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CAPÍTULO 2 – A persistência da extraversão na circulação de mercadorias em

2.2 Divisão territorial do trabalho a serviço do mercado externo

2.2.4 Açúcar: a modernização do território

Em um território onde aproximadamente 70% da população vive no meio rural, seria incompleto um quadro da produção voltada à exportação que não levasse em conta algum tipo de produção agrícola ou agroindustrial. Ainda que boa parte desse tipo de produção em Moçambique seja voltada ao abastecimento do mercado interno, em relação ao setor açucareiro, de grande importância conforme mostrado anteriormente nos Gráficos 6 e 7, das cerca de 450 mil toneladas de açúcar produzidas em Moçambique, 200 mil são consumidas no país, enquanto as 250 mil toneladas restantes são exportadas, sobretudo para os países da União Européia (MACAUHUB,

0 20 40 60 80 100 120 140 160 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 Gás Natural (terajoules)

74 08/04/2016). Assim, além do setor açucareiro ser o principal representante agrícola e agroindustrial da circulação extravertida de mercadorias em Moçambique, ele também é responsável por um processo de transformação do campo moçambicano, através do cultivo em larga escala da cana-de-açúcar e da presença de indústrias açucareiras que igualmente modificam a paisagem rural do país.

Setor altamente produtivo no período colonial, após a independência e com a guerra de desestabilização a produção de açúcar declinou vertiginosamente, e apenas com a reabertura comercial moçambicana na década de 1990 o governo voltou a investir no setor. Combinando fortes incentivos estatais, como uma alta taxação das importações de açúcar para impulsionar a produção nacional44, com uma ampla abertura ao capital privado45, o setor açucareiro é visto como um caso de sucesso na reestruturação econômica moçambicana pós-guerra (DIOGO, 2013), empregando atualmente cerca de 35 mil pessoas no país (MACAUHUB, 23/07/2015), o que o torna o maior empregador nacional depois do Estado.

Existem, hoje, 4 grandes açucareiras em Moçambique, em 2 províncias diferentes (Maputo e Sofala), todas administradas por 3 empresas estrangeiras, conforme indicado na Tabela 4. A empresa Tongaat Hulett tem uma participação acionária de 88% na Açúcareira de Xinavane, e de 85% na de Mafambisse (O’LAUGHLIN & IBRAIMO, 2013), enquanto a empresa sul-africana Illovo tem uma participação de 90% na Açucareira de Maragra46. Além de Moçambique, a empresa Tongaat Hulett está presente em Botswana, Namíbia, Suazilândia e Zimbabwe (O’LAUGHLIN & IBRAIMO, 2013), o que só reforça a tese de Castel-Branco (2002) de que o Estado sul-africano incentiva a expansão de corporações nacionais pela região da África Austral para que esta seja absorvida no processo de acumulação de capital na África do Sul.

44 Ainda hoje a taxação das importações é um recurso moçambicano para impulsionar a produção

nacional de açúcar: em 2015, o Ministério da Indústria e Comércio aumentou o preço de referência de importação do açúcar amarelo de 385 para 806 dólares por tonelada, enquanto no caso do açúcar refinado (branco), o aumento foi de 450 para 932 dólares por tonelada. (MACAUHUB, 06/08/2015).

45 Até então a produção era totalmente nacionalizada. 46 De acordo com o sítio eletrônico da empresa.

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Tabela 4: As açucareiras de Moçambique

Açucareira Empresa Origem do Capital Província

Xinavane Tongaat-Hulett África do Sul Maputo

Maragra Illovo África do Sul Maputo

Mafambisse Tongaat-Hulett África do Sul Sofala

Marromeu Sena Holdings Maurícias Sofala

Fonte: O’Laughin & Ibraimo (2013); Castel-Branco (2011)

Em um estudo de caso sobre a açucareira de Xinavane, O’Laughlin & Ibraimo (2013) identificaram assim a estrutura da produção de cana-de-açúcar e açúcar em Moçambique: toda a produção industrial é levada a cabo pela empresa principal (no caso de Xinavane a sul-africana Tongaat Hulett), e mesmo a produção de cana-de- açúcar é em grande parte realizada pela empresa. De qualquer maneira, para a produção de cana-de-açúcar existem pelo menos outras três formas da empresa obter essa matéria- prima: a) o arrendamento de terras para outras empresas produtoras de cana-de-açúcar (como a sul-africana Vamagogo Estates); b) a associação entre pequenos produtores que funcionam como empresas que prestam serviço à Tongaat Hulett; c) a compra da produção de pequenos produtores individuais (O’LAUGHLIN & IBRAIMO, 2013). Nesse sentido, é possível concordar com Castel-Branco (2011), quando define a indústria açucareira moçambicana como “verticalmente integrada e oligopolista”.

A introdução de complexos industriais açucareiros no campo, a presença de capital estrangeiro, a criação de diversos empregos relacionados ao açúcar, e mesmo o desenvolvimento de infraestruturas de transporte necessárias ao escoamento da produção, tudo isso levou a uma transformação estrutural do meio rural moçambicano. Tais processos são destacados por autores como Buur, Tembe & Baloi (2012) ao falar de uma “urbanização do campo” diretamente relacionada ao setor açucareiro. Todavia, deve-se considerar a complexidade da relação rural-urbano no país, conforme adverte Araújo (2002). Dado que boa parte do interesse dessas empresas estrangeiras que se instalam em Moçambique para produzir açúcar é a exportação, é possível reformular a afirmação dos autores anteriormente citados, dizendo que a continuação do processo de extraversão da circulação de mercadorias em Moçambique, desta vez representada pela exportação de açúcar, é responsável pela modernização do território moçambicano, sobretudo no meio rural.

76 2.3 Fluidez territorial e redes técnicas regionais de transporte: os corredores de desenvolvimento

“A circulação, assim como a técnica, seria uma das condições para que qualquer riqueza natural possa ser considerada um recurso”. Uma maneira de tornar mais concreta essa afirmação de Arroyo (2015, p. 40), é dizendo que não basta apenas existir carvão mineral ou gás natural no território moçambicano: para que eles possam ser considerados recursos, é preciso que haja meios para escoá-los. A mesma ideia vale para as indústrias de alumínio e açúcar, ou seja, de nada adiantaria instalar uma fábrica ou cultivar cana-de-açúcar por grandes extensões de terra, se não existisse uma infraestrutura de transportes que possibilitasse levar a produção para seus compradores. Resumindo: para que a produção realizada em Moçambique possa ser exportada, é preciso que seu território reúna boas condições de fluidez, através da existência de um conjunto de sistemas de objetos de ordem técnica (ARROYO, 2015) que assegurem o movimento, como rodovias, ferrovias e portos. É essa fluidez territorial moçambicana, estruturada a partir de redes técnicas de transportes vulgarmente conhecidas no país por “corredores de desenvolvimento”, que constitui o escopo da presente seção.

Antes de tudo, porém, cabe introduzir uma discussão proposta por Santos (1996, p. 247-248) sobre a importância dos transportes no que o autor chamou de “produtividade espacial” em um território. Segundo o autor,

“Os lugares se distinguiriam pela diferente capacidade de oferecer rentabilidade aos investimentos. Essa rentabilidade é maior ou menor, em virtude das condições locais de ordem técnica (equipamentos, infraestrutura, acessibilidade) e organizacional (leis locais, impostos, relações trabalhistas, tradição laboral). [...] Assim como se fala de produtividade de uma máquina, de uma plantação, de uma empresa, podemos, também, falar de

produtividade espacial ou produtividade geográfica, noção que se aplica a

um lugar, mas em função de uma determinada atividade ou conjunto de atividades (p.247-248)”.

Assim, em relação às infraestruturas mencionadas por Santos (1996), os sistemas técnicos de transporte possuem um papel muito importante na conformação dessa produtividade espacial, uma vez que

“as redes técnicas atuais, enquanto sistemas de engenharia modernos e complexos, transmitem valor às atividades que dela se utilizam. Assim, os lugares melhor dotados dessas infraestruturas serão mais disputados entre as empresas que entram no jogo da competitividade (ARROYO, 2015, p. 42)”.

77 Portanto, uma das condições para que a produção de alumínio, carvão, gás natural e açúcar em Moçambique seja rentável, além das isenções fiscais que possuem algumas áreas produtivas no país, é a boa oferta de infraestruturas de transporte ligando essas áreas produtivas ao mercado externo. Isso faz com que algumas regiões do território moçambicano, contempladas com boas condições de fluidez territorial, tenham vantagens comparativas em relação a outras, obtendo assim uma maior produtividade espacial e aumentando a desigualdade territorial interna do país. Nesse sentido, tal situação é totalmente coerente com uma antiga afirmação da Geografia, que desde muito tempo norteia grande parte dos estudos da disciplina, de que “a circulação é uma das bases de diferenciação geográfica (ARROYO & CRUZ, 2015, p. 9)”.

Em Moçambique, onde em 2012 o setor de transportes e comunicações respondeu por cerca de 10% de participação no PIB (conforme indicado no Gráfico 10), essa diferenciação geográfica se dá no território como consequência da histórica estruturação da circulação em três grandes corredores, que desde a assinatura do Protocolo sobre Transportes, Comunicações e Meteorologia da SADC, de 1996, são chamados “corredores de desenvolvimento” (FONSECA, 2003). Esses corredores de desenvolvimento nada mais são que um conjunto de redes técnicas regionais compostas por rodovias, ferrovias, portos e terminais de carga responsáveis por ligar, cada um, uma região de Moçambique ao hinterland: o Corredor de Maputo para a região Sul, o Corredor da Beira para o Centro e o Corredor de Nacala para a região Norte.

Arroyo (2015), porém, chama atenção ao fato de que não apenas a dimensão técnica deve ser levada em conta no entendimento da circulação, mas igualmente a dimensão normativa da circulação é fundamental para compreendê-la. Nesse sentido, para além das redes técnicas que compõem os corredores de desenvolvimento, existem também alguns estabelecimentos normativos, aos moldes do que Arroyo (2001) chamou de “recintos aduaneiros”, que permitem com que a circulação seja realizada de maneira completa. Assim, ampliando um pouco a proposta que dá título a este item, pretende-se incluir na análise que se segue o papel da porosidade territorial em Moçambique na estruturação da circulação de mercadorias voltada ao exterior, através principalmente dos citados recintos aduaneiros, que podem também ser considerados elementos constituintes dos chamados corredores de desenvolvimento.

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Gráfico 10: Atividade Econômica no PIB de Moçambique, 2012 (em %)

Fonte: Comissão Econômica para África da ONU (UNECA)