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O último assalto e truque do qual o demônio se utiliza para que as nossas virtudes nos sejam

No documento O Combate Espiritual - Lorenzo Scupoli (páginas 75-79)

ocasião de ruína

A astuta e maligna serpente não deixa de nos tentar com os seus enganos para conseguir que mesmo as nossas virtudes se convertam em ocasião de ruína, pois podemos nos comprazer nelas e em nós mesmos e cair no vício da soberba e da vanglória.

Para evitar esse perigo, combate sempre, permanecendo no terreno baixo e seguro de um verdadeiro e profundo conhecimento de ti mesma, reconhecendo que não és nada, não sabes nada, não podes nada, que não há em ti senão misérias e defeitos e não mereces mais do que a condenação eterna. Fica firmemente estabelecida nessa verdade, sem permitir que nada te faça duvidar dela, convencida de que qualquer coisa ou pensamento em contrário são inimigos que te querem matar ou ferir.

Para te exercitares bem no conhecimento do teu próprio nada, serve-te desta regra: Sempre que te puseres a refletir sobre ti mesma ou sobre tuas obras, faze-o tendo em conta o que realmente te pertence e deixa de lado o que pertence a Deus e à Sua graça.

Se considerares o tempo anterior à tua vinda ao mundo, verás que, em todo aquele abismo de eternidade, não eras mais do que nada e nada podias fazer para chegar a ser algo; e mesmo no tempo atual, em que, por pura bondade de Deus, tu existes, é ainda Ele que mantém e conserva a tua existência a cada momento. Se por um só instante Ele te abandonasse, voltarias ao nada de onde Ele te tirou. Fica claro, então, que por nós mesmos não temos nada de que possamos nos vangloriar diante de nós mesmos ou dos outros.

E no que se refere ao efeito da graça ou à capacidade de fazer o bem, é claro que nada disso poderia ser realizado por tua natureza sem a ajuda de Deus. Considera

os teus erros passados e os muitos males que poderias ter cometido se Deus não te tivesse em Suas mãos; e que, multiplicados pelos dias, pelos anos, e ainda pelos próprios atos e hábitos (pois um pecado chama outro) fariam de ti um verdadeiro demônio! É necessário que a cada dia te tenhas em menor conta, para não retirar à divina bondade a glória que lhe é devida, e atribuir a ti somente o que é teu. Mas, deves ter em conta que essa apreciação de ti mesma deve ser acompanhada de justiça, pois, do contrário, não te seria benéfica. Se, por conheceres tua maldade, te sentes mais virtuosa que outros, que, em sua cegueira, atribuem a si mesmos algum mérito, mas , por isso mesmo, esperas ser estimada e louvada, então te tornas pior do que eles, porque desejas ser tida por aquilo que não és. Se queres, pois, que o conhecimento da tua maldade e pequenez mantenha longe os teus inimigos e te torne agradável a Deus, procura não só depreciar-te a ti mesma como indigna de todo o bem e merecedora de todo o mal, mas também ser depreciada pelos outros, fugindo das honras, alegrando-te com as humilhações e dispondo-te a fazer, quando preciso, tudo o que os outros depreciam. Para manter-te nessa prática, procura não fazer caso do juízo alheio. Mas faze-o com o único fim de exercitar-se na prática da desconfiança de si, sem cair no erro da presunção do espírito ou da soberba, que também costuma levar ao desprezo da opinião alheia.

E se, por alguma graça ou favor de Deus, chegas a ser estimada pelos outros, recolhe-te em ti mesma e não te apartes por nada da verdade e da justiça, mas antes, dirige-te a Deus dizendo em teu coração: “Não permitas nunca, Senhor, que eu me aproprie da honra que Te é devida e das graças que Te pertencem! A Ti o louvor, a honra e a glória, e a mim, a confusão”. Depois, pensando em quem te louva, dirás interiormente: “Por que razão me julgas boa? Bom é só o meu Deus, e só as suas obras são boas! (Mc 10,18)”. Assim fazendo e dando ao Senhor o que lhe pertence, manterás à distância os teus inimigos e estarás mais preparada para receber os dons e graças de Deus.

Se a recordação das tuas boas obras te coloca em perigo de cair na vaidade, lembra-te de considerá-las de Deus e não tuas. E, como se falasses a elas, diz: “Eu não sei como surgistes e vos formastes em minha mente, já que não está em mim

a vossa origem, mas em Deus. A ele somente quero reconhecer como vosso Pai e autor, e render-Lhe graças e louvores” (2Mac 7,22-30).

Considera, depois, que todas as boas obras que já executastes foram feitas de forma muito imperfeita e sem corresponder devidamente à graça que Deus te havia concedido, além de nelas não teres trabalhado com todo o fervor e diligência devido. Portanto, tens antes motivo para te envergonhares delas do que para orgulhar-te, porque sempre manchamos com nossas imperfeições as graças puras e perfeitas que recebemos da divina Majestade.

Compara em seguida tuas obras com as dos santos e outros servos de Deus, e verás que, em comparação às deles, as tuas melhores obras não passam de moeda falsa e sem valor. E muito mais ainda o verás se comparares tuas obras com as que realizou por ti Nosso Senhor Jesus Cristo, com tão puro amor, nos mistérios de sua sagrada vida. E levantando, por último, o pensamento à imensa Majestade do teu altíssimo e poderosíssimo Senhor e ao muito que lhe deves, entenderás claramente que não há por que alimentar qualquer vaidade por alguma obra tua, mas, ao contrário, somente desconfiança e temor. Pelo que, a todo momento e em tudo o que fizeres, hás de suplicar de todo o coração: “Senhor, tem piedade de mim, que sou uma grande pecadora!”

Não queiras conhecer a medida dos dons com que Deus te agraciou, porque isso quase sempre Lhe desagrada. Prefere sempre humilhar-te, reconhecendo que tu e tuas obras não são mais do que nada, pois isso é que corresponde à realidade. Esse é o fundamento de todas as demais virtudes: Deus nos criou do nada, e, agora que recebemos dele a existência, deseja que toda a nossa vida espiritual seja construída sobre esse conhecimento de que nada somos. E quanto mais nos diminuirmos a nossos próprios olhos, mais resplandecerão em nós as virtudes, pois, quanto mais retiramos a terra de nossas misérias, mais fundo Deus pode lançar o alicerce da Sua graça.

Por mais que te humilhes, nunca creias que já é o suficiente. Antes, convence-te de que, se fosse possível ao ser humano uma medida infinita, o teu nada seria infinito.

Com estas convicções bem arraigadas, possuímos todo o bem; sem elas, somos nada, ainda que tenhamos capacidade de realizar a obra de todos os santos e que estivéssemos sempre ocupados em Deus.

Ditoso conhecimento que nos faz felizes na terra e nos dá a glória no Céu! Ó luz, que brota nas trevas para dar brilho e claridade nas almas! Ó alegria desconhecida, que resplandece em meio às nossas imundícies! Ó nada, cujo conhecimento nos faz donos de tudo!

Jamais me cansaria de falar disso: Se quiseres honrar a Deus, acusa-te a si mesma e aprecia que os outros te acusem. Se quiseres glorificá-lo em ti, humilha-te e submete-te a todos. Se quiseres encontrá-lo, não te eleves, pois então ele se afastará, mas rebaixa-te, e Ele virá buscar-te e abraçar-te.

Considera-te indigna de todos os dons que o teu Deus, por ti humilhado, te concede para unir-se contigo. Não deixes de dar-lhe muitas graças por proporcionar-te oportunidades de ser humilhada, e agradece também a quem te ultrajou e humilhou.

Se, apesar de todas essas considerações, a astúcia do demônio, a nossa ignorância e as nossas más inclinações prevalecerem sobre nós, de modo que o desejo de exaltação continue a inquietar-nos e a abrir brechas em nosso coração, então devemos humilhar-nos ainda mais a nossos próprios olhos, ao considerarmos o pouco proveito que tiramos das provas pelas quais passamos no caminho da perfeição, já que continuamos escravos desses desejos que têm raiz em nossa soberba e vaidade. Assim, do próprio veneno tiraremos mel e saúde para nossas feridas.

CAPÍTULO XXXIII

Alguns conselhos para vencer as paixões e vícios

No documento O Combate Espiritual - Lorenzo Scupoli (páginas 75-79)