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Fonte: Caique, 9 anos.

Outrossim, mesmo que a proletarização venha ocorrendo de forma potente, é equivocado lhe dimensionar como processo hegemônico consolidado a ponto de portar “mudanças estruturais que são advindas da lógica do dendê” (CARVALHO, NASCIMENTO, NAHUM, 2014, p. 3937). Ora vejamos os dados referentes ao último censo agropecuário realizado pelo IBGE para o município de Acará:

Tabela 8 – Pessoal ocupado em estabelecimentos agropecuários em Acará

Ora, sabendo-se que os laços de parentesco do trabalho no campo tem ampla relação com o campesinato, como demonstra parte da bibliografia aqui apresentada, havemos de inferir que há uma notória diferença entre o pessoal ocupado com laço de parentesco com o produtor, isto é, familiares, e os sem laço de parentesco, mão-de-obra contratada. Afora isso, é notável também o número de pessoas ocupadas na segunda categoria se correlacionamos com os investimentos feitos na área, no agronegócio do dendê, sob a justificativa de geração de emprego e renda. Há geração de emprego, mas o balanço investimento-retorno social parece indicar sensíveis limitações enquanto se encaminha a primeira década de instalação do “novo” agronegócio do dendê, pós-2008.

Isso porque, como tem sido aqui apresentado, o campesinato que disputa a terra e o futuro no interior das relações com a empresa e o Estado carrega caráter classista, inserido num modo de produção que atravessa as relações sociais. Mas a dimensão de classe é complementada pelo caráter particular de ser amazônida, das memórias e processos que incidem na feitura do território, do trabalho, da relação com a terra. Como observa Konder (2018, p. 142-143), “a luta de classes não desaparece, mas as formas pelas quais ela se realiza vão deixando de ser imediatas e diretas, vão se tornando indiretas, sinuosas”, passando “por conflitos deslocados do campo das contraposições nítidas e explícitas para o campo das manobras hábeis e sutis”.

Sobre essa observação de Konder, aliás, se situa o problema-limite do diálogo entre a concepção de território de Oliveira (1999) e de outros trabalhos aqui trazidos, como o de Castro e Marin (1999) e de Almeida (2006; 2012): se no capítulo 1 se apresentam as razões do diálogo, enfatizando a práxis como comum a estes trabalhos, é de se registrar certos limites (para alguns, “cercos”) teóricos entre concepções ora calcadas no materialismo dialético, ora nas ciências de cunho mais antropológico/cultural e memorial-social. Ora, o diálogo, pelo que tentei apresentar ao longo do trabalho, se deu em razão da própria situação analisada: as necessidades de dar conta das disputas por terra enquanto meio de produção e relações sociais, culturais, artifício da própria análise situacional que abre portas para hibridizações e novas combinações de perspectivas e métodos (PÉREZ e CANNELLA, 2016, p. 11).

Assim, se teoricamente há contradições não desprezíveis entre as “perspectivas e métodos” sobre o território, o tema do trabalho agiu no sentido de borrar estas fronteiras através da práxis da pesquisa e da busca por novos conhecimentos (MURRAY LI, 2014). Se mesmo assim há (e haverá) quem critique tal hibridização, creio não ter sido ela prejudicial ao tema da pesquisa e ser efeito da pedagogia do território enquanto dialético e processual, irredutível a uma chave teórica – o que contradiria a própria dialética em nome de algum leito

de Procusto. Esse diálogo não quer ignorar a contradição, mas assumi-la positivamente no conceito, situando aquele como resultado dos trabalhos de campo.

Enfim, entre estas sutilezas e meandros vai sendo produzido o território, nas disputas por terra e futuro. Essas disputas passam pela mediação ativa do Estado, notadamente em suas políticas de destinação de terras, que passam por classificações, legislações, fomento, etc. Neste sentido, a palavra destinar (derivada de “destino”) é reveladora quanto ao tema em tela: a terra e o futuro em disputa. Um destino contingente, mas não aleatório. A quem e para quê se destinam as terras deveria ser assunto nosso enquanto sociedade, enquanto Amazônia. Ao falar de territórios, diversidade e assimetrias, Murray Li (2014, p. 124) sublinha: as desigualdades econômicas estão relacionadas com a compra e venda de terras.

A questão é: o quanto o agronegócio do dendê, resultado da ação privada com amplo apoio estatal, ao ser implantado, além de compactar o solo, erode as escolhas do campesinato, as possibilidades destes disporem da terra (idem, p. 148). Mais diretamente, no futuro em disputa a partir das terras, o fim das terras é para quem? As disputas por elas se constituem como? O que pode estar se encerrando neste fim?

5 EM BUSCA DO CONCRETO NAS DISPUTAS POR TERRA E FUTURO: À GUISA DA CONCLUSÃO

No chão de São Francisco do Cravo pisam pessoas, projetos, expectativas e se materializam processos. Eles vêm do Cravo de Bujaru, da Alça Viária, de escritórios em Belém, de reuniões de acionistas em algum lugar do globo, da “rational choice” a partir de tendências nas bolsas de valores, do BNDES, das memórias dos primeiros migrantes repassada às novas gerações. Naquele chão se planta mandioca, dendê, ingazeiro, sarnambi, açaí e cupuaçu. Naquele chão estão os pés de peão roxo para espantar mal-olhado. Escalas, elementos, processos e níveis de complexidade que tentei dar conta minimamente ao longo deste trabalho.

Ele foi escrito ao longo de três anos, desde o segundo semestre de 2017. Momentos de escrita prolongada, momentos intensos de produção e revisão. Ele também foi escrito desde o segundo semestre de 2015, quando iniciei nos trabalhos de campo. Porque no chão de São Francisco do Cravo também eu pisei, aprendi, convivi. Foi ali que comecei a entender que as disputas pela terra que ali ocorriam, consonantes a territorialização do agronegócio do dendê, constituíam-se em disputas pelo futuro da comunidade e, por isso, da Amazônia.

O agronegócio do dendê, enquanto projeto de desenvolvimento sustentável movido pela iniciativa privada e pela ação estatal em escalas diversas, muitas vezes continua se caracterizando como que por um pacto de elites para o “dendêsenvolvimento”, quando o futuro dos sujeitos é pautado pelo capital (AQUINO JUNIOR, 2016) e onde há desigual distribuição dos custos e retornos do crescimento (MURRAY LI, 2014, p. 185).

Um dos fortes vetores para a territorialização desse agronegócio vem da noção de terras degradas, operada pelo Estado enquanto argumentação para apropriação das terras, apoiando- se numa suposta “situação de triplo ganho”, isto é, “um cenário em que setor de óleo de palma, proteção ao meio ambiente, assim como desenvolvimento rural sejam igualmente beneficiados”. Entretanto, tal situação tem se realizado mais “intensifica[n]do um fenômeno que há décadas tem tido lugar na região: o controle sobre acesso à e uso da terra através do agronegócio transnacional” (BACKHOUSE, 2013, p. 6). É por isso que, “desprovido de suposições teleológicas e cenários otimistas win-win, o fim das terras é um lugar profundamente perturbador” (MURRAY LI, 2014, p. 173). A comunidade, como esse lugar/território, provocou muitas das questões que tentei aqui abordar. Os limites da abordagem se dão tanto porque a realidade é maior que a teoria, quanto porque a disputa está em curso, talvez agora mesmo enquanto você lê.

O desenvolvimento alvejado pelas inúmeras políticas públicas tem ocorrido em São Francisco do Cravo nas melhorias de condição de trânsito no ramal de acesso à comunidade, na energia elétrica, no assalariamento de pessoas que consomem no comércio local. E, entretanto, esse desenvolvimento vem acompanhado de novas formas de pobreza (idem, p. 8) e de precarização com relação ao passado.

A análise situacional incentiva a analisar mudanças e permanências (CLARKE apud. PÉREZ & CANELLA, 2013, p.2), sendo as mudanças referidas da seguinte forma por um cravense: “dormia aí com essa janela aberta, naquele tempo não tinha energia, agora não, seis horas, seis e meia, é tudo trancado”. Quanto às permanências, as velhas práticas de superexploração do trabalho, de mecanismos de apropriação da terra pautados na ilegalidade, o descaso com a educação da população rural são exemplos. Riqueza e novas formas de pobreza: produção contraditória do território.

A precarização das condições de vida, da bio-diversidade, passa por diversos níveis, dos mais simbólicos até os mais cruentos. Assim está sendo escrita a história do agronegócio do dendê na Amazônia, entre o vermelho da poeira levantada pelo desenvolvimento que

atravessa a comunidade e o vermelho dos que continuam morrendo nas disputas pela terra. e

também no vermelho-roxo-preto do vinho de açaí que se bate para consumir depois do almoço.

Assumindo com Hébette (2004, p. 31) que “a história do povo camponês que deve inspirar a reflexão sobre a ‘questão agrária’”, o convite é analisar o tema a partir dos subalternos, dos pequenos (TORRES, DOBLAS e ALARCON, 2017, p. 6-8), para daí elaborar uma reflexão que contemple e analise os modos pelos quais a constelação de elementos forma uma situação (MURRAY LI, 2014).

A situação, como tentei tratar, é uma especificidade em relação à aspectos conjunturais e estruturais. Por estes últimos, por exemplo, é importante indagar a partir de São Francisco do Cravo como o sistema econômico vigente não só permite como reproduz a concentração de terras que emperra muitas vezes a própria economia, “gerando cadeias viciosas que se supõe-se afetar o desenvolvimento de um modo geral” (PAULINO, 2015, p. 9).

Por outro lado, se a concentração vai em ascendente, emperrando contraditoriamente o desenvolvimento capitalista, o que pode explicar a reprodução aparentemente equilibrada ( a despeito dos massacres e conflitos, considerados “marginais”) da agricultura camponesa no contexto das assimetrias que atravessam a questão agrária? Paulino escreve que

Segundo Ploeg (2008), a tradição fundada no controle sobre o fazer institui um saber orientado para a produção de instrumentos e processos técnicos inovadores, no sentido da eficácia, contrários à padronização própria dos artefatos mercantis. Trata-

se de uma engenhosidade fruto da diversidade que emana da realidade específica a cada unidade de produção o que, segundo o autor, estaria na raiz dos processos de recampenização verificados na Europa e em outras partes do mundo.

No caso brasileiro, tudo isso concorre para um processo de recriação do campesinato eivado de contradições (Oliveira, 2003; Shanin, 2008; Fernandes et al., 2010), porque a despeito das interdições mencionadas, a participação proporcional da família nos trabalhos agrícolas aumentou no intervalo dos dois últimos levantamentos do censo: o segmento passou de 76,9% para 77,3% do conjunto, embora tenham se perdido 979.022 ocupações familiares (PAULINO, 2015, p. 19).

Então, se o campesinato tem enfrentado dessa forma os processos acima descritos, qual o problema? Entendo que seja continuar apostando em uma resiliência solapada por cima (ações estatais e privadas de projetos) e por baixo (encarecimento do solo devido à concentração, sem falar de processos físico-químicos). Uma encruzilhada do presente que vai talhando o futuro que se disputa na e pela terra, enquanto caminhos são facilitados e dificultados.

Retornando ao diálogo com Almeida (2012, p. 67), que desde uma inspiração em D. Bensaid comenta a ocorrência de uma hierarquização dos territórios, acrescentaria que esta hierarquização é sempre uma hierarquização entre sujeitos, manifesta de forma majoritária nas classes. Resumidamente, penso que a hierarquização dos territórios é uma hierarquização das classes que produzem e se reproduzem nas terras-territórios.

A hierarquização pela qual passa São Francisco do Cravo no contexto de desenvolvimento e intensificação (palavra que entendo ser mais reveladora que “avanço” neste caso) das relações capitalistas nos arremete a outro comentário, de C. Walter, para quem “a superação do capitalismo necessita, ao mesmo tempo, a superação da colonialidade que, sempre, o acompanhou” (PORTO-GONÇALVES, 2017, p. 106). A colonialidade, como a história demonstra, é sempre uma relação de alteridades radicalizada na produção e exploração de assimetrias que podem desembocar na subjugação e extermínio. Colonialidade que muda para permanecer, como no caso da criação vertical de Agrovilas.

Neste lastro, o “Estado territorial” assume papel central, posto que é a “forma geográfica de organização do poder desde o século XIV e consagrada pelo Tratado de Westfalia (1648)”, se conformando “enquanto uma hierarquia política e espacial, com a

escalaridade do poder”, como observa Porto-Gonçalves (2015, p. 26 – grifos meus). Aqui,

parece inescapável o argumento de Mascaro (2017) sobre a relação Estado-classe expresso em tantos exemplos, pois a colonização e a subjugação de territórios, sujeitos e natureza não é meramente manifestação do caráter de certos homens (quase sempre são homens, não?), mas objetivam a reprodução de relações que garantam a produção de mais-valia como possibilidade de mais-poder num sistema que permite tal correlação. Nesse interim, aliás, as

parcerias público-privadas (PPP’s) seriam exemplos significativos no sentido macro e conjuntural como respostas à crise climática e combate à pobreza, ganhando contornos na situação estudada no sentido de uma “inclusão social” pautada hegemonicamente pelo econômico e produtivo, pela subordinação.

A relação de alteridades que produz o território é, sobretudo, uma questão de diferenças que concretamente se manifesta o mais das vezes em assimetrias, antagonismos de classe. Ora, se os territórios podem ser entendidos como relação de poder, como produto destas, o poder se distribui e se realiza não somente de diferentes formas (sociais, identitárias, cosmológicas...), mas propriamente como diferentes poderes, com formas e práticas que atravessam e extravasam o poder estatal para se constituir em poderes de quem pode: quem pode ficar, quem pode sair, quem pode continuar, quem pode mandar, quem pode trabalhar na autonomia ou na subordinação, quem pode comprar, quem pode... existir. Poderá Vitor apanhar ainda o açaí no lote, com a certeza de que os corpos hídricos que alimentam a palmeira estão sãos?