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EM NOVEMBRO DE 2017 passaram 50 anos sobre a publicação, por Guy Debord, de La

Société du Spectacle (1967), um manifesto composto de 221 teses aforísticas sobre a espectacularização feiticista das mercadorias pelo capitalismo moderno e a correspondente alienação do homem contemporâneo, para quem o mundo passou a ser uma “imensa acumulação de espectáculos”. Logo de início, o autor citava Feuerbach (o do prefácio à 2ª edição de A essência do cristianismo): “Sem dúvida, o nosso tempo (...) prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser...” O mundo real era substituído pelas suas infinitas representações. E a seguir explicava-se sobre a nova bipolaridade:

“As imagens, separadas de cada aspecto da vida, fluem num leito comum onde a unidade dessa vida não pode ser restabelecida. A realidade, considerada parcialmente, constitui-se (...) como um pseudo-mundo à parte, mero objecto de contemplação. (...) O espectáculo em geral, inversão concreta da vida, é o movimento autónomo do não- vivo (...), mas é nele que se concentram todos os olhares e todas as consciências”. No “espectáculo” discutido por Debord fala-se “a linguagem oficial da separação generalizada”: novas imagens de um lado, antiga realidade do outro. Estava a saque a antiga arca da aliança onde se guardava o equilíbrio entre o real e as suas representações. Melhor: violada a arca da aliança, caixa de Pandora, saíam dela monstros invasores. Guerra dos mundos. Nos termos do Baudrillard de 24 anos depois (1981), instaurava-se a nova ordem simulacral: os simulacros ocupavam vertiginosa e alucinatoriamente o mundo das coisas que tinham começado por imitar. O “leito comum onde fluem as imagens” (metáfora de um rio tumultuoso e em cheia?) invadia e submergia o mundo real. E fotografia, cinema, televisão, tinham sido o instrumento decisivo dessa invasão-submersão.

Agora, a publicidade fetichizava e impunha, nos media audiovisuais, mercadorias maciçamente inúteis, produzidas em fábricas de luxos, e a política emigrava, como um quase-género dramatúrgico, para o melodrama televisivo e as normatividades da eficácia comunicacional. Coisas, pessoas e suas relações estavam doravante transferidas para as imagens, numa nova hiper-realidade hipostasiada, que transformava a anterior num Hades ou, na melhor das hipóteses, num país de exílio. Mais tarde, esta falsa realidade iria tornar-se no tema da disfórica Matrix dos irmãos (depois irmãs) Wachowski, de 1999. E ia instalar-se o novo empório dos reality shows. O livro de Debord não se ocupava particularmente, porém, da sociologia política da comunicação nem da crítica da comunicação de massas, embora as pressupusesse: a sua reflexão sobre a nova hegemonia do espectáculo e das imagens era um instrumento metafórico de combate político anti-capitalista, contra as novas formas de alienação geridas pelo fake look do desenvolvimentismo industrialista ocidental e do capitalismo de estado soviético. Quase no fim do seu texto (tese 219) escrevia o autor:

“O espectáculo, apagamento dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do primeiro, assediado pela presença-ausência do mundo, é também o apagamento dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda e qualquer verdade vivida sob a presença real da falsidade, que assegura a organização da aparência. Aquele que

se submete quotidianamente à sua sorte estrangeira deixa-se conduzir a uma loucura que reage ilusoriamente contra essa sorte recorrendo a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no centro dessa pseudo-resposta a uma comunicação irrespondível. A necessidade de imitação vivida pelo consumidor é uma necessidade infantil, condicionada por todos os aspectos da sua fundamental despossessão. Nos termos que Gabel usa para descrever um outro nível de patologia, ‘a necessidade anormal de representação compensa o sentimento, torturante, se estar à margem da existência’. ”

Mas teria, de facto, a antiga realidade sido esmagada, num duelo desigual, pelas suas imagens e simulacros? Decerto, a antiga realidade não deixara de existir, apenas “se escondera” como num eclipse, ou “perdia aos pontos” num infindável combate. O mundo não passara a ser sinónimo da vontade da sua representação, porque, evidentemente, “a imensa acumulação de espectáculos” se alimenta dele como o parasita se alimenta do seu hospedeiro. Este novo mundo dúplice poderia, nesse caso, ser posto em causa: seria possível rejeitar o mundo das imagens e regressar ao mundo sem elas — como tentou a New Age nostálgica da vida “natural” e da horaciana aurea mediocritas (Odes, II, 10, 5), quer, depois, os novos iconoclasmas confessionais, bárbaros e violentos? Ou, pelo contrário, seria possível manter a antiga realidade enclausurada na sua torre como a bela adormecida, não lhe dando voz e fingindo que se podia viver sem ela? A “maioria silenciosa” aprendeu a conciliar pragmaticamente, quer com os simulacros, quer com o mundo real, sendo que, nesta coalescência, a “sociedade do espectáculo” de Debord protagoniza uma cultura dominante, e o antigo “mundo real” recorda uma cultura dominada e colonizada. É ainda esta nova homeostase, esta relação de forças por ele premonitoriamente descrita, que domina o habitus e o etos contemporâneo. Cada vez mais continuámos a preferir “a imagem à coisa, a cópia ao original”. O espectáculo tornou-se o novo todo holístico; a realidade, o puzzle das suas partes.

Para as disforias científicas e políticas, a relação entre parasita e hospedeiro continuou a supor a possibilidade de o primeiro se apropriar inteiramente do segundo, metamorfoseando-se nele e forçando-o a devir outro. Nesta hipótese, o primeiro torna-se mestre e o segundo escravo, assim se gerando uma nova servidão — a “alienação”, ou a perda de si mesmo, a que se referira Marx na esteira de Hegel. É essa ainda a dimensão do pacto de Fausto, uma das grandes histórias-mães-de- histórias. Para o jovem Debord da Internacional Situacionista, que tanta influência viria a ter no “programa” do Maio de 68 francês poucos meses depois, essa hipótese estava então em vias de irreversível concretização.

O mundo dominado pela alienação no espectáculo e no simulacro tem sobretudo três rostos: o mais enraizado na longa duração é o das artes e da cultura, onde as imagens em movimento do cinématografo propulsionaram a hegemonia do campo mediático audiovisual, tão combatido, a meio do século XX, pela escola de Frankfurt; o mais directamente produzido pelo desenvolvimento do capitalismo é o do fétichismo da mercadoria, gerador de necessidades cada vez mais imaginárias e de mercados onde a satisfação das necessidades materiais ganha uma incontornável aura de fantasma efémero (veja-se o funcionamento do sistema da moda ou a vertiginosa substituição de modelos automóveis pela indústria) e passa a ser gerida por um seu duplo genuinamente inútil; finalmente, o que mais depende da evolução tecnológica é o novo sensorium técnico-científico onde proliferam robots, já não os autómatos mecânicos que fascinaram Descartes e os séc. XVII e XVIII, mas os simulacros electrónico-cibernéticos de seres humanos — serviçais, sucedâneos dos antigos escravos, que garantem os interfaces requeridos por uma nova geração de serventias. O primeiro rosto é dominado pela alucinação do real e pela substituição deste por imagens simulacrais; o segundo, motor da economia, pela criação de falsas necessidades e suas deformadas satisfações; o terceiro, pela invasão de replicants e mimóides que ocupam o lugar de pessoas, dispensando-as como, nas revoluções industriais, as máquinas que tornaram os homens descartáveis ou os fizeram seus escravos.

Sintomático é que Debord, representante da “vanguarda” intelectual da jovem esquerda radical, francófona e neojacobina, tenha, na segunda metade dos anos 60, edificado o seu argumentário político anti-capitalista sobre a clássica oposição entre

“verdadeiro” e “falso”, que, herdada de Platão e do platonismo, atravessou toda a história da filosofia e depois a da estética, envolvendo sempre disputas, com frequência muito violentas, sobre “imagens falsas” e “imagens verdadeiras”. E, de facto, só regressando à remota Grécia clássica e ao renascimento italiano entendemos que caminhos percorreu essa discussão até à sedimentação da ideia de que existe um “maravilhoso verdadeiro” onde “real” e “ficcional” se reconciliam. A guerra das imagens

MOVENDO-NOS NUMA ARQUEOLOGIA dos simulacros, evoquemos pois os gregos e as suas “guerras das imagens”, parentes arcaicas da “guerra dos sonhos” que Marc Augé (1997) abordou nos seus exercícios de etnoficção. Na história das imagens, a que por causa do cinema regressarei (v., infra, os dois textos sobre Facialidades, caps. 14 e 15, Vol. II), há, no labirinto dos primeiros confrontos entre iconoclastas e iconófilos, e deles decorrendo, um diferendo entre pastores de ícones e pastores de ídolos, que diz respeito ao que se pode e deve tornar visível. Só revisitando esse diferendo percebemos a génese das questões que, ainda hoje, exprimem a “crise” da imagem. A passagem do invisível ao visível, que tanto interessa o cinema por via do que ele pode ver e dar a ver (e que reencontramos via Merleau-Ponty, Heidegger, Deleuze, Sobchack, outros), é discutida na Grécia clássica e atravessa toda a história da filosofia ocidental, reportando à dualidade sensível-inteligível e depois, indirectamente traduzida, à dicotomia kantiana do mundo fenomenal e do mundo numenal, e exprimindo-se ainda na polémica entre idealismo e realismo, que discute o que podemos saber das coisas “elas mesmas”. O transcendental contemporâneo (de que o cinema veio a tornar-se cúmplice) abandona esta dualidade e significa que a antiga metafísica e a antiga transcendência se rebateram sobre o mundo corpóreo e ôntico, o das coisas e dos entes, nos quais é igualmente necessário ver algo que não tem existência material, o ser. É essa abordagem da “visibilização do ser das coisas” que requer uma curta viagem ao seu mundo originário, o da Grécia platónica e aristotélica, em torno dos conceitos de

εἶδος

,

ιδέα

,

εικών

,

εἴδωλον (eidòs, idea,

eikôn, eidôlon). Os gregos deram origem a uma enorme posteridade. Este capítulo vai requerer, assim, algum uso do vocabulário filosófico da Grécia clássica, o que — oxalá — não afugentará os meus leitores.

Quando, na sua reflexão sobre a técnica (1954), Heidegger evoca a teoria das formas de Platão, recorda os termos εἶδος (figura, forma sensível de algo) e ιδέα (gémeo do primeiro e quase seu sinónimo em Platão, mas também traduzível por ideia) para designar o que está entre o mundo sensível, a que acedemos em primeiro lugar pelo olhar, e o mundo essencial, a que só acedemos pelo saber, pelo conhecimento. No entanto, o deslizamento semântico entre os dois termos é notório na interpretação do filósofo alemão. Diz ele (Heidegger, 2007: 385):

“Nós, contemporâneos, deixámos de ser capazes de entender o que significava para Platão arriscar a palavra εἶδος para designar o que impera em tudo e em cada coisa. Se εἶδος significa, na linguagem quotidiana, o aspecto que uma coisa visível oferece aos nossos olhos sensíveis, Platão, no entanto, ousa designar por essa palavra algo completamente incomum, o que exactamente nunca será possível captar com os olhos sensíveis. E ainda não concluímos sobre o que há de incomum nesta atitude, pois ιδέα não designa apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível: ‘aspecto’, ιδέα designa e é também o que faz a essência do que é possível ouvir, tocar e sentir, daquilo que de algum modo é acessível”.

Diz por seu turno Fernando Belo (1992: 8) escrevendo sobre a relevância de Heidegger nesta mesma questão e sublinhando a importância do ver (com os olhos sensíveis ou “com os olhos da alma”):

“O inteligível é concebido na matriz do olhar sensível e da luz, é o que ‘vê-com-os- olhos-da-alma’ o eidòs das coisas ou entes, vivos ou não. Platão conceberá a ideia eterna de que o eidòs (forma, aspecto) de cada coisa é cópia, Aristóteles definirá a ousia, substância e essência, idêntica nos entes da mesma espécie”.

O mundo metafísico grego era um mundo que dependia da bipolaridade essência-

aparência, e de onde estava ausente a ideia posterior de representação (que

Pastores de ícones, pastores de ídolos

herdámos do latim repræsentatio). Para os gregos, as imagens do mundo eram a

manifestação possível e visível do próprio mundo: o εικών (eikon, ícone, imagem)

dava aparência a uma essência, ou ideia, invisível. Ele era imagem, figuração, forma,

o que pode ser visto, o invisível tornado visível, imagem do invisível. Muito mais

tarde, mas herdando desta mesma concepção, o Cristo ainda é o εικών de Deus, feito

à sua “imagem e semelhança”, οµοίωσις θεω, (homoiousis Theo, à semelhança de

Deus), sendo a οµοίωσις entendida como processo de assimilação: é o devir semelhante ou o tornado semelhante.

Neste sentido, que os cristãos herdaram directamente do platonismo, o εικών é a

forma, a manifestação ou a figuração do que, sem ele, não pode ser visto. O εικών

dava forma, não só ao invisível (o mundo das ideias) mas igualmente ao indizível

(Deus não tem nome, é inomeável). Na sua versão mais antiga, o εικών foi sombra,

reflexo, antes de ser duplo fiel, cópia ou reprodução de algo (a sua formulação como cópia surge no livro X da República de Platão). Já herejes entre os primeiros cristãos

e recuperando para si aquele conceito mais arcaico, os gnósticos consideravam o Cristo, não um Deus em carne e osso, mas sim um fantasma “que não deixava pegadas quando andava” — aquilo a que Bazin teria chamado uma “alucinação verdadeira”.

Na República, a objectivação do εικών como artefacto — cópia e simulacro, já

considerarei a diferença entre os dois — produzido por artesãos ou artistas, retirou- lhe o seu sentido inicial, mais alucinatório e desassossegador, que se referia a uma maior incerteza ou insegurança existencial. Depois de Platão, a cultura ocidental não mais cessou de colar a imagem ao real, primeiro no esforço de a fazer representar o “invisível verdadeiro”, depois para a considerar um analogon de algo existente e concreto e evacuar dela a referência ao invisível — esforço em grande parte inglório, dado que o ser é invisível e que dificilmente prescindimos de ter contacto com ele por via das formas.

Em termos modernos, o sentido original de εικών é melhor dado pelo termo simulacro, embora este corresponda mais exactamente ao

εἴδωλον

, (ídolo) de Epicuro e de Demócrito. As ειδη (eidê, formas, na sua tradução latina) platónicas não são os ειδώλα (eidoula, simulacros) de Epicuro ou de Demócrito: os ειδώλα, que

também podemos designar por ideias-imagens, são representações que os objectos enviam aos sentidos e causam a percepção (note-se como a indexicalidade das imagens foto-cinematográficas reiteram, glosando-a tecnicamente, esta acepção dos

ειδώλα); os ειδώλα de Demócrito e de Epicuro são, assim, percepções e sensações passivas, enquanto as ειδη platónicas são actos do espírito que incluem a capacidade de dar forma e de conceptualizar. No vocabulário herdado do platonismo, porém, o

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