• Nenhum resultado encontrado

Desnivelamento das armas em razão dos discursos punitivos de proteção social – a atividade antiparitária

CAPÍTULO III. A paridade de armas no processo penal

3. A paridade como princípio inafastável do devido e justo processo legal: uma visão garantista

3.5 Desnivelamento das armas em razão dos discursos punitivos de proteção social – a atividade antiparitária

“A repressão à criminalidade é uma necessidade de qualquer sociedade. Deve ser efetivada com presteza, seriedade e rigor. Mas há limites muito nítidos. Qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias.”

Luis Roberto Barroso

Mesmo com a incisiva determinação constitucional de que todas as decisões judiciais devam ser fruto de fundamentação e motivação, premiando a racionalidade ética quando da escolha normativa a legitimar uma ação efetivamente imparcial do juiz, na garantia de um processo justo mediante o contraditório em paridade de armas, a prática tem se mostrado deficiente por conta do “desvio hermenêutico”. A contínua e insistente utilização de certa retórica jurisdicional em detrimento da integração reflexa das partes na formação da prova tem deixado o “processo nu” e sem a devida garantia acerca dos direitos fundamentais, mormente aqueles afetados pelo processo penal, a saber, liberdade, intimidade e privacidade. Constituem os discursos

159

ROSA, Alexandre Morais. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris. 2006, p.284.

punitivos em busca de soluções para a escalada da criminalidade mera retórica protecionista.

Não é novidade que estamos assistindo à intensa escalada da criminalidade na grande maioria das cidades brasileiras. O caos urbano, a histeria e a ansiedade a fim de encontrar a almejada solução para os males do crime em um tecido social cada vez mais complexo e prenhe de demandas de todos os matizes, de há muito vêm sendo tonificados através de modificações da ciência criminal como fórmula mágica de frear a progressiva e vertiginosa violência. O processo penal tem sofrido com tal prática desviante.

A procura de respostas para a cessação do crime e a inculpação do criminoso acabam desaguando em crescente diminuição dos direitos fundamentais de todos, pois de meros espectadores somos alçados à condição de suspeitos que necessitam de “profundas” investigações sobre a vida privada, relações pessoais, intimidade e demais mecanismos de ação que possam influenciar a conduta “anômala” no tecido social doente e um tanto quanto autofágico. Todas essas “agressões estatais” têm se fundado em discursos protecionistas dentro da seara processual, sob o prisma de um direito penal que necessita mostrar sua força pujante em prazo quase “midiático”. Glauco Giostra calssificou tal fenômeno da justiça como “massmediológico” que dita um ritmo, meios, exigências e distorções diversas das garantias constitucionais.160

A epidemia de que todos têm algo a esconder de criminoso em suas vidas acaba por justificar a pacífica aceitação dos abusos estatais, promovidos

pelos entes policiais e órgãos jurisdicionais: a invasão de residências, a quebra indiscriminada de conversas telefônicas, a divulgação de imagens e o debate aberto e público sobre a vida privada de cada um viraram rotina, como se vivêssemos em um grande reality show do qual não tivemos a opção de não participar, nem temos como nos esquivar, afinal estamos todos, como já dizia Franco Cordero, à sujeição do ius puniendi estatal, sejamos culpados ou inocentes.161

Com tais assertivas explica-se, talvez, o porquê de o Poder Judiciário brasileiro ter autorizado, só no ano de 2007, 375.633 escutas telefônicas, ou seja, mais de mil escutas por dia foram realizadas no Brasil, algumas burlando os lapsos temporais herméticos da Lei 9.296/2006, com períodos superiores aos quinze dias inicialmente determinados pela norma em destaque.162

As constantes e invasivas operações da Polícia Federal, apresentadas espetacularmente por todos os meios de comunicação, ganham cada vez mais o aplauso fácil da população sequiosa por “justiça”, e aqui o risco que se corre é a imparcialidade do julgador sucumbir aos apupos e apelos populares.

Todavia, verifica-se que de todo o estardalhaço espetaculoso registrado pelas lentes ávidas ao escárnio popular, muito pouco de recomposição do patrimônio público e/ou de efetivação da justiça almejada ocorre. Não obstante, a marca indelével daqueles que sofreram com a afetação da intimidade, imagem e vida privada se prolonga e gera efeitos estigmatizantes, com a

161 CORDERO, Franco. Procedura Penale. 8.ed. Milano: Giuffrè, 2006, p. 14. 162

GRIPP, Alan; CABRAL, Maria Clara. Judiciário autoriza mais de mil grampos por dia no país. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 nov., 2008. Brasil, p. A4.

consequente marginalização social desses indivíduos. Aqui parece que a norma constitucional insculpida no artigo 5º, X, da Constituição Federal é resultado do devaneio utópico do legislador constituinte, pois não é crível que o Estado usurpe os direitos fundamentais à guisa de combater a criminalidade.

Tal ação, através do processo, é um marco de demonstração de desequilíbrio das prerrogativas reflexas entre as partes, visto que ao legitimar tais discursos em detrimento da garantia paritária, percebemos um desnivelamento total entre os instrumentos colocados à disposição das partes. Tal prática infelizmente tem sido um sintoma de que além da transformação normativa, também necessitamos de uma revolução cultural com a visão voltada para o justo processo.

É o que se nos apresenta neste momento, sendo relevante reforçar que o papel do hermeneuta autêntico – o juiz – tem sido lamentavelmente fulcral para a quebra das garantias e direitos fundamentais na utilização abusiva das medidas cautelares penais, mediante artifícios retóricos de linguagem que têm como pano de fundo a proteção da sociedade (do bem) − discurso de Defesa Social −, em decisões com frases de efeito que, sem nenhuma reflexão crítica, acabam se distanciando, e muito, do real e verdadeiro Estado Democrático de Direito e do justo processo.

Longe das discussões doutrinárias acerca da nomenclatura em medidas cautelares ou medidas de urgência, deve-se levar em consideração que tais provimentos são instrumentos eficazes para o bom termo do processo, evitando que se esvaneçam as provas e/ou a própria aplicação da sanção penal. Não se questiona, entrementes, a importância da instrumentalidade

cautelar que, claro, cumpre papel relevante na concreção da ciência processual − sejam as medidas de caráter pessoal, probatório ou patrimonial.163

Frise-se que em face de sua urgência, e ainda na forma como está disposta no ordenamento jurídico, há direta e inexorável afetação do direito à defesa, ao contraditório, à paridade de armas, o que acaba por comprometer a imparcialidade do juiz, que de há muito se encontra distante de ser atingida como ideal. Talvez fosse também hora de o legislador alçar a imparcialidade como requisito aferível de forma objetiva na decisão, e não deixá-la na cômoda condição de pressuposto da jurisdição, partindo de uma premissa equivocada de que tal garantia é do poder e não de quem a aplica.

Não são poucas as decisões cautelares pessoais que afirmam categoricamente que “se solto, o acusado VOLTARÁ a cometer novos crimes” partindo da premissa de que o acusado já tenha cometido aquele crime pelo qual nem sequer ainda foi julgado; aliás, nem a formação da prova houve ainda para afirmações tão contudentes por parte de quem deveria estar sob o freio da imparcialidade.164

Nesse diapasão, a intimidade, a privacidade e a liberdade se colocam como direitos constitucionalmente assegurados e parecem perder peso e relevância ante a frenética busca de o “um-culpado”. A presunção de inocência e a inviolabilidade do domicílio, assim como a privacidade, se perdem ou se mostram como meras molduras de calibragem constitucional diante do bombardeio de buscas e apreensões de matizes genéricas requeridas por

163

RAMOS,João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 39.

164

SUANNES,Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004, p.153.

autoridades descompromissadas com os direitos fundamentais e concedidas em decisões produzidas em escala industrial, através de discursos pasteurizados.

A professora Anamaria Campos Torres leciona que a indeterminação traçada por norma de cunho eminentemente inquisitorial é elemento de absoluta ilegalidade, sendo hipótese absurda e incompatível com o sistema garantista adotado pela Constituição de 1988. Já defendia pois a professorea pernambucana que os valores constitucionais estatuídos são em franca e linear escala dissonantes com a sistemática processual ainda vigente no CPP brasileiro. Assim em sua obra

Igualmente o item genérico colher qualquer elemento de convicção, técnica comumente usada pelo nosso código para abranger todas as hipóteses possíveis, não pode ser recepcionado pela Constituição ante a indeterminação nele inserta.165

Na esteira do pensamento de Luigi Ferrajoli, que vaticina ser necessário se levar a sério a garantia da presunção de inocência em razão das inúmeras prisões anteriores ao julgamento meritório, sob pena de serem extirpadas todas as demais garantias penais e processuais penais, enfatizamos que o atendimento automático às representações policiais e/ou ministeriais e os argumentos prêt-à-porter de alguns magistrados brasileiros deixam o cidadão

165

TORRES, Anamaria Campos. A busca e apreensão e o devido processo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.132.

completamente nu, como na fábula “O rei está nu” do dinamarquês Hans Christian Andersen, pois ao imaginarmos estar vestidos e garantidos pela imparcialidade, mecanismo de garantia da paridade de armas, somos forçados a reconhecer que a realidade é bem outra. Como no bem articulado trabalho do jurisfilósofo italiano, em cujo escólio nos socorremos, quando faz o confronto entre o princípio jurisdicional, prova e presunção de inocência, a saber:

“Se la giurisdizione è la attività necessaria per raggiungere la prova che un soggetto ha commesso un reato, fino a che tale prova non sia stata raggiunta mediante un regolare giudizio, nessun reato può essere considerato commesso e nessun soggetto può essere ritenuto colpevole né sottoposto a pena. (...) Non l’innocenza, ma la colpa dev’essere dimostrata; ed è la prova della colpa – anziché quella dell’innocenza, dall’inizio presunta – che forma l’oggeto del giudizio” .166

Como se verifica, a culpa se forma em juízo através da prova e não com discurso e retórica de cunho protecionista. O resultado de tais práticas tem sido o absurdo número de encarcerados provisórios, suplantando em muito o de presos definitivos, causando impacto assustador no sistema penitenciário nacional. Por conta disto o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em sessão de 27 de janeiro de 2009, decidiu criar mecanismos de controle sobre este instrumento cautelar segregatório. O Conselho irá controlar o número de prisões e sua extensão de cumprimento, traçando dados estatísticos que possam gerar um melhor estudo acerca de sua utilidade/necessidade. Ainda

como forma de acompanhar estatisticamente tal fenômeno, o próprio Conselho criou mecanismo para mapear o número de presos no país através do sítio na internet www.cnj.jus.br/geopresidios. Tal desiderato não foi objeto de mero capricho do Conselho, mas deveu-se aos alarmantes dados que se divulgaram ao longo das espetaculosas prisões cautelares realizadas em todo o Brasil, em proporções alarmantes.

As prisões temporárias, como cediço, têm espectro substancialmente inquisitório e cumprem a finalidade de assegurar a investigação administrativa policial quando se demonstrar que a custódia do indiciado/suspeito é imprescindível à investigação em determinados crimes (artigo 1.º, III – Lei 7.960/89), configurando-se, assim, o periculum libertatis e o fumus comissi

delicti, respectivamente, necessários à concreção cautelar. Não obstante, sua

incongruência com os cânones do justo processo é manifesta. Como falar em prisão para posterior investigação? Como aferir indícios de autoria e prova de materialidade com a segregação do ainda suspeito? Prender para investigar. A presunção de inocência aqui simplesmente se esgota como mero desejo do legislador constituinte.167A imposição da Lei 7.960/89 para que a prisão seja

decretada por magistrado e devidamente fundamentada – artigo 2º, caput, I –, não lhe retira o caráter abusivo, até porque quem está representando pela medida é a autoridade policial que, com simples argumento de ser a prisão imprescindível, limita a decisão do juiz a um ato de fé, tão só. Este acredita ou não na palavra da autoridade policial, e não repetidas vezes sua credulidade é

167 Não nos referimos aqui ao inciso II do artigo em destaque por entendermos que se trata de artigo absurdamente incongruente com o sistema constitucional vigente em razão de determinar que num país de miseráveis como o nosso, o suspeito precise demonstrar que possua uma residência para permanecer em liberdade ou seja obrigado a se identificar de maneira positiva.

inabalável; daí para ajustar as bitolas e conseguir um decreto “fundamentado” é um passo simples.

A prisão preventiva, por se espraiar além do procedimento inquisitório, requer um burilamento maior na sua concreção. A ideia de subsumir adequadamente os artigos 311 e 312 do atual CPP brasileiro ao caso concreto, encontra, na prática, barreiras eminentemente semânticas, conquanto a maioria dos juízes se utilizam da retórica para driblar os contornos garantísticos da liberdade como regra constitucional, ainda que possuam outras medidas exaradas no artigo 319 do CPP, modificado pela lei 12403 de 4 de maio de 2011. Os pressupostos da prisão, que são o fumus comissi deliciti e

o periculum libertatis, se agregam aos requisitos elencados no artigo 312 do

CPP brasileiro através do alinhavamento de uma das garantias afetadas pela conduta do agente que deve ser o destinatário da prisão. Assim, pode ser objeto de prisão a afetação da ordem pública e/ou econômica, da aplicação da lei penal, e da instrução criminal. Mas qual a reciprocidade reflexa que a medida cautelar proporciona ao acusado para que possa combatê-la?

Aury Lopes Jr., a seu turno, sustenta a inconstitucionalidade da prisão preventiva quando o requisito utilizado repousar na ordem pública, em virtude de esta prisão não ter característica cautelar, mas mera natureza policial de segurança pública. Ressalta, com veemente congruência, que os juízes não podem realizar obra de adivinhação, uma vez que decretam a prisão para que o suposto criminoso, no futuro, não volte a delinquir. Salo de Carvalho, em passo de matizes garantistas, também ressalta que não se pode tratar o sistema acusatório-garantista com elementos que não se possam contrapor às

hipóteses probatórias. Assim, como refutar, com provas, a hipótese de que, no futuro, o acusado/suspeito/indiciado voltará a delinquir? 168

Neste passo, concordamos com a lição de Alexandre Morais da Rosa, quando assevera que qualquer pessoa que conheça um pouco da estrutura linguística pode facilmente construir, de maneira artificial, pseudorrequisitos para o decreto prisional preventivo, e uma vez decidido pela prisão, é quase impossível assestar a verificabilidade dos reais motivos para se aferir a existência dos verdadeiros fundamentos cautelares. Some-se a isso a excessiva demora dos Tribunais Superiores para o julgamento dos habeas

corpus, chegando, muitas vezes, a se estender por quase um ano o tempo

para se declarar a ilegalidade do ato que levou o

acusado/indiciado/denunciado/suspeito ao cárcere, não inibindo, pois, a prática da “invenção” linguística das prisões ilegais.169

Para evitar tais malícias linguísticas a doutrina italiana, representada pelas bem posicionadas palavras de Franco Cordero, exprime que “Le misure

attinenti alla persona presuppongono << gravi indizi>> sul reato de quo, ossia uma probabile condanna, ed effetive esigenze cautelari”. Desta forma, controla-

se com maior rigor a retórica que pressupõe uma lógica dedutiva para evitar antecipações dos efeitos da pena sobre aquele que ocupa, ainda que involuntariamente, a posição de acusado na relação processual penal. A necessidade de graves indícios fomenta maior cautela aos magistrados no

168

LOPES JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2.ed.,2005, p. 203. CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 199.

169

ROSA, Alexandre Morais. Decisão Penal: a Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 139.

invencionismo retórico e no contorcionismo linguístico para os decretos prêt-à-

porter em escala industrial. Mas não os impede, todavia. Acreditamos que

somente com um controle objetivo da imparcialidade, sob o ponto de vista da paridade de armas, é que tais contorcionismos metajurídicos possam ser atenuados, quiçá evitados.170O controle semântico de forma temperada, como

ensina Luigi Ferrajoli, deve ser exercido verificando-se a existência efetiva das condutas que estão entrelaçadas na construção linguística das decisões, para que possa haver correspondência entre o significado das palavras e sua exata denotação/extensão e conotação/intenção. Somente desta forma poderíamos amenizar, ainda com algum nível de desvio de condutas jurisdicionais, a aplicação automática das prisões nas composições processuais penais realizadas por magistrados que sofrem do complexo de Nicholas Marshall.171

Ainda, e ousando complementar o estudo do jurisfilósofo italiano sobre uma visão do justo processo, vinculamos a imparcialidade, já afetada como mecanismo de atuação da paridade de armas, por ser seu elemento de garantia, como condição inalienável da jurisdição de forma subjetiva, avaliando- a dentro do comportamento do magistrado, e não partindo da ideia equivocada de que é uma condição que pressupõe o exercício jurisdicional.

Destarte, podemos asseverar ser a imparcialidade um valor a ser aferido em cada processo e não uma condição jurisdicional de caráter objetivo, burlada facilmente com contorcionismos linguísticos sob um viés retórico, que vêm se afastando e muito da reconstrução histórica do fato dentro da formação da

170

CORDERO, Franco. Procedura Penale. 8.ed. Milano: Giuffrè, 2006, p. 478/479. 171

FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione.Teorial Del garantismo penale.8.ed. Roma: Laterza, 2004.p.94/95.

prova pelas partes − por vezes, e muitas vezes, sendo utilizado como exercício argumentativo de valores abstratos e de matizes genéricas de políticas criminais “funcionalistas”.

Do atuar central e mecênico garantista do juiz na concepção do justo processo trataremos no capítulo final da presente obra.

3.6 O fantoche da proteção social na retórica utilitária do arbítrio

Outline

Documentos relacionados