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Óculos de patrões e empregados: o caso dos jornalistas a

1. Os óculos dos jornalistas

1.2 Óculos de patrões e empregados: o caso dos jornalistas a

A história da humanidade é a história das lutas de classe. Nas diversas categorias de trabalhadores é clara a distinção entre quem é patrão e quem é empregado. Simplificando as complexas teorias, o operário que constrói o shopping center e os prédios das escolas particulares sabe que não poderá consumir os produtos ali vendidos ou que seus filhos não vão se matricular naqueles colégios. Ou seja, as forças produtivas sabem que, dentro do capitalismo, não serão detentoras dos meios de produção e nem dos seus produtos simbólicos.

Essa clara separação também está presente na empresa jornalística. Os jornalistas nas redações sabem que não pertencem às famílias Marinho, Civita, Frias ou Mesquita e não são proprietários dos jornais. Por mais que alguns jornalistas sonhem em ter seus próprios veículos de comunicação, é senso comum que a tarefa não é fácil. Um clássico exemplo é o sonho de Samuel Wainer de ter seu próprio jornal que só foi realizado quando o patrocínio estatal político e econômico veio de Getúlio Vargas.

Entretanto, a história do jornalismo brasileiro guarda episódios em que os jornalistas da redação se confundem com seus patrões nas tarefas ideológicas. Não é o objetivo desta dissertação esmiuçar e explicar o fenômeno, pois é um complexo estudo de história social do trabalho que ainda necessita de mais pesquisas. A revista Veja é um excelente caso de como o corpo da redação assume a ideologia do grupo econômico que sustenta a Editora Abril. O senso comum diz que é a luta pela permanência no emprego, mas senso comum não é argumento científico. Há muito mais fatores e atores que explicam essa simbiose entre patrões e empregados nas empresas jornalísticas e a Comunicação Social é carente dessas análises.

Um trabalho muito interessante e necessário nessa linha de pesquisa é o de Beatriz Kushnir. Pesquisadora da área da História Social, Beatriz publicou Cães de Guarda:

do colaboracionismo de alguns jornalistas com a censura e repressão durante a ditadura militar brasileira. Como foi dito, não é objetivo desta dissertação detalhar esse fato, mas ele é ilustrativo do processo de “unificação” dos óculos de jornalistas e proprietários dos meios de comunicação. Serve para mostrar como um jornalista adota as mesmas características de seleção de notícias que o grupo detentor do veículo, ou seja, como um jornalista que não pertence à elite latino-americana adota os mesmos discursos e práticas.

Depois da decretação do Ato Institucional número 5 e da utilização de técnicas de tortura mais “científicas” (que não matavam o torturado nas primeiras horas de pancadaria, após as quais era colhido seu depoimento), a repressão conseguiu destruir efetivamente a resistência armada no país. Marighella e Lamarca, os maiores símbolos da guerrilha apontados pelo regime, foram assassinados em 1969 e 1971, respectivamente.

Mesmo assim era preciso garantir a continuação do governo autoritário, principalmente pela sustentação do “milagre econômico” que só era milagre nas páginas dos jornais. A censura prévia foi estabelecida desde as primeiras horas do regime e vigorou até 1975. A partir desse momento, a censura ficou a cargo dos próprios jornais. A tese de Beatriz Kushnir era de que os jornalistas já estavam adestrados o suficiente para saber, por conta própria, o que poderia e o que não poderia ser publicado.

O movimento foi uma espécie de “presente” da ditadura aos meios de comunicação, que estavam se inviabilizando economicamente pela censura prévia, primeiramente porque os anunciantes fugiam de veículos perseguidos e cortados a todo instante e também porque havia uma burocracia que determinava o envio das matérias para Brasília. Só depois dos cortes que o jornal poderia ir para as bancas, o que “envelhecia” o noticiário.

Esse presente deveria ser agradecido pelos jornais com responsabilidade. “Para os grupos de interesse que o chefe do Sigab (Serviço de Informação do Gabinete) representava, o ato censório, naquele momento e apenas em alguns jornais, não mais precisava da figura presente do censor. Censurar já deveria ser uma demanda introjetada, permanecendo dentro da cabeça dos ‘homens dos jornal’”. 155

A pesquisadora faz uma ressalva de que o colaboracionismo não foi uma prática de todos os jornalistas, que muitos perderam os empregos, foram perseguidos, presos, exilados ou mortos, mas, por outro lado, também houve os que não combateram. O centro do estudo de Beatriz Kushnir é o seguinte:

“A existência de jornalistas que foram censores federais e que também foram policiais enquanto exerciam a função de jornalistas nas redações. Escrevendo nos jornais ou riscando o que não poderia ser tido ou impresso, colaboraram com o sistema autoritário implementado naquele período. Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio [...] O eixo desta apreciação ancora-se em um território do qual participava apenas um pequeno grupo dirigente e de jornalistas nas redações. Estou estudando jornalistas colaboracionistas, cães

de guarda! [...] Este é um estudo que toca na questão da ética, mas centra-se na prática de

um ofício, nas regras a serem seguidas e, sobretudo, nos seus momentos de rompimento da prática e da conduta.”156

O estudo se divide em dois. De um lado os jornalistas de formação e profissão que trocaram as redações pela burocracia e se tornaram técnicos de censura subordinados ao Estado repressor; de outro, policiais de carreira que atuaram como jornalistas, colaborando com o sistema repressivo. O jornal Folha da Tarde, do grupo Folha da Manhã, é batizado pela autora como o “jornal de maior tiragem do país”, devido à quantidade de policiais e jornalistas colaboracionistas. A Folha da Tarde foi um instrumento de apoio e propaganda do Estado autoritário e foi conhecido como o “Diário Oficial da Oban”. O editor-chefe do jornal, Antonio Aggio Jr, prestou concurso na Secretaria de Segurança Pública em 1962 e foi escriturário lotado na Delegacia Geral de Polícia. Além disso era afilhado do coronel Antônio Lepiane – o comandante do IV Regimento de Infantaria de Quitaúna, em 1967. Mais tarde, foi secretário de Romeu Tuma – ex-delegado do DOPS – durante sua gestão como diretor- geral da Polícia Federal.

Interessante é notar que o grupo Folha da Manhã é o mesmo que edita a Folha de

S.Paulo, jornal que se vangloria de ser o porta-voz do Movimento das Diretas Já, por ser o

primeiro veículo a noticiar o assunto e, em função disso, por ser plural e democrático. O discurso, na verdade, faz parte do processo dos empresários Octavio Frias de Oliveira e

Carlos Caldeira Filho de levar o grupo Folha à liderança das empresas jornalísticas no melhor estilo Cidadão Kane.

O livro de Kushnir, especialmente no capítulo referente à Folha da Tarde relata várias relações entre proprietários de jornal e políticos da base de sustentação do regime autoritário. Entre elas a amizade do sinistro Erasmo Dias com Carlos Caldeira, que por sua vez foi nomeado prefeito biônico de Santos durante a gestão do governador Paulo Maluf.

“Em outras ocasiões, também se podiam encontrar os coronéis Lepiane e Éramos Dias, o governador Paulo Maluf, os delegados do Deops paulista Celso Telles e Romeu Tuma, os donos do Grupo Folha e todos os editores dos jornais da empresa, entre muitos outros políticos e militares, nos almoços de aniversário do jornal, comemorados sempre no dia 1° de julho.”157

Essas relações promíscuas não são exclusividade da época do totalitarismo. Em todos os governos civis latino-americanos a concessão de rádios, TVs e apoio a jornais são moeda corrente e não geram nenhum editorial de repúdio na grande imprensa. Ao contrário da união das esquerdas latino-americanas, classificadas como “risível patuscada de repúblicas bananeiras” pelo semanário brasileiro Veja158.

O livro de Beatriz Kushnir relata os últimos anos da ditadura militar. Mas a figura dos cães de guarda não desapareceu por completo. Não são mais policiais de carreira, mas outros integrantes dos grupos pertencentes às elites latino-americanas que se tornam “diários oficiais” da repressão às classes populares. Durante a fase mais repressora do governo Fernando Henrique Cardoso ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, a revista

Veja estampou na capa a manchete “A Tática da Baderna”159. A “reportagem“ de Eduardo

Oinegue colocava o movimento (a maior manifestação de esquerda na América Latina nas palavras da revista Caros Amigos) como um grupo de bandidos. Em um box uma foto montagem de um dos líderes do movimento, João Pedro Stédile, com o agente 007 James Bond, de arma em punho. No olho do box, a ironia: se o agente 007 tinha licença do governo britânico para matar, os integrantes do MST também se sentiriam autorizados a

157 Idem. Op. Cit. p 320.

158 SHELP, Diogo. O Clone do Totalitarismo. In: Veja. Edição 1903 – ano 38 – n° 18. São Paulo:

Editora Abril, 4 de maio de 2005. p. 156.

159 OINEGUE, Eduardo. Sem Terra e Sem Lei. In: Veja. Edição 1648 – ano 33 – n° 19. São Paulo:

cometer diversos crimes como violação de domicílio, formação de quadrilha, corrupção de menores, furto e cárcere privado.

Dentre as fotos, uma fazia a comparação entre um soldado americano “devidamente paramentado” para enfrentar multidões e um policial brasileiro. Para Oinegue a “diferença é gritante” a favor do americano, que parece um soldado do futuro numa guerra com todas as formas de camuflagem e proteção possíveis. O ângulo da foto o coloca como uma espécie de Robocop, enquanto o brasileiro tem “apenas” um colete à prova de balas e não usa capacete. Não são necessárias análises de discurso ou conteúdo extensas para mostrar como Oinegue concebe a relação com os movimentos populares. Para o então repórter da Veja, quanto mais repressivo, melhor. Para ele, para a Veja e para o governo da época, o MST era um grupo de bandidos e qualquer coisa que não fosse um coturno amassando as costas dos trabalhadores deitados no chão era insuficiente.