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A ação penal sob o signo da paridade: seu enfoque constitucional de validez do processo

CAPÍTULO IV. A paridade de armas sob o ângulo dogmático

4.1 A ação penal sob o signo da paridade: seu enfoque constitucional de validez do processo

É com o efetivo exercício da ação penal que o órgão acusador produz em juízo a imputação, requerendo ao Estado-juiz que este exercite o ius

puniendi. Tal característica é evidenciada nas ações penais de cunho

condenatório. Como no dizer de Giulio Illuminati, é através da ação que o Ministério Público incita o juiz a se pronunciar acerca da imputação realizada.199 Elio Fazzalari classifica de ação os atos − constituídos estes em direitos, deveres, faculdades, poderes − que são desenvolvidos de forma legítima pelas partes na relação processual. Ainda para Elio Fazzalari, o juiz não desempenha nenhum ato na ação penal, mas sim uma função, qual seja a de ordená-la e julgá-la, por isso posiciona-se supraparte.200

Com base em tal fundamento, que adotamos para posicionar a paridade de armas como força motriz legitimante dos atos das partes, Elio Fazzalari refuta ser ação somente o atuar daquele que promove o processo, qual seja o Ministério Público na ação penal.201 Para o processualista italiano, a ação é

uma necessária sistematização de atos legitimados em deveres, poderes, faculdades e direitos entre as partes, que embora possam não ser simétricas em razão dos diferentes papéis de acusar e defender, não impede que sejam

199

ILLUMINATI, Giulio. Compendio di Procedura Penale. 5.ed. Padova:CEDAM, 2010. p. 747. 200

FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8.ed. Padova: CEDAM, 1996. p. 423. 201 Op.cit., p. 426.

paritéticas.202 Sob este viés, podemos então realçar que a ação penal, força

motriz e único instrumento que legitima a aplicação da pena mediante a concreção de matizes garantistas vazadas na Constituição Federal, deve se dar em razão de a sua própria estrutura ser paritética.

As ações penais, segundo abalizada doutrina203, podem ainda ser

classificadas como de conhecimento, cautelares e executórias, sendo certo que a todas as espécies se aplicam os princípios do contraditório e, por consequência lógica, o da paridade de armas.

Cabe ressaltar que a titularidade, ou legitimidade, para a promoção da acusação na ação penal no Brasil também alcançou o Ministério Público com exclusividade por força do artigo 129, I, da CF, sendo a ação penal privada uma exceção no atual e ainda vigente CPP, mas que tende a desaparecer por completo na nova processualística moderna com a aprovação do novo projeto do CPP.204

Partindo da exclusividade da legitimação em acusar sob a responsabilidade do Ministério Público, não se tem mais dúvida alguma de ser ele parte na relação processual, não devendo, pois, ser tratado como custos

legis, ou como aquele que se posiciona ou desempenha papel legitimado em

202 Op.cit., p. 427.

203

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 174.

204

Assim está disposto no artigo 45 do projeto de lei 156/2009: A ação penal é pública, de iniciativa do Ministério Público, podendo a lei, porém, condicioná-la à representação da vítima ou por quem tiver qualidade de representá-la, segundo dispuser a legislação civil, no prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime. Como visto, restará tão somente, por força também da CF, art.5.º, LIX a ação penal privada subsidiária da pública, mas guardando toda sua natureza jurídica de ação penal pública.

algo mais sublime ou maior do que a imputação e a persecução da aplicação penal sob o ponto do enquadramento material desta. A concepção de ser mais do que parte ou de ter seus atos considerados com maior credibilidade desequilibra a ação penal no tocante às prerrogativas reflexas das partes, sendo pois preponderante que a imparcialidade do julgador se constitua na força mecânica da paritética função que estas desempenhem no processo penal. Tal assertiva encontra respaldo nos ensinamentos de Giulio Illuminati, quando essencialmente esclarece que “o contraditório pressupõe paridade

entre as partes que só pode ser eficaz se o contraditório destas tiver a mesma força, ou ao menos, poderes equivalentes”.205

Registre-se, por oportuno, que embora seja parte, da sua parcialidade é exigido comportamento equilibrado e ético, limitando seus poderes, deveres, faculdades e direitos nas respectivas e reflexas prerrogativas da parte adversa. Isso, por si só, não o eleva à categoria de único promotor da justiça penal, porquanto seu desempenho se reflete em buscar a aplicação da pena, mas com critérios estabelecidos em valores como verdade e justiça, e estes, ainda que utópicos, como no dizer já anteriormente lançado de Ferrajoli, são essenciais para a legitimação do sistema penal. Como bem assevera a este respeito Noé de Azevedo quanto ao fato de que o representante do Ministério público funciona na ação penal como advogado da sociedade mas não está

205

legitimado por ela a praticar e empreender excessos que culminem em uma acusação injusta.206

Assim, ao impulsionar o sistema penal para o desencadeamento da

persecutio criminis através da acusação penal, deve o órgão ministerial

identificar a acusação de forma plena, de maneira razoável e compreensível, a fim de que o acusado possa entender qual o objetivo e a finalidade da ação penal, qual o risco que ele corre com a possível procedência da demanda e com que instrumentos o acusador pretende demonstrar os fatos narrados e articulados dentro da lei substancial posta.

A denúncia articulada em juízo deve propiciar ao acusado a plena capacidade de desenvolvimento de sua tese e estratégia defensiva, por corolário reflexo da acusação fática penal que lhe foi imputada, sob pena de já neste momento ter manchado a marcha processual no tocante ao princípio paritético. Como dito algures, o tempo garantido ao acusado para a formulação de sua defesa deve ser razoável, sendo-lhe garantindo o acesso a todo o material produzido em seu desfavor. O fato de a legislação processual penal atual conferir ao acusado, em regra, o prazo de 10 (dez) dias para a produção de sua defesa não impede que o magistrado lhe conceda maior prazo, assim como é feito na devolução dos prazos para a investigação criminal e para a possível oferta da denúncia, cujo prazo não é peremptório, mas marco regulador, como já consagrado pela jurisprudência pacífica no tocante à contagem dos prazos para efeito de consideração de excesso de prazo.

206

AZEVEDO, Noé. Deveres dos juízes, advogados e promotores no proceso criminal. REVISTA FORENSE comemorativa 100 anos, tomo VIII. Coordenador Afrânio Silva Jardim. Rio de Janeiro: 2006, p.181.

Referida situação consagra de maneira efetiva o princípio da ampla defesa, do contraditório e garante sejam as partes tratadas de maneira paritética.

Significativa a posição que deve assumir o magistrado na sua função diante da ação penal proposta sob aspectos garantísticos. Antônio Magalhães Gomes Filho afirma que ao magistrado deveria incumbir o dever de fundamentar a recepção da denúncia ofertada pelo órgão acusatório como garante de que a ação penal houvesse atentado para as mínimas condições de legitimação, possibilidade e interesse, sendo-lhe vedado o que na prática ocorre, isto é, despachos de recebimento meramente declarativos chancelados de forma autômata. 207O dever de motivar estaria vinculado ao que preceitua o

artigo 93, IX, da CF, por conta de entender o referido doutrinador que a ação penal só poderia ser instaurada em face de uma decisão e não de mero despacho de acatamento da denúncia.

Guilherme de Souza Nucci defende que a motivação seria desnecessária em razão de classificar referida decisão como interlocutória simples, acompanhando de maneira oblíqua as vozes do posicionamento jurisprudencial do STJ que entendem que o recebimento é presumido em razão das provas trazidas pelo inquérito policial e que referida atuação do magistrado se resume a mero despacho formal.208

Mais do que um flagrante atentado contra a regra constitucional de se fundamentar todas as decisões, tal posicionamento resulta em franco

207 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 209.

208

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4.ed. 2005.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 151.

desrespeito ao princípio da paridade de armas no processo penal. Ora, não se pode simplesmente classificar a decisão que recebe ou que rejeita uma denúncia de mero despacho para burlar a aplicação do artigo 93, IX, da CF, até porque à “decisão” que rejeita a denúncia é oponível recurso em sentido estrito ou agravo (caso das ações penais originárias), sendo também contestada mediante habeas corpus a “decisão” que recebe a denúncia nos termos do artigo 648, I, do CPP.

No primeiro caso, ao rejeitar a denúncia verifica-se que por ser objeto de recurso próprio tratado no artigo 581, I, do CPP, fica o juiz obrigado a fundamentar a sua decisão, sob pena de nulidade, uma vez que o órgão acusador, para poder recorrer da decisão, precisa ter aclaradas as razões e motivos da autoridade judicial para apresentar seu respectivo recurso. No segundo caso, para impetrar o habeas corpus deve o impetrante também conhecer dos reais motivos e fundamentos utilizados para a recepção da denúncia e consequente instauração da ação penal. A simples chancela de que houve descrição fática e que a denúncia está perfectibilizada ao artigo 41 do CPP nos parece mero direito potestativo, o que impediria, de per si, que pudesse a defesa apresentar reação já no início da persecutio criminis in

juditio. Reação que poderia até questionar se o procedimento adotado e

escolhido via denúncia ofertada se coaduna com o enquadramento típico proposto, não se devendo esperar e aguardar para que se verificasse tal situação após a ação penal já em curso, devido aos efeitos negativos que uma simples acusação judicial gera no âmbito pessoal, familiar, social e econômico do denunciado, como já anteriormente relatado.

Referida assertiva não é isolada. Vejamos o escólio do professor brasileiro Antônio Scarance Fernandes, que vaticina que a ação penal atinge o acusado desde a sua propositura, já que passa a ser visto como provável autor de um crime e um futuro condenado, não sendo eficaz a positivação do princípio da presunção da inocência em razão da afetação do seu status

dignitatis, principalmente da sua imagem perante o tecido social. Ainda

assevera o citado processualista que em juízo não basta a mera descrição típica, pois a imputação deve ter supedâneo em lastro probatório razoável, sob o enfoque da existência do crime e de indícios suficientes de autoria. Desta maneira cabe ao juiz, ao recepcionar a denúncia, motivar, ainda que minimamente, seu ato em razão de proporcionar à parte que suportará seus efeitos o direito de poder contrariá-lo em sede de habeas corpus ou mesmo utilizando de questões prejudiciais e preliminares em sua defesa técnica. 209

Conclui-se, portanto, que a mera recepção da denúncia como se fosse esta um ato protocolar afeta sobremaneira a prerrogativa reflexa da paridade de armas em torno da defesa que deverá ser exercitada em juízo. Assim, deve a ação desenvolver-se desde o seu nascedouro sob o signo da garantia paritética, sob pena de o desequilíbrio afetar sobremaneira seu resultado.

209

FERNANDES, Antônio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 29/33.

4.2 A produção probatória e o tratamento paritário: o direito

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