• Nenhum resultado encontrado

Fonte: Autor (2018)

Novamente a designações citadas nesta sessão, ainda que justifiquem o caráter de baixa ou inexistente produção destas áreas, passam ao largo da própria legislação brasileira no que tange ao Estatuto da Terra e suas previsões para desapropriação de áreas para a Reforma Agrária. Não se tem notícia de que alguma dessas “áreas degradadas” e “sem uso” tenha sido desapropriada após estes zoneamentos para permitir naquela parcela do Estado a reprodução camponesa, garante da produção de alimentos básicos da dieta amazônida. Nos documentos e trabalhos aqui consultados, exceto por Costa (2012), se passa ao largo de discussões mais profundadas sobre a utilidade das áreas degradadas para a economia regional e seus diversos sujeitos e classes, generalizando “não uso” e “subutilização” para áreas semelhantes na fotometria e nos Censos Agropecuários, mas de natureza, uso e destinação que podem ser

bastante diversas. Generalizações a despeito do investimento nos zoneamentos como o MacroZEE e o ZAE-Dendê.

Ao se desconsiderar o potencial de restituição florestal destas áreas, como adverte Costa (2012, p. 209), se desconsideram outras possíveis destinações àquelas áreas, para além do monocultivo em larga escala chancelado como reflorestamento pela Sema-PA, como vimos no segundo capítulo. É sob esta lógica que também podemos observar com o autor a trajetória decrescente da agricultura camponesa centrada no agroextrativismo: entre 1990 e 2006 esta caiu 5% no Nordeste Paraense. E ainda faltam os dados mais recentes do Censo Agropecuário, para termos uma noção mais aproximada dos processos em curso nesta parcela da Amazônia.

O paradoxo é que os zoneamentos citados, ao se utilizarem das noções “terras degradas” ou semelhantes, deixam no mais das vezes escapar a sua própria razão nominal de inovar no trato do ecológico, agroecológico, deixando em segundo plano ou pano de fundo relações sistêmicas entre estas terras e a economia regional, notadamente no seu papel quanto à agricultura camponesa e patronal (para usar os termos de Costa) em suas diferenças. E daí, acabam por defender a monocultura como opção hegemônica para uso dessas áreas no contexto de “esverdeamento do desenvolvimento” em uma região biodiversa como é a Amazônia. Como Shiva (2003, p. 93) escreve, os produtos desejáveis dependem de classe e gênero, e a estes produtos correspondem designações/destinações de meios produtivos para alcança-los.

Os efeitos dessa designação de terras objetivada por classificações estatais se fazem sentir nas comunidades. Que o digam as famílias que tiveram igrejas, casas, sítios e caminhos cercados pelo dendê. Se a proposta dessas classificações, dessas designações e destinações têm realmente o objetivo de fomentar novas formas de conhecimento que pautem o produtivo, devemos ponderar que os cálculos de anos, quantidades produzidas, quantidades de hectare, enfim, o numérico e matemático que sustenta e exprime essas classificações deveria ser problematizado no contexto de que “se se quer mudar um modelo de desenvolvimento, tem-se de mudar o poder que o sustenta” (CASANOVA, 2006, p.18), neste caso o poder de ciências pautadas nas técnicas e exatas (estrito senso) sobrepondo-se à leituras que levem em conta dimensões humanas, sociais e políticas, cosmológicas.

Dever-se-ia dessa maneira recolocar o problema do desenvolvimento econômico no bojo ou no interior da economia política, do qualitativo (política) que deveria sobrepor o quantitativo (economia), já que esta última é produto de relações humanas que vão além dos cálculos. Ora, estas disputas pela terra colocam o problema dos limites da própria terra. Sobre

este aspecto, Murray Li (2014, p. 179) defende que o fim das terras coletivas, além daquelas aptas ao cultivo, demanda um novo conhecimento e uma nova política.

O que Costa (2012) apresenta e interessa a este trabalho vai ae encontro àquela afirmação de Casanova (2006, p.272) de que “máquinas e matemáticas podem ser dominadas pelas organizações sistêmicas e anti-sistêmicas em meio a turbulências e situações distantes do equilíbrio”. Costa procura interpretar desde a economia política o lugar das capoeiras na produção regional, problematizando sua produção, seu papel e assim indicando possibilidades de designação que considerem o complexo em que elas se inserem do ponto vista social e ecológico, relação esta que deveria ser a razão de ser dos zoneamentos (ACSERALD, 2000, p. 12). Como isso nem sempre é considerado, essas situações “distantes do equilíbrio” citadas por Casanova parecem caminhar em progressão no sentido de garantir a concentração e mesmo fomentá-la.

Em meio a essas situações distantes do equilíbrio que marcam o período atual na transição (?) para o desenvolvimento sustentável, uma questão importante é: quando ocorre a erosão das escolhas e se chega a um ponto de compulsão (MURRAY LI, 2014, p. 148), dificultando aspectos da vida nesta parcela da Amazônia em nome do “interesse geral” e do desenvolvimento sustentável? Que escalas agem nesse mesmo sentido para beneficiar esta parcela do ecúmeno? As terras degradas daqui tornadas produtivas implicam uma produção para quem? Para onde? E que terras restam ou vão sendo abertas para a reprodução camponesa? Que esforços de designação e destinação são feitos para aquelas palavras cada vez mais esquecida no léxico dos players estatais e privados, como a reforma agrária e a justiça social? Seriam estas desnecessárias ou contra o desenvolvimento sustentável? São perguntas que vale refletir, ainda que não possa responder a elas todas agora. Por outro lado, é neste agora que se faz o amanhã. Sobre a noção de terras subutilizadas, Murray Li (2014, p. 13) alerta para o fato de que “Notion of wildness are still deployed by contemporany development planners, who see frotier space as ‘underutilized’ resources that shold be put to eficiente and productive use and device schemes to attract corporate investors”. Assim, o aproveitamento dessas áreas parece abrir caminhos para novos investidores subordinando ou solapando as condições de reprodução camponesa: a situação distante do equilíbrio parece ser mais que situação, estrutura, no que tange ao social.

E o papel do Estado na designação e destinação dessas áreas?

El papel del Estado como facilitador de los tratos sobre tierras es, casi siempre, fundamental para el proceso. Esto es evidente en cinco funciones diferentes aunque relacionadas para facilitar los tratos sobre tierras que sólo el Estado puede desempeñar. Todos los Estados están aplicando iniciativas políticas y administrativas sistemáticas en torno al concepto de ―tierras marginales

disponibles‖: (i) creación/justificación; (ii) definición, reclasificación, cuantificación; (iii) identificación; (iv) adquisición/apropiación; y (v) reasignación/utilización de dichas tierras para transformarlas de recursos escasos controlados legalmente por el gobierno nacional en contrapartidas para nuevas inversiones a gran escala en tierras (Borras Jr et al., 2011, p. 8).

É interessante observar que a citação acima vem de um estudo sobre “acaparamiento” de terras, capturas de terras na América Latina e Caribe, o que insere questões de designação de terras num contexto mais amplo de estrutura agrária global e do papel do Estado neste contexto.

No caso deste trabalho, devemos considerar que a Biopalma tem capital estrangeiro em sua composição acionária, além de ser uma empresa ligada à empresa Vale e ter como horizonte se tornar a maior produtora de agrocombustível (óleo de palma?) da América Latina. Sua territorialização no Ramal do Cravo, entretanto, seria questionável sem a chancela dos zoneamentos e financiamentos estatais. Como a própria Vale ao apresentar o papel da Biopalma registra,

Todas as áreas utilizadas no cultivo do dendê são mapeadas e demarcadas pelo Governo Federal como áreas degradadas. Como parte da estratégia da Vale, a Biopalma vai contribuir para a preservação de áreas verdes e a recuperação de áreas deterioradas (VALE, 2012, p. 386).

Assim, as capoeiras em sua função complexa são colocadas sob o guarda-chuva de “áreas deterioradas” na citação acima. E isso permite questionar: a inexatidão no trato dessas áreas é um problema ou uma estratégia? Não seriam essas “aparentes fragilidades e contradições da política amplinada” na verdade “a força de estabilização de um sistema de amarras múltiplas”? (MASCARO, 2017, p. 72-73). Ainda sobre as questões relativas à terra, o paradoxo é que se “a terra na Amazônia não perdeu seu valor de compra. Pelo contrário” (PEREIRA e AFONSO, 2017, p. 185), a valorização da terra – economicamente – e da região – estrategicamente, globalmente – não tem implicado ou se realizado concomitante à valorização dos povos da Amazônia que veem suas vidas sendo degradadas por projetos de aproveitamento da degradação não apenas de áreas, mas da vidas e biodiversidade, como ocorre muitas vezes no caso do agro do dendê.

Em meio a estas áreas degradas – aproveitadas ou reproduzidas? - o campesinato vai pagando o preço da autonomia: estigma e baixo status social (MURRAY LI, 2014, p. 56). Diante das limitações de acesso à terra, a competição transborda da relação entre comunidade e empresa para se instalar no interior da própria comunidade. Se torna cada vez mais lugar- comum as demandas de que as populações do campo que trabalham na agricultura sejam resilientes diante da conjuntura global de crise ambiental e climática (VECCHIONE-

GONÇALVES, 2019, p. 5), resiliência que contrasta com a dureza de medidas estatais e ações orquestradas por elites nos territórios para apropriação de terras e pelos efeitos socioambientais.

Nesse contexto, a valorização da terra, seu “valor de compra”, tem muitas vezes solapado valor de “troca” das gentes e recursos naturais51

. Sobretudo, acentuado depois do início da crise neoliberal de 2008, aparece o valor de uso em seu movimento contraditório de se liberar das amarras legais para realizar mais-valia, desembocando na flexibilização em diversas frentes (com a soldagem ambiental-agrário exemplificada, por exemplo, no CAR), enfeixando para melhor progredir. Justo a isto vai a necessidade de endurecimento da legislação sobre a propriedade, sua garantia, o liberalismo liberado pela regulação (VECCHIONE-GONÇALVES, 2019, p. 5). Como adverte Mascaro, essa garantia da propriedade é a própria razão do Estado: “o aparato estatal é a garantia da mercadoria, da propriedade privada e dos vínculos jurídicos de exploração que jungem o capital e o trabalho”

(MASCARO, 2017, p. 18). É nesse contexto que a regularização fundiária toma a dianteira das discussões e

demandas do “agrário” soldada com a regularização ambiental na quase totalidade das projeções e análises intersetoriais Estado-empresas. Quanto à Reforma Agrária, o memorando circular n. 234/2019/OAN/P/SEDE/INCRA, enviado pelo responsável pela Ouvidoria Agrária Nacional aos Chefes de Divisão e Executores de Unidades Avançadas não é somente

sintomático ou marginal, mas claro como o dia:

51

Aliás, a diferença entre Recursos Naturais e Recursos Humanos muitas vezes se esvai, ainda mais com a ideia- força “capital humano”: tudo passa a ser recurso. Para quê ou para quem, o terreno vai ficando mais nebuloso para o senso comum. E mesmo para muitos acadêmicos.