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εἴδωλον remete em primeiro lugar para uma forma semelhante a mas sem

consistência ontológica. A querela entre εικών e

εἴδωλον (ícone e ídolo) é a matriz

conceptual de todas as políticas da imagem de que somos herdeiros e exprime aquilo a que tantas vezes chamámos a crise da imagem (1).

De facto, o que está aqui em causa é uma inquietação central, a inquietação grega perante o perigo da autonomia da vida das formas e dos seus efeitos — a autonomia das imagens que tendem a substituir o real, ocupando o seu lugar. Inquietação ou desassossego que regressam hoje, num mundo progressivamente mais conquistado pelo virtual, onde a experiência de contacto com o mundo e com as coisas é cada vez mais inteiramente mediada por imagens (as da fotografia, do cinema e da televisão, precisamente). Para além da mediação que é sustentada pela indexicalidade dessas mesmas imagens, porém, muitas construções imagéticas “hiper-realistas” contemporâneas (parte das fabricadas em computador, por exemplo) mantêm, como na pintura, a iconicidade sem indicialidade, visto que o objecto “por detrás” delas já é apenas um algoritmo ou um programa informático — como notava Manovitch.

Assim regressam o temor e o tremor originais, feitos de incerteza ontológica, sobre

o que seja “realmente” o mundo das imagens na sua relação com o invisível, com o que não é atingível pelos sentidos. É neste contexto que surge a reflexão contemporânea de Deleuze, Foucault e Baudrillard (1981) sobre os simulacros.

O medo da autonomia das imagens

O que sobretudo se teme, como os gregos temiam, é que, como vimos a propósito de

The Address of the Eye de Vivian Sobchack, o mundo das imagens seja instaurador

de real (Cruz: 2000) ou de uma fantasmagoria tão poderosa como ele, e que produza os seus efeitos autónomos, afirmando-se como força legítima e imparável

independentemente do que a funda, substituindo, não só o antigo ειδος, mas também

a φύσις (physis, natureza) que ele dava a ver, a sua autopoiese e a sua desocultação verdadeira. O crescendo da virtualização do mundo contemporâneo, reaproxima- nos da primitiva desconfiança grega face às imagens e à sua aparente consistência, e

reactualiza a clivagem clássica entre o ícone e o ídolo, que o cristianismo viria a

tornar em trave mestra da sua política da imagem. Um tal temor é da mesma natureza do que o vivido perante a hipótese de uma cada vez maior autonomia da vida das máquinas, que, artefactos humanos como as imagens, acabariam por nos substituir e por mandar em nós, como o super-computador Hal no 2001 de Stanley Kubrick.

Para os gregos, que viviam num mundo frágil de imagens que davam forma, aparência e “aspecto” ao invisível, e que sempre procuravam o invisível nas imagens, essas imagens desvelavam ou desocultavam o real verdadeiro, e por isso estavam em íntima relação com a αλήθεια (alêtheia), a “verdade” do mundo que revelavam. Esse trabalho de desocultação materializava-se no ícone — como tanto insistiram os iconófilos de Bizâncio e a diplomacia teológica de Roma. Ainda hoje, quando observamos uma imagem do ponto de vista estético, procuramos nela o invisível, o

ser que lhe é imanente — como sabemos da nossa experiência de contempladores de

pintura, de fotografia ou de imagens em movimento: também no filme procuramos o “invisível” nele contido. Não o ser ausente por detrás ou para além da sua representação, mas o ser imanente, contido nessa representação. Esse ser invisível pode ser representado pela aura benjaminiana, que ora está moribunda, ora já morreu, ora ressuscita e quer regressar ao nosso habitus. Pintura e cinema tornaram-se, já o disse, auto-referenciais. Mas a auto-referencialidade não apaga a relação transcendental, agora exercida na relação entre significante e significado. Já não procuramos a “presença ausente” na tela ou no ecrã, o que estava “para lá dela”: procuramos a imanência das coisas na materialidade da sua re-apresentação.

O medo das falsas imagens

O MEDO DAS FALSAS IMAGENS resulta, assim, da clivagem entre εικών e

εἴδωλον

(este

último na acepção plural de simulacro, ídolo, duplo, aparição, fantasma, espectro), como se ele viesse replicar o trabalho de dar forma a..., mas operando uma

desacreditação desse trabalho. Esta acepção do

εἴδωλον

é crucial para entendermos

o lastro da oposição entre os dois termos. Se o εικών estava ligado à αλήθεια, à

desocultação verdadeira, o

εἴδωλον

carreava, não a desocultação desse verdadeiro

ser das coisas, mas de outras ideias a que dava igualmente forma, embora podendo,

essas ideias, ser falsas ou inventadas. É esta leitura da clivagem entre ícone e ídolo

que será totalmente recuperada pelos primeiros séculos do cristianismo (o judaísmo manteve-se sobretudo iconoclasta), resolvendo-se depois do cisma de Bizâncio o “conflito” entre o primeiro e o segundo: o ícone manter-se-á como o lado necessário

e desejável da figuração; o ídolo será interditado por propagar a antiga idolatria

pagã, correspondente a uma idealidade “má” ou “falsa”. O interdito “Não criarás ídolos” exprime o conflito entre as duas figurações. O ícone cristão salvaguarda, na figura, a “boa transcendência, infigurável antes da encarnação divina”; o ídolo pagão dá presença intolerável à “transcendência falsa e mal fundada”. A guerra, como se sabe, foi muito longa e mortífera entre iconófilos e iconoclastas, desde as batalhas de Bizâncio e do cisma irreversível entre a Igreja do Oriente e a de Roma, até às fogueiras acendidas para queimar idólatras — um tema que visitarei com mais detalhe em Facialidades e acheiropoietos (cap. 14, Vol II).

Este longo historial, o do risco que o ícone sempre corre de se tornar ídolo para quem

o cria e para o seu spectator, torna possível pensar a mediação grega das imagens

entre o homem e o mundo em função da idolatria, entendida como substituição do mundo pelas imagens criadas pelo homem (Flusser, 1983 b):

“As imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem ek-siste [Heidegger], A nova idolatria

o que significa que não tem acesso imediato ao mundo. As imagens tornam o mundo acessível e imaginável pelo homem. Ao fazerem-no, interpõem-se entre o homem e o mundo. Deviam ser mapas mas tornam-se ecrãs. Em vez de apresentarem o mundo ao homem representam-no, põem-se a si mesmas no lugar do mundo, de tal modo que o homem passa a viver em função das imagens que produziu. Deixa de as decifrar, antes as projecta para o mundo ‘exterior’, e assim o mundo passa a ser como as imagens — feito de cenas e situações. A esta inversão da função das imagens podemos chamar idolatria [itálico J.M.M.] e hoje bem sabemos como o mecanismo funciona, porque as imagens técnicas omnipresentes [fotografia, cinema, televisão] passaram a reestruturar a ‘realidade’ e a torná-la num cenário imagético. Isto envolve um tipo de olvido particular: o homem esquece-se de que produz imagens para encontrar o seu caminho para o mundo, e passa a procurar o seu caminho nas próprias imagens. Já não as decifra, vive em função delas: a imaginação torna-se alucinação”.

Dito de outro modo: as imagens invadem e substituem vicarialmente o mundo (é um processo em curso desde sempre e interminável, mas que o cinema e o audiovisual contemporâneo aceleraram), o re-apresentante ganha importância contra o re- apresentado e impõe a este último a sua hegemonia, contribuindo decisivamente para a construção social da realidade, baseada no apagamento da distância que

separava εικών e

εἴδωλον

. A diferença entre ícone e ídolo também é, deste modo,

entendível à luz do tipo de alucinação que provocam: o primeiro é uma “alucinação verdadeira”, o segundo uma “alucinação falsa”.

O filme e os cegos do ser

EM TERMOS PLATÓNICOS, o filme, enquanto fenómeno, phainomenon, reporta à

phantasia, à imaginação — e a imaginação é o processo de “trazer-ao-aparecer” o

real (Escoubas, 1986: 176), de propiciar o desvelamento do real. Mas o filme, onde

ícones e ídolos, imagens “verdadeiras” e “falsas”, convivem desde sempre dada a sua ficcionalidade congénita, é, devido à iconicidade e a indicialidade das suas imagens (tidas por analogons dos objectos filmados), instaurador de real, propondo-nos figuras que ora são desvelações e desocultações do “verdadeiro” mundo, ora invenções mal-fundadas, mas verosímeis (é aqui que a verosimilhança aristotélica se sobrepõe à “verdade”) de mundos implausíveis. Por isso a nossa relação com o filme herda inevitavelmente a antiga desconfiança e mal-estar gregos diante das imagens e o estranhamento diante dos poderes destas — que conhecemos, quer do mundo actual, quer da longa duração. Tais poderes são os dos simulacros de Deleuze e de Baudrillard. Este mal-estar e estranhamento sempre re-actualizados substituiram a antiga iconoclastia e as fogueiras, mas ainda leva alguns a considerar que os ecrãs do cinema e das cinemáticas contemporâneas são “demoníacos” (L’ écran démoniaque, Lotte Eisner, 1952).

Como diz Lanzmann (2000: 15), realizador de Shoah, em sintonia com a clássica emoção dos gregos diante das imagens e seus poderes, e apesar da sua recusa obstinada do uso de imagens de arquivo para evocar os campos de concentração e os de extermínio [aqui citado por Sylvie Rollet (2011: 191)]: “O que não podemos ver, é preciso mostrá-lo”, e assim voltamos ao ειδος e ao εικών platónicos. Comenta Rollet:

“A fórmula pressupõe, pelo menos, que a ‘imagem’ seja distinta do visível, e que, sendo- o, não possa ser produzida senão por um gesto de mostração. Ora, a produção dessa imagem pensada como ‘desvelamento da verdade’ requer a ‘arte da narrativa’ (Lanzmann, 2007:19). Ou seja, a revelação do acontecimento em toda a sua verdade não ocorre senão no termo de um processo que associa duas temporalidades distintas: o tempo da tomada [da imagem] — onde a imagem de súbito aparecida rasga o véu do visível — e o tempo da meditação, onde, de aparição em aparição, a verdade ganha corpo”.

O pedido feito por Deleuze ao cinema contemporâneo — o de que participe na reconstituição da nossa confiança (ele chama-lhe crença) no mundo real depois de dele tanto se ter afastado — é, para nós, indissociável da reconsideração do temor e tremor grego diante das imagens, do imperioso “regresso às coisas” proposto por Husserl e ainda do regresso à φύσις (geralmente, mas redutoramente, traduzida por natureza: origem, nascimento, por vezes criatura), o regresso ao “mundo e à terra” de Heidegger (1935...1960), coincidindo com a releitura, por um amigo (Belo, loc. cit.: 54), com quem estamos em empatia sobre estas matérias vai para meio século,

Voltar a acreditar no mundo banal

do filósofo que substituiu Husserl em Friburgo, e onde se alerta para o risco da perda da dimensão do sagrado (no sentido de Bataille, mas a associação é minha), que sempre deu às comunidades humanas a dimensão da dignidade e da altivez (Bataille diria soberania mas, de novo, a associação é minha):

“O que, porventura, há de mais admirável na lição de pensamento em Heidegger, é a confiança que ele encontrou nesse primeiro pensamento grego da Terra como desvelamento abrigante, confiança que, não tendo nada a ver com optimismos que a conjuntura torna hoje insensatos, nos previne que o destino que foi aberto há vinte e alguns séculos contém ainda possibilidades abertas, em que as nossas decisões se farão. Ele lê a técnica como a última possibilidade da metafísica, o seu ‘acabamento’, já que ela desdobrou tudo o que havia a desdobrar no seu campo de causalidade. A única possibilidade ainda em aberto é a da habitação poética da Terra, mas abre-se, por assim dizer, num abismo de catástrofe, de crise”.

Relevante para o que nos ocupa aqui é, assim, o que Heidegger (1968: 215) diz sobre a cegueira ontológica, aquela que nos impede de ver o ser no mundo, porque aquilo que está sempre-e-já disponível para qualquer olhar é precisamente o que deixámos de ser capazes de reconhecer:

“Do mesmo modo que existem cegos da cor, também há cegos da φύσις, [natureza, mundo...] que não são senão um género dos cegos do ser (...) e que são, não só mais numerosos que os cegos da cor, mas também mais poderosos e obstinados, até porque estão mais escondidos e geralmente não são reconhecidos como tais. Por isso os cegos do ser acabam por passar por únicos videntes autênticos”.

Interpretando livremente Deleuze e esboçando uma síntese de resposta à questão de saber que coisa é o filme: o filme, artefacto da τέχνη (teknê: arte, técnica), ajudaria

os cegos ontológicos a voltar a ver o ser da φύσις, do mundo, como antes o fizeram

as artes, tornadas próteses oftálmicas e oferecendo outros olhos à mente (oferecendo o “olhar-da-alma” ao olhar sensível e tornando-nos videntes). Mas isso significaria regressar a um mundo anterior ao mundo “hiper-real” de Baudrillard, onde a “verdade das coisas” se confunde irreversivelmente com as suas imagens, os seus

ειδωλα, os seus simulacros.

“O Cinema é Católico” . Catolicidade do Cinema

RESTABELECENDO O CONTACTO,atrás abordado,entre a crença animista nos poderes da imagem e a sua posterior conversão aos cristianismos não-reformados de Bizâncio e de Roma (amigos dessas imagens embora concedendo-lhes diferentes graus de liberdade: v., infra, os dois capítulos sobre Facialidades, Vol. II), é agora possível estabelecer uma ponte, claramente proposta por Deleuze a propósito da “catolicidade” do cinema. Mas tal ponte nunca foi uma construção pacífica, antes herda dos litígios historiais entre iconófilos e iconoclastas, entre reformas e contra- reformas, entre o insanável desejo de figurar e o seu interdito. Entre as religiões do Livro, islamismo e judaísmo mantiveram-se fiéis ao interdito de figurar. Nos cristianismos, mais que Bizâncio, que preferiu sacramentalizar as imagens e as suas figurações canónicas, a igreja de Roma foi, desde a Idade Média mas sobretudo desde o Renascimento, madrinha e mecenas de artistas relativamente livres; aprendeu a absorver e a tolerar figurações animistas para não decepcionar a necessidade de imagens vivida pelos crentes nem criar fossos inultrapassáveis entre teologia e religião popular. A história desse relacionamento é uma história de cedências e concessões, por vezes não “oficialmente” assumidas pelo aparelho eclesial. E a tradição dessa relativa tolerância estendeu-se mais tarde (depois de anos de incompreensão e de litígio), às imagens cinematográficas, apesar dos anátemas e das veementes condenações a que muitos filmes não escaparam. Não se trata, assim, de um fenómeno particularmente novo, e ainda menos de um fenómeno provocado pela emergência do cinema: Serge Gruzinski (1990) descreveu a diversidade de estratégias e de dispositivos utilizados pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII para converterem ao imaginário da igreja de Roma o imaginário ameríndio com que os padres missionários se confrontaram na colonização da América do Sul, conseguida sobretudo à custa de violência, mas também de mestiçagens e sincretismos de todas as espécies: durante um vasto período de aculturação alucinada, o imaginário (e as imagens) dos colonizados foram cedendo lugar às propostas dos colonizadores —

como representado pela vitória do culto da Virgem de Guadalupe. Hoje, no que ao cinema respeita, tratar-se-ia, para Deleuze (tal como o leio aqui), de conseguir operar o movimento inverso, uma re-conversão animista, em busca da perdida “crença no mundo”.

De facto, hiperbolicamente, em Cinéma 2 — L’image temps (1985), Deleuze considera que o novo cinema “não-ilusivo” e consciente dos “poderes do falso”, produz uma nova realidade que não se pretende mimética, nem verosímil, nem produtora de efeitos de realidade, podendo, ao contrário do “cinema ilusivo” (o cinema clássico na sua versão de “imagem-movimento” ou de “imagem-acção”, que usava todos os seus artifícios para produzir imagens, sons e narrativas verídicas ou verosímeis), ajudar-nos a restabelecer a ligação perdida com o mundo. Longe da “máquina de influência” de Baudry e de Metz e invocando uma passagem de Nietzsche em que este se refere às dimensões da vida “em que ainda somos piedosos”, Deleuze estabelece uma relação profunda entre o “bom” cinema, a escolha implicada e o fenómeno da crença, ligando ideologicamente esse cinema, quer à “catolicidade”, quer à “revolução”. E fá-lo de modo assertivo, como que reiterando uma dimensão axial; a ligação à “catolicidade” reatava com a tolerância animista- transcendental; a ligação à “revolução”, com a materialização de utopias societárias resultantes de protagonismos colectivos circunstanciais e temporários mas geradores de mudanças qualitativas irreversíveis:

“Decerto, o cinema teve desde o início uma relação especial com a crença. Há uma catolicidade do cinema (muitos realizadores [são] expressamente católicos, mesmo na América, e os que o não são têm uma relação complexa com o catolicismo). Pois não existe, no catolicismo, uma enorme encenação (mise en scène) e também, no cinema, um culto que sucede ao das catedrais, como dizia Elie Faure? (...) Ou melhor, desde o início, o cristianismo e a revolução, a fé cristã e a fé revolucionária, foram os dois polos que atraíram a arte das massas” (op. cit.: 222-223. Itálicos meus).

O cinema está assim, para Deleuze, em ligação directa com a encenação ritual de grandes cultos, porque herda dela como teatro e ópera herdaram. Mas, escrevendo sobre psicanálise e cinema, já Julia Kristeva (1975) sublinhava, referindo-se mais especificamente aos poderes das imagens, que foi Agostinho de Hipona quem consolidou “a ordem simbólica e fantasmática para dois mil anos de cristianismo”, ao designar a imagem como constitutiva da mens (mente): “a ordem simbólica está assegurada desde que há imagens nas quais se acredita sem reservas, porque a própria crença é imagem”; e “a penumbra das igrejas, mais do que qualquer outra, conhece, multiplica e explora esse fascínio”. Antecipando o que virá a ser a opinião de Deleuze, também Kristeva considera que “com o cinema, a eficácia semiótica do monoteísmo atingiu o seu apogeu”, e que nada há de melhor que o filme para cumprir a constatação agostiniana: ‘Apesar do homem se inquietar em vão, ele caminha na imagem’ (De Trinitate, As imagens, XXIV, IV, 6). Ora, qual é o limite desse caminhar na imagem? Seria porventura o humor e a ironia, se o espectador fosse capaz de des-animar o que vê, transformando, à custa da repetição, a tragédia em farsa. Mas Kristeva duvida de que tal des-animação aconteça:

“Seria sem dúvida necessário que a fascinação especular chegasse à sua realização perfeita e total através do cinema, para que do seu pavor e da sua sedução pudessem irromper risos e distâncias. Se essa desmistificação não suceder, o cinema será apenas mais uma Igreja entre outras”.

Pois bem, essa des-animação não ocorreu, e o cinema e os seus filmes geraram a igreja cinéfila — a nova geração de iconófilos nascida na idade das imagens em movimento. Deleuze insiste (loc. cit.) na necessidade de regresso a uma crença como modo de restaurar a aliança perdida entre o homem contemporâneo (a antiga aliança animista a que se referira Monod), o mundo e suas coisas, o que o homem “vê e ouve”; nesta passagem, o mundo deixa de ser o objecto pelo qual o “bom” cinema deve interessar-se; para ele, esse objecto passa a ser, deve ser a própria crença no mundo:

“Só a crença no mundo pode religar o homem ao que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme, não o mundo, mas a crença nesse mundo, nosso único laço (lien). Muitas vezes nos interrogámos sobre a natureza da ilusão cinematográfica. Devolver-nos crença no mundo, tal é o poder do cinema moderno (quando ele deixa de ser mau).

Kristeva: a crença é imagem

Cristãos ou ateus, na nossa esquizofrenia universal precisamos de razões para crer neste mundo” (id. ibid., 223. O itálico é dele).

Filmar, já não o mundo, mas “a crença na sua crença”, torna-se, convenhamos, um programa confessional. A crença no mundo é, para Deleuze, constitutiva do transcendental e do plano de imanência, conceitos que ele não desenvolve ali (sobre o plano de imanência escreveu, com Félix Guattari, em Qu’est-ce que la philosophie?, e nas suas análises de autores em Critique et clinique). Mas anota, a este respeito, que a língua inglesa, e os americanos em particular, tendem a não distinguir entre transcendência e transcendental (a passagem da antiga transcendência vertical à horizontalidade: como em Spinoza, Deus e a Natureza são a mesma coisa, Deus transferiu-se para a pedra, a árvore, o pássaro), o que torna difícil para eles uma segunda distinção correlata da primeira, a distinção entre o plano da transcendência e o plano da imanência; esse facto leva Deleuze a discordar, por exemplo, das análises de Paul Schrader no seu livro Transcendental Style in film: Ozu, Bresson, Dreyer — Schrader não distingue transcendente e transcendental. Insistindo, páginas adiante, no seu apelo à recuperação da crença no mundo, Deleuze volta à distinção entre o “cinema da ilusão” e o “cinema não-ilusivo”: “A questão já não é: o cinema dá-nos a ilusão do mundo?, mas: como é que o cinema nos devolve a crença no mundo?” (loc. cit., 237). É vasta a arborescência da abordagem deleuziana do “bom” cinema, o “não-ilusivo”, o da “imagem-tempo” e da “imagem-cristal”. Defendendo, por exemplo, o “cinema do corpo” de Philippe Garrel, Deleuze faz convergir neste cinema a possibilidade de recuperação da crença no mundo:

“...Constituir corpos, e desse modo devolver-nos a crença no mundo, dar-nos a razão... É duvidoso que o cinema baste para tanto; mas, se o mundo se tornou num mau cinema, no qual já não acreditamos, não poderá um verdadeiro cinema contribuir para nos devolver razões para crer no mundo (...)?” (loc. cit., 261).

Transportados por declarações como esta, porém, não controlamos um vocabulário técnico suficientemente rigoroso. O que é o “bom cinema”, o “verdadeiro cinema”? Não faltam, de resto, autores que rejeitam de modo brutal esta ligação entre o cinema e a “crença (animista) no mundo” ou qualquer outra crença, e que mais ainda rejeitariam a ligação entre cinema e “catolicidade”: introduzindo o seu Philosophy, Black Film, Film Noir, Dan Flory (2008), por exemplo, refere-se ao “ninho de ratos

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