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Capítulo III A vida nas aldeias da região litorânea: ritual, morte e xamanismo

3.3 O “dia do casamento”

3.5.1 Uma reflexão sobre o Encontro dos Kujá

No que se refere ao xamanismo e às práticas de fabricação do corpo individual e social, as relações intra e inter aldeias na região litorânea, assim como as relações destas aldeias com aquelas do planalto, davam-se em um contexto marcado pela mobilidade de famílias e parentelas. Esse contexto caracterizava-se também por uma marginalização dos

kujá, pois, segundo meus interlocutores, as políticas dos orgãos indigenistas (SPI/FUNAI)

e/ou a presença das igrejas nas Áreas Indígenas atuaram para cecear a prática xamânica.107 Assim, as relações entre liderança e xamanismo haviam se debilitado, por efeito dos termos em que se deve o contato com a sociedade nacional, e os kujá foram afastados de sua função na esfera público-cerimonial aldeã, qual seja, orientar as deliberações dos pa i (quando não

eram a mesma pessoa). Como os Kaingang dizem: “os kujá foram perseguidos e praticamente terminaram nas áreas”.

Assim, a debilitação dos kujá e de outros especialistas (como as parteiras) é anterior mesmo aos deslocamentos para a região litorânea, e os kujá – hoje ditos serem a “raiz” (jãre) da “cultura kaingang”, devendo ser consultados sobre todas as atividades de uma comunidade – atuavam apenas junto a seus parentes mais próximos ou a quem os procurassem. Isto mesmo quando estavam vinculados a famílias importantes politicamente, pois como alguns Kaingang dizem de Jorge Garcia (entre outros que “sempre foram lideranças”): “eu tenho pena desses velhos, pois lá em Nonoai eles são esquecidos, ninguém os procura”.108

O “Encontro dos Kujá” sinaliza um novo contexto em que o kujá tende a ocupar a cena público-cerimonial, como “raiz”, jãre, do kanhgág há kar. Em outras palavras, se no contexto anterior o xamanismo exercia-se no âmbito restrito das parentelas aliadas, agora emerge explicitamente como um foco complementar a chefia na articulação das relações intra e inter-aldeias, bem como com os “inimigos”.

Isto ocorre no contexto da esfera público-cerimonial das aldeias da região litorânea, principalmente, mas também com as aldeias do planalto, o que de certa forma é expresso pela decisão de que o próximo “Encontro” seja realizado em Iraí, uma aldeia grande (emã mág) do planalto. Por fim, os kujá começam a ser importantes na relação com os fóg porque passaram a orientar as políticas públicas efetivadas pelos órgãos que atuam junto aos índios (FUNAI, FUNASA).109

O “Encontro dos Kujá” teve um importante papel em relação às incertezas jurídicas e políticas referentes ao estatuto do Morro do Osso como Área Indígena, e em relação a sua

108Tenho notícia de que em Guarita algumas pessoas que não participam da vida política de uma determinada facção, não conseguem acesso aos kujá, pois estes atuam no seio de suas respectivas famílias, de tal modo que a atividade dos kujá está, por isso, envolvida na disputas faccionais, mas não sei ao certo como esta situação tem- se dado nas áreas.

109

A FUNASA, por exemplo, foi acionada pelos líderes, que entraram na sede desta instituição em Porto Alegre com lanças, arcos e flechas, para obter financiamento para o “Encontro”, exigindo que este fosse uma das pautas da política pública de saúde.

posição frente a outras aldeias no planalto, bem como enquanto ëmã mág, aldeia-mãe, em relação às demais aldeias “satélites” do litoral. Por ser uma área reivindicada como Terra Indígena, o Morro do Osso passou, sobretudo após o II Encontro dos Kujá, afirmar-se como pólo político e cerimonial frente às aldeias da região litorânea, adquirindo assim também uma importância política inédita na região tanto em relação aos brancos quanto em relação aos “índios” do planalto.

De fato, antes e depois do “Encontro dos Kujá”, essas aldeias na região litorânea já eram intimamente conectadas entre si e com o planalto, por laços de parentesco e outras formas de relação – como as envolvidas na movimentação para coleta de material para a fabricação de artesanatos e de remédios (vënh kagta), ou na interação das lideranças que participam ativamente da vida política kaingang no cenário local, regional e nacional. Uma diferença, entretanto, é visível: no Encontro os Kaingang da região litorânea fortaleceram laços de parentesco e trocaram informações sobre caça, coleta, e outros elementos necessários para a atividade xamânica, não só em uma escala maior que em outros contextos, mas de uma forma pública e institucionalizada que é inédita.

Aqui, na região litorânea, como afirmei na introdução e tenho constantemente enfatizado, a relação entre aldeias obedece à mesma lógica das relações entre as aldeias existentes no planalto, configurando o que pode se visualizar como um complexo que envolve aldeia-mãe (emã mág) e aldeias satélites (emã sï). Como disse Ga võg: “o Morro do Osso é a mãe das áreas, é a raiz, jãre. É como a raiz de uma árvore que vai crescendo até encontrar a raiz de uma outra árvore”. Sua afirmação, compartilhada por muitos Kaingang, vem confirmar uma situação das aldeias da região litorânea, após “Encontro dos Kujá”, como ele disse: “os

kujá disseram que vão dar força para que o Morro do Osso seja uma terra demarcada, pois os kujá são a raiz [jãre] e as aldeias são os troncos e galhos de uma árvore, daí as aldeias se

encontrarem, pela raiz e pela copa, este é o presente que os kujá deram para o Morro do Osso, iniciando um kujá para que ele seja o mestre das aldeias” na região litorânea.

Esta nova perspectiva aproxima-se do que os Kaingang dizem da antiga orientação xamânica para os tempos das guerras anteriores ao contato com a sociedade nacional. O kujá era então consultado para obter-se a visão dos inimigos, prover a proteção da aldeia contra doenças, pressagiar eventos, indicando se os Kaingang deviam viajar ou não, entre outras coisas. Pois o xamanismo, enquanto uma prática e um discurso complementares à chefia, opera para preservar a “identidade” do corpo social, o kanhgág kar, promovendo aproximações entre parentes vivos (mobilidades e deslocamentos), bem como o afastamento dos parentes mortos, garantindo assim o bem viver da sociedade, do kanhgág há kar.

25. Eles vão andar no mato (nén kãmï mü jé há) (2007)

27. Kujá Pedro da Silva batiza a fonte d’água .(goj ror) (2007)

28. Kujá Jorge Garcia batiza a fonte d’água. (goj ror) (2007)

30. “Fogo de Iraí” (2007)

31. “Fogo do Morro do Osso” (2007). Da esquerda para direita: Kentanh e Rokã.

33. Inicição de um novo kujá (2007)

35. “Marca” kamë (2007) 36. “Marca” kanhru (2007)

37. Queima de remédios (vënh kagta pür) (2007)