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Capítulo II Morro do Osso: liderança e xamanismo em uma ga (“terra indígena”)

2.3 O xamanismo de Nimpre

Nimpré, uma mulher kamë, nasceu na Terra Indígena de Votouro. Quando tinha seis anos, após a morte de seu pai, uma liderança importante desta aldeia que foi assassinado em um conflito com os fóg,43 foi adotada por sua “avó” (distante), Maria Fortes, uma importante

kujá de Nonoai (que teria ido para Votouro, segundo um kujá de Nonoai, Jorge Garcia e nas

palavras da própria Nimpre, “porque havia outro kujá trabalhando”). Sentiu-se confortada por esta mulher e passou a viver sob seus cuidados, nos arredores da aldeia, no mato, observando e “desejando aprender” uma série de práticas para tornar-se ela mesma kujá.

Ela descreve estas práticas como etapas seqüenciais e, por vezes, sobrepostas. Na primeira etapa de sua preparação, Nimpré aprendeu sobre o gufã (tempo mítico), com um “secretário” de sua avó (fi mré gufã to jé, quem a acompanha contando do gufã). Segundo ela: “Ele recebeu [este conhecimento] da kujá e depois ensinara aos outros, lá”. Estes secretários “não existem mais”, nos tempos atuais. Esse que lhe “contou sobre o gufã” (gufã to jé) era um homem bem velho de setenta e ... alguns anos. Conforme Nimpre “ele tem que contar que jeito o céu é”. Os ensinamentos transmitidos nessa primeira etapa, dizem respeito “a primeiro ter que saber tudo que marca é, que tem no ar, que tem o sol, tem a estrela, tem o céu, tem a terra, tem o mar, tudo isso ele explica”. Ele, o “secretario da kujá”, dizia: “depois que o céu termina e depois que a terra termina, não tem mais terra para lá”. Ela conta:

eu sei o jeito que o céu tem o findamento dele ... [e] porque o céu está em pé. Assim, ele dizia pra nós, que tem um passarinho que canta, que o céu cai, que o céu tem que cair, e tem um passarinho que canta que não. Ali, eles [os pássaros] vão discutir. E daí quando o passarinho cantava, ele dizia vem pra cá, venha dar força para o passarinho. Daí, nós todos corríamos, já estávamos junto com aquele passarinho p’ro céu não cair. E outro quer derrubar e outro não quer. O ipadã sï é o que quer derrubar, e o que não quer é o ipadã mág. [O primeiro] diz koe i sï e o outro, que responde ele, diz assim: koe para, koe para, quer dizer que ele [este último] não quer que caia. E, daí, nós temos que dar força para o koe para. Este

koe para, o ipandang, é o que está segurando o céu. Ele dizia para nós que o céu tem um acabamento

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assim ... [com as mãos mostra um céu em forma de um “v” invertido, que no fim encontra-se com a terra, ela descreve este encontro fazendo um semicírculo com as mãos]. Depois que o céu fazer àquele redondo dele. Acho que ele queria dizer o globo, agora que eu entendo, é um globo, né! O céu e a terra são um ... é uma bola, né! E, ele dizia para nós que o céu ia acabando. E, aqui [mostra com as mãos, embaixo do “globo”] tem uma escora, um tipo de uma escora. Ele dizia para nós, que o céu tem uma força para que não caia. Então tem um passarinho que quer derrubar e outro não, é um passarinho que dá força para o céu e outro dá força para cair, para terminar o mundo. Então quando cantava aquele passarinho que não era para cair, nós éramos pequenos com ele, e daí ele já começava a cantar e nós cantávamos juntos com ele, para dar força para aquele que não quer que caia. Mas isso aí está terminando [...] A escora é um tipo de uma forquilha, mas é vida espiritual, o certo é uma escora, mas aquele lá não é material é espiritual, ninguém enxerga. Daí esse passarinho quer tirar força da [vida] espiritual e koe para, ele, não quer. E, daí, a energia do céu que tem a escora da vida espiritual, esta, só pode ser vista pela vida espiritual[...]Daí tem um passarinho mal e outro do bem, um que quer que caia e outro que não. Daí, quando aquele não quer que caia, nós todos cantávamos, ajudávamos ele, para segurar a energia do céu, que é vida espiritual, que é koe parara, as crianças: [canta] koe parara, quando o passarinho cantava, né! Toda criança [canta] koe parara, koe parara ... E o velhinho junto! ... [Este] é um tipo de um professor, kujá fi mré jé, quer dizer que está ajudando a ensinar ... Ele é mais para história. História do céu, história da estrela, o que é ir bem. Ele ensina batizar. É ele que ensina as marcas. É ele que dá as marcas ... Estrela com estrela não pode. É só lua com a estrela, pode fazer batismo. Tudo isso aí nós fazemos ... não pode ir contrário às marcas ... Então aquela época não tinha ra

ror com ra ror que é casado, que era casamento. E agora não existe mais isso. Foi deixado há muito

tempo porque entrou essas religiões, muitas religiões. Religião luterana, religião adventista, pastores e esses acabaram, acabaram com muitas partes (entrevista gravada em janeiro de 2008, aldeia Lomba do Pinheiro).

Uma outra etapa na aquisição do conhecimento xamânico diz respeito à cura: “o remédio é com a kujá”, diz ela, “o remédio para corpo físico e o xamanismo”. Faz parte desta etapa, na qual se sobrepõem o corpo físico e o corpo espiritual, o aprendizado do conhecimento de ervas medicinais (mostradas à kujá empiricamente pela sua mestre e pelo

jagrë, depois que entra em contato com este, em sonhos e visões), da “costura” (uma operação

mágico-cirúrgica com pano e agulha sem uso, “virgem”, em que não é preciso tocar na pele da pessoa para realizar a cura), de presságios e/ou “consulta” e da realização de parto (com a administração de chá de “guaxuma” e com a técnica mágica do “puxamento”, uma prática comum entre as parteiras, mas que o kujá tem que saber). Para ser kujá deve-se obedecer restrições alimentares (como só poder tomar chimarrão e ficar sem comer durante certos períodos do dia, no amanhecer) e abstinência sexual.44

44Observei todas estas práticas, menos o “puxamento”. A prática de sonhos e visões de ervas, que por sua própria qualidade não pode ser observada, foi-me relatada por ela quando ela conta que em uma viagem xamânica realizada para encontrar um remédio o animal guia a levou até uma farmácia. Chegando lá reconheceu o remédio procurado em uma prateleira. Noutro dia, foi até a farmácia visitada durante a viagem xamânica, perguntou ao dono da farmácia sobre tal remédio e ele prontamente lhe falou do preço (?) Ela lhe disse que ele havia explorado dos índios e agora queria vendê-lo para eles. Na costura ela diz ao paciente: o que eu costuro? O

Quando tinha doze anos, Nimpre foi submetida a banhos e queima de ervas como preparação para a aquisição – durante reclusão na floresta – de um animal guia (jagrë) – no caso, uma onça (ming), um animal kamë, “que vem de onde o sol nasce”45– por meio do qual pode prestar consultas espirituais sobre doenças, presságios e “curas não só da carne mas do espírito”.

A etapa final e mais difícil, segundo ela, foi vencer vënh kej ton (o dono, “cacique”, do cemitério). Sua avó lhe disse para não ter medo e lhe deu uma faca, “dessas que não enferrujam”. Chegados o dia e a hora (meia-noite), ela foi até o cemitério antigo da aldeia de Votouro, que fica longe da aldeia e no alto de um morro. Lá chegando, avistou alguém de mais ou menos uns quatro metros de altura, pele branca, observada pela face pois o corpo estava todo coberto por uma roupa de freira, que escondia também o seu sexo. Achou melhor dar dois passos para trás, e vënh kej ton repetiu seu movimento. Deu-se então conta de que tudo o que ela fazia, vëhn key ton repetia. Ela avançou (testando a sua observação anterior),

paciente responde carne amassada. Ela continua: o que eu costuro? E o paciente responde: osso quebrado. Novamente ela pergunta: o que eu costuro? O paciente responde nervo rendido, em cada uma dessas etapas da seqüência uma costura é feita com agulha em um pano virgem. Esta é uma prática comum a pessoas kaingang que não são xamãs. Mas se o doente tiver um outro problema relacionado ao anterior (“quebradura”, “nervo rendido” ...) que seja engendrado pela “vida espiritual” só o kujá saberá identificar através da “consulta” que faz, por exemplo, utilizando gravetos, um maior e outros dois pequenos, dobrados sobre primeiro. A kujá, através do movimento mágico dos dois gravetos sobre o graveto maior, visualiza a vida de uma pessoa, seu passado, presente e futuro, observando as doenças e a cura para estas, entre outras coisas, como influir na sorte ou azar da pessoa; para fazer a consulta existem outras técnicas, das quais ouvi falar, mas não me foram descritas em detalhes. Influir na sorte ou no azar através dessa consulta parece se relacionar ao fato de o kujá ser kujá há (“pajé”) ou se é kujá korég (“feiticeiro”), voltarei a este último ponto adiante.

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O dualismo kaingang estende-se assim ao xamanismo: um kujá kamë tem um animal guia de sua metade e um

kujá kanhru tem um animal guia da metade kanhru. No caso em pauta, a kujá fala do “tigre” (vermelho) ming kusü, que está onde o sol nasce, é mais manso e é kamë. Opõe-se a “pantera” (negra) ming sán, que é kanhru e

está onde o sol se põe; este é mais brava. Recentemente, Nimpre mudou de guia e, para tanto, teve que dizer ao seu jagrë [o ming]: “Os jagrë tem vários kujá, eles não tem só a mim, têm [kujá] no Mato Grosso”. Agora, ela diz que seu guia chama-se xörén, um pássaro que não é daqui “é de outro planeta da terra”, por isso não sabe o nome em português e nem o tipo quando comparado a outras aves “daqui”. No entanto, ela não deixou os outros guias que a acompanhavam, pelo contrário, ao trabalhar com duas espécies de animais sua força “dobrou”. Quando vê que o xörén tem pouca força, já “liga” para outro que lhe dá “uma mão”. A razão para tal mudança é que o guia ming é devorador de sangue. Por isso, o kujá necessita sacrificar um animal e lhe ofertar sangue uma vez por ano, obedecendo a um calendário ritual, que remete a sua iniciação (o encontro com o animal guia). Esta demanda de sangue pelo jagrë é, hoje, na região litorânea bastante difícil de satisfazer (animais pequenos como a galinha não tem sangue suficiente, por exemplo, os animais que tem bastante para satisfazer o ming são: o veado

ele avançou, aproximando-se muito dela. Nimpre trouxe a mão à cintura para pegar a faca e

vënh kej ton repetiu o gesto. Ela puxou a faca, enfiou-lhe e vënh kej ton virou fumaça,

adentrando o cemitério. Ela perseguiu esta fumaça esfaqueando-a por todo lado, onde podia. Venceu vënh kej ton. Por isso, pode buscar as almas (vënh kenvég) que estão perdidas no cemitério. Faz estas almas retornarem à vida, antes que elas se tornem vënh kuprïg (alma do morto). Quando chegou em casa, sua avó lhe perguntou: deu tudo certo? Ela respondeu à avó: “deu” – e contou a ela essa história.

Durante sua preparação, Nimpre não podia ter quaisquer relações com homens, o que implicava não ser tocada em nenhuma hipótese por eles. Esses cuidados prosseguiram até os 15 anos de idade (“quando uma menina kaingang chega à idade de casar”). Com essa idade, ela se casou pela primeira vez. Relata que, nessa época, ficou mais mansa com os fóg; até então não conhecia roupas nem o branco. O cacique da aldeia lhe mostrou um espelho e lhe disse: “olha como você é bonita”; ela foi se chegando e ficou se olhando no espelho, e desse momento em diante ficou mansa. É importante ressaltar que ela diz ter “peleiado muito” para não se casar e que seu casamento (não sei se ela se refere aos três que viveu ou a um deles em particular) foi intermediado pelos padres que atuavam na aldeia para converter os índios, pois ela era muito brava. Nimpre diz que os padres ensinaram-lhe que o amor ao próximo e a paz são valores que deveriam ser cultivados.

Ainda quando tinha 15 anos, Kaxu, que se tornaria seu terceiro esposo, foi vê-la pela primeira vez: “ele ficou sabendo que tinha uma menina, assim ... assim ... e assim ...”, mas ela já estava casada. Passaram-se dez anos e Nimpre reagiu sempre com vigor, recusando as investidas de Kaxu – quando este enfim teve sucesso, eles ficaram casados vinte e cinco anos. Nimpre se separou do primeiro marido porque ele, além de infiel, matou a filha que tiveram. Casou-se com o segundo, que acabou por matar o tio materno dela. Foi quando Kaxu a procurou para lhe dar apoio. Casaram-se, então, quando ela já tinha 25 anos. Depois disso,

devido à saudade que sentia de sua falecida filha (com o primeiro marido), decidiu mudar-se com Kaxu para a aldeia de Nonoai, procurando esquecê-la. Antes de partir queimou todos os pertences da filha.

Quando conheci Nimpre, em 2001, ela morava na aldeia Agronomia.46 Mesmo sendo “curada” para ser kujá, e tendo mantido relações íntimas com um jagrë, Nimpre, não identificava as suas práticas de cura e as nominações que realizava a um saber guiado, ou pelo menos não se apresentava publicamente como kujá, exercendo o xamanismo apenas no âmbito familiar. Suas filhas, inclusive, contaram-me que ouviam a mãe conversar sozinha e pensavam, na época, que ela estava maluca – hoje, entretanto, afirmam que conversava com

jagrë. De fato, segundo ela, seu jagrë a acompanhou durante muito tempo, quando morou na

aldeia de Nonoai, na aldeia de Mangueirinha, em uma casa na cidade de Santo Ângelo e, finalmente, na aldeia da Agronomia, mas ela sempre pedia que o jagrë , não o fizesse, pois Kaxu não gostava. Ela, uma vez, “levantou Kaxu da cama”, quando este “não conseguia andar” afetado por uma doença, mas ele “não se dobrou” para seus jagrë, mesmo conhecendo sua iniciação como kujá.47

Quando estava em Nonoai, Nimpre atuou na igreja protestante, começando dois anos após o casamento com Kaxu, que foi quem a levou para a igreja. Ali, realizou curas, durante treze anos, nos cultos e outros eventos da igreja. Atraiu fiéis, porque os curava com práticas que tinham resultados semelhantes, como ela diz, aos “milagres” do xamanismo. Algumas diferenças, no entanto, são enfatizadas por ela. Em sua atuação na igreja, era guiada por seres, que, com forma humana, se apresentavam a ela como sendo anjos e vestiam-se de branco; a cura era imediata, não demorava tanto quanto a dos kujá. Segundo diz: “ali acampavam outros

46Sua primeira viagem a região litorânea foi para entregar um documento que denunciava a venda de madeiras em Nonoai, em 1991, mas ela só veio morar nesta região quando soube que Jagtag estava lá com sua família, com a qual viveu em Nonoai e Mangueirinha.

guias do ar. Eles eram uns espíritos, e falavam que eram os anjos”. Ela atribui essa capacidade de cura a um dom que lhe seria próprio. No final, como diz, “o povo não acreditava mais nos pastores, mas me idolatravam”. Seus jagrë a procuraram para avisá-la que ela estava “engordando” os pastores, todos interessados em suas curas por dinheiro – “eu só ajuntava dinheiro para os pastores”. Os guias vieram e disseram: “olha! que futuro tu tens, fazendo os outros ficarem ricos. O poder que tu tens foi o pai [Tupë] que te deu. E eles [os pastores, brancos] não te ajudam em nada. São gigôlos ... Os guias disseram: o que tu ganhas, os pastores nunca te deram um rancho? ... Agora o pai velho que fez o céu e a terra, eu acredito”.48 De qualquer forma, enquanto estava na igreja Nimpre curava com a ajuda dos guias anjos e quando saiu não conseguiu curar mais dessa forma; inversamente, quando estava na igreja não podia curar com os jagrë.

Em nenhum momento, nessa passagem pela “igreja” ocorrera que, o pastor branco e a população indígena souberam que ela havia sido iniciada como kujá. Nimpre afirma ainda que não atuou em Nonoai como kujá pois já havia três kujá mais antigos nesta aldeia (isso corresponde a uma idéia recorrente, na fala dela, de não querer tomar o “posto” dos xamãs atuantes). Foi nessas circunstâncias que alguns Kaingang, moradores nas aldeias da região litorânea (já que grande parte desta população vem da aldeia de Nonoai) a conheceram e, por isso, associam-na mais com a igreja do que ao xamanismo. Além disso, ela foi iniciada no xamanismo em Votouro por uma kujá que somente as pessoas mais velhas de Nonoai, como o

kujá Jorge Garcia, conhecem. Como mostro adiante, essa condição de kujá exógena à Área

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Como vimos anteriormente durante a ocupação do Morro do Osso, a referência a Tupë (Deus) compõe um dos motivos da vida religiosa kaingang, mas ela é sempre vista e referida por eles como parte da influência cristã que os fóg exerceram nas aldeias. No momento da conversa acima transcrita, ela disse que anteriormente conhecia apenas tupë fi, deus mulher, e que agora conhecia como tupë (homem). Este é um assunto complexo que merece maior atenção à qual não pude dispensar nessa dissertação. De qualquer modo, o conteúdo cristão implícito, o qual carrega a palavra Tupë, não está, no caso de Nimpre, necessariamente, associado aos demais aspectos do catolicismo popular vigente entre os Kaingang. A kujá Nimpre diz, por exemplo: “eu não guardo santo em casa, meu guia é o guia da selvagem”, algo que é comum no complexo xamânico analisado por Rosa (2005), onde se verifica a presença de um altar de santos católicos na própria casa dos kujá. Veja a enfâse de Nimpre, em um outro momento, em que me disse ter perguntado aos jagrë se existia Deus e eles confirmaram, então ela acreditou.

Indígena de Nonoai irá influenciar sua prática xamânica na região litorânea, por vezes de modo indireto e por outras de modo direto e decisivo.

A referência ao saber guiado e, logo, ao xamanismo, foi retomada por Nimpre de forma explícita, ou seja, na esfera público-cerimonial de uma aldeia, apenas na ocupação do Morro do Osso, a partir das “visões” e “sonhos” que teve. Isto porque, para a kujá, um aspecto importante na ocupação do Morro do Osso é a relação entre uma “terra perdida” (ga si) e a alma dos mortos (vënh kuprïg), devido à existência do cemitério localizado no Morro do Osso e, de igual modo, da “guerra” que assolou a população indígena ancestral com “mortes sofridas” – “queimando suas casas, feitas de taquara e folha, como eram as casas daquela época” –, o que impediu que chegassem ao numbe.49

Segundo a concepção dos Kaingang, como não houve rituais mortuários para os índios que morreram na “guerra” no Morro do Osso, eles continuam “andando” e “chorando”. Eis porque as “visões” e “sonhos” da kujá estão relacionados à “guerra”, que levou os “índios mortos” a uma “morte sofrida”. Como ela afirma, após seu encontro com “o pajé do morro do osso”: “o pajé está cansado de tanta guerra e agora quer descansar” – o que aconteceria, segundo ela, com a ocupação do lugar pelos Kaingang.

A retomada do xamanismo por Nimpre deriva de sua percepção da aproximação dos

vënh kuprïg que tiveram uma “morte sofrida” e que não se beneficiaram de uma cerimônia

mortuária necessária à partida para o numbe, permanecendo, pelo contrário, perambulando na aldeia, causando doenças e o afastamento da alma dos viventes (vënh kenhvég), convertendo estes últimos em vënh kuprïg. Segundo a concepção nativa, quando a pessoa kaingang está viva, a alma (vënh kënhvég) encontra-se no corpo. Na morte, esta alma sai do corpo e torna-se

49Confirmei o que nos diz a literatura Kaingang sobre o numbe, quando Nimpre respondeu a uma pergunta minha sobre este “lugar”, “é um lugar que não é um cemitério, é outro lugar que a gente chama, é onde que as almas dos índios tem o paradeiro deles”, localizado a oeste, isto é, é uma “aldeia dos mortos” (Veiga, 1994;

vënh kuprïg, a alma do morto. O corpo sem alma é denominado vëser (sobre seu destino, ver

adiante). O processo de saída da alma e sua transformação em vënh kuprïg podem ser revertidos pelo xamã, que vai buscar a alma vehn kenvég. Se isso não for feito a tempo, no entanto, a alma é perdida, e pode ficar vagando no mundo dos vivos, trazendo doenças para as pessoas, ou ir para o numbe (aldeia dos mortos), o que depende da realização dos ritos funerários adequados.

A presença dos mortos e o cemitério localizado no Morro do Osso foi central para a

kujá perceber um contexto propício para retomar suas atividades xamânicas, agora

publicamente, através de rituais de “queima de remédios [ervas]” (vënh kagta pür) para a proteção da população e de nominação. Essas são duas formas rituais recorrentes orientadas