheiro, durante o início da ocupação do Morro do Osso; nos acampamentos da beira de estradas; nos fóruns e diversas reuniões com os fóg; em ocasiões cerimoniais, como veremos adiante, ao tratar da preparação

do cerimonial mortuário e do Encontro dos kujá. Enfim, sempre que podem, os Kaingang fazem ëmï ró.

Como disse na introdução, existe entre os Kaingang da região litorânea do Rio Grande do Sul, o costume de cozinhar, conversar e divertir-se no fogo de chão. Efetivamente, o grupo dos reunidos nesse fogo (pi) raras vezes ultrapassa a fronteira do grupo doméstico, excetuando-se as ocasiões festivas e cerimoniais. Na maioria das vezes, esse fogo localiza-se atrás (ou ao lado) da casa (in) em um “abrigo” denominado, igualmente, in.

Nesse ambiente de fogo e fumaça, como encontramos em in, onde os homens presidem as conversas em roda de parentes próximos, kanhkã pë, e afins imediatos, jamré. As mulheres cozinham ëmï ró e outros alimentos (ver adiante) para os que convivem juntos e/ou algum visitante (parente ou não). As crianças pequenas reúnem-se nos colos e próximo ao fogo – por vezes vêm-se meninas utilizando a massa do ëmï, já preparada, para fazer pequenos ëmï ró. Ou seja, é nesse ambiente familiar que as mulheres preparam o ëmï, colocam para assar e distribuem para o consumo. Quando por ventura presentes os parentes, afins mais distantes (kanhkã) e afins (jamré), e eventuais estrangeiros procuram respeitar as etiquetas de preparação e distribuição do ëmï, o que lhes permite a convivência com a família que dispõe do fogo (pi) e do ëmï para eles.

Além disso, é importante notar que, como em vários aspectos da organização social e da cosmologia, o fogo e a cinza, no qual faz-se o ëmï ró, estão em oposição e complementaridade, em um mundo divido em metades. A chama do fogo (pï) é kamë, porque é comprida, e a fogueira é kanhru krë, pois “sempre fica redondo [a forma de sua cinza]”.

Após o homem ou a mulher acender a fogueira, o ëmï ró é colocado para assar na cinza (mrü). Este processo de “assar embaixo da cinza” (ró) difere de outros processos de preparação do alimento entre os Kaingang, no qual se usa um jiral ou grelha. A importância

de assar embaixo da cinza está associada às qualidades curativas (combate à azia, por exemplo) e protetivas (afasta o espírito dos mortos) da cinza para os Kaingang.

O fazer ëmï ró é uma atividade eminentemente feminina e, mais especificamente, realizada por mulheres casadas em seus fogos domésticos (os homens sabem também prepará- lo e, quando querem, o fazem). As mulheres estão certas da receita. Amassam a farinha de milho com água ou farinha de trigo com água e, por vezes, sal. Depois, quando a massa adquire uma certa consistência (próxima a de uma pizza, mas mais densa), fazem um círculo com ela. Com o ëmï ró já redondo e à espera para ir ao fogo, as mulheres afastam as brasas com uma lenha disponível ou com um pegador de taquara e então o “bolo” é colocado na cinza. As brasas afastadas são arrastadas com uma madeira por cima da cinza que cobre o

ëmï. De tempo em tempo, as mulheres, com o pegador de taquara, olham o “bolo” e, dali a

mais ou menos meia-hora (o tempo “depende” do fogo, das brasas produzidas e da quantidade de cinza), o ëmï estará pronto.

A função das brasas no processo de preparação é assá-lo, mas também dão ligeiras tostadas no ëmï. Estas tostadas vão ao gosto das pessoas, algumas preferem “bem dentro da cinza para não comer o ëmï queimado” outras preferem “bem tostado”. Em raras ocasiões, ouvi falarem que um não saiu bom. O ter saído bom ou não, pelo menos até onde pude observar, não é atribuído à perícia feminina, mas à insuficiência do tempo gasto no fogo, por este ou aquele motivo, à quantidade de brasas e, principalmente, à quantidade da cinza, pois é esta que retém o calor, e sua falta torna mais provável que o bolo queime e não asse como esperado.

Aqui, é preciso enfatizar o caráter ritual da preparação do ëmï ró, que é sensivelmente percebido na técnica do preparo da massa e do bolo, colocá-lo na cinza, assá-lo, retirá-lo da cinza, bater com as mãos para retirar o excesso de cinza e, finalmente, entregá-lo aos pedaços a todos para o consumo alimentar e, também, visando a proteção do corpo.

O ëmï ró destinado ao consumo é distribuído para todos em volta da fogueira. Se sobrar, ele é guardado e será utilizado nas próximas refeições, como “mistura” para a carne. Por exemplo, o ëmï ró feito pela manhã pode ser utilizado no almoço, ou nessa hora do dia as mulheres assam outro bolo. No fogo noturno podem (mais raramente) fazer ëmï ró. O ëmï ró pode acompanhar as três refeições diárias dos kaingang, juntamente com feijão, carne, arroz, macarrão. Desse modo, o consumo do ëmï ró é uma base alimentar para realização das atividades cotidianas, que se inicia pela manhã com uma roda de chimarrão. Logo que um parente chega, a família o recepciona com o ëmï ró, que será acompanhado, nessa ocasião, principalmente pelo chimarrão, por isso é uma forma privilegiada para acolher parentes.

Ao fazer ëmï ró, as mulheres participam da vida masculina. Em meio à roda de homens elas riem, falam entre si, contam histórias e estão presentes na tomada de decisões políticas importantes para a vida em aldeia. Soube que as mulheres dizem em casa para seus esposos o que se precisa para o “bem viver” (kanhgág há kar) da vida aldeã. E que elas podem permitir ou não a participação dos maridos na vida política mais ativa, influenciando sua decisão de assumir cargos de liderança na comunidade. Assim, acredito que este aspecto doméstico da vida aldeã, no qual visualiza-se uma influência das mulheres tanto na vida doméstica como na vida pública é, por vezes, assistido pela preparação do ëmï ró. Ao mesmo tempo, os homens preocupam-se que haja abundância do ëmï ró, enquanto estão no fogo matinal e no fogo noturno. Em algumas ocasiões tive a oportunidade de ver os homens falarem com orgulho do ëmï ró para a audiência branca: “este é indígena”.

Além disso, o ëmï ró é muitas vezes um alimento importante nas cerimônias que os Kaingang realizam na região litorânea. Essa importância será objeto de descrição e análise nos próximos itens deste capítulo. Mas antes de passar para a análise das cerimônias, façamos uma rápida incursão sobre a organização social kaingang.

15. Ëmï ró saindo da cinza (2007) 16.Ëmi ró saindo da cinza (2007)

3.2 O “bem viver” (kanhgág há kar) e o “bom pensamento” (kanhgág jykre): aspectos da