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Fonte: Autor (2018)

O que era aparentemente uma alavanca de desenvolvimento, entretanto, logo se demonstrou um engodo tremendo: chegaram mudas de coco, adubo e uma quantidade pequena de dinheiro nas mãos dos cravenses. As mudas vindas da Bahia chegaram já debilitadas e não se adaptaram ao clima tropical e úmido do Vale do Acará, o adubo se resumiu a cascas de cacau, e o pouco dinheiro que chegou até as mãos das famílias, naquelas condições, se converteu em dívidas em torno de vinte mil reais, das quais a maioria perdura até a atualidade.

Além disso, muitas outras associações em diferentes comunidades foram criadas, número que não sabemos ao certo. Moradores relataram que muitas destas eram administradas por vereadores da época e que o financiamento serviu de propaganda política do irmão de um deputado importante ainda hoje na política do estado, reeleito em 2018.

Pelos lotes que andei, principalmente no centro e na beira de São Francisco do Cravo, coqueiros esparsos testemunham aquilo que diziam os moradores: palmeiras de qualidade visivelmente baixa e quase sempre sem cocos. Contudo, se às palmeiras faltou produção, do FNO não faltaram frutos que chamam a atenção.

Em primeiro lugar, houve uma experiência negativa de organização da comunidade feita

por cima e que possivelmente reflete ainda hoje na ideia que se tem sobre a associação de

moradores, que tem pouca ou nenhuma ação efetiva, tendo menos influência na sociabilidade dos locais do que a coordenação da comunidade católica, por exemplo. Esta última tem na Pastoral da Criança uma atuação que já vem de longa data. Quanto ao associativismo, a falta

de ação em nível coletivo do campesinato local pareceu, nas entrevistas, andar paralela às lembranças do FNO (novamente a memória e território), a partir da identificação de alguns camponeses que tiveram acesso ao financiamento.

Nas decisões econômicas, pelo mesmo lado, podemos observar a imagem que se tem dos bancos por parte do campesinato: insegurança que se lhes apresentam os financiamentos e empréstimos. Nenhum dos entrevistados relatou estar pagando empréstimo (exceto os endividados no caso FNO) e muito menos ter obtido algum financiamento para incremento na produção. Evidentemente, isto tem relação com o acesso às instituições bancárias (na sede de Acará só encontramos um Banco do Brasil onde, após tantos assaltos, nem o saque de dinheiro é possível nos caixas-eletrônicos) e o nível de formalidade necessário para atender aos critérios de acesso.

Contudo, essa relação negativa com os bancos se relaciona também com a experiência de financiamento e dívida com que ainda hoje estão envolvidas famílias camponesas. A maioria dos financiamentos foi realizada em nome de homens, que anualmente vão renegociando-os e, entretanto, não há no horizonte a perspectiva de saldá-los, dado o volume das quantias necessárias para quitação das dívidas com o BASA.

Mas a experiência negativa pode ter tido impacto no fato de o campesinato prezar ainda mais pela propriedade da terra e pela manutenção do seu modo de vida, posto que estes foram colocados em xeque no contexto dos financiamentos. Se nem todos tiveram acesso ao FNO e algumas famílias estão endividadas até hoje, a experiência que se partilhou nas conversas entre moradores parece ter uma influência nada pontual, já que mesmo endividadas, muitas famílias optaram por permanecer trabalhando nos lotes e não vendê-los.

Quanto ao nível associativo e de resistência organizada, além das observações acerca da experiência do FNO, são interessantes as notas de J. Hébette que abrangem uma escala mais ampla:

O Nordeste do Pará, que compreende as microrregiões Bragantina, Guajarina e Salgado – onde, no final do século XIX, se formara o primeiro e mais significativo campesinato da Amazônia – foi um dos mais trabalhados pelas forças políticas conservadoras do Estado. Foi lá também que a Igreja católica melhor se estruturou, ganhando grande influência, mas sob uma hierarquia e um clero até hoje muito conservadores. Os sindicatos de trabalhadores rurais entraram no Pará a partir dessa vertente do MEB [Movimento de Educação de Base] e das Escolas Radiofônicas e o sucesso da colonização em fixar gerações de camponeses ao abrigo do latifúndio, não lhes proporcionou as mesmas condições de combatividade verificadas nas regiões novas. (HÉBETTE, 2004, p. 37)

A resistência organizada em S. Francisco do Cravo, assim, carrega como refluxo estes dois processos históricos distintos: 1) O trabalho em nível macro por parte de “forças políticas

conservadoras do Estado” que aponta Hébette e que pode arremeter à titulação da terra pelo INCRA sem conflitos, assim como a autorização inicial de ocupação da área por parte da administração municipal e; 2) A experiência do FNO, que trouxe particularidades como a organização de associações desde cima com vistas à obtenção de financiamento e propaganda de certos grupos políticos, apadrinhando recursos estatais, naquilo que a sociologia e história brasileiras consagraram no séc. XX sob a designação “patrimonialismo”.

2.8 A geografia da empresa Biopalma a partir dos sujeitos

Em 2011 a Biopalma, ainda com domínio acionário do Consórcio Brasileiro de Óleo de Palma (CBOP), intensificou a preparação da terra para os plantios. Alguns detalhes da empresa estão reproduzidos abaixo:

A Biopalma, ou Biovale, como é conhecida pela população de Acará e da região do Tocantis, chama-se Biopalma da Amazônia S.A. Reflorestamento, Indústria e Comércio. É uma companhia de capital fechado, tendo por atividades principais o cultivo da palma de óleo e outras espécies vegetais e a extração, beneficiamento e comercialização de seus óleos. A sede da companhia está localizada no município de Belém-Pará (Av Alcindo Cacela, 1264 – Andar 13 – Umarizal). No Pará estão localizadas suas principais operações. A Biopalma é controlada pela Vale S.A. (“Vale”).

Sua trajetória inicia em 1º de maio de 2000, quando foi constituído o Consórcio Brasileiro de Produção de Óleo de Palma (CBOP), tendo a Companhia, como consorciada, a participação de 59%, e sendo nominada líder do Consórcio. A Companhia contribuiu com ativos e passivos para o consórcio, substancialmente representados por terras e cultura agrícola em formação. A outra consorciada era a Vale S.A., com 41% de participação, também contribuindo com seus ativos e passivos para o consórcio, substancialmente representados por cultura agrícola em formação e recursos em caixa (IOE, 2013:5).

No mesmo ano, já era considerável a repercussão na imprensa. As dimensões do projeto chamavam a atenção nacionalmente, como se vê em matéria do portal Terra (GASPAR, 2009), na aba “ciência e sustentabilidade”: “Projeto do Consórcio Brasileiro de Produção de Óleo de Palma - Vale/Biopalma prevê o plantio de 12,5 mil hectares da oleaginosa no centro-oeste do Pará em janeiro de 2011. Para tanto, a organização acaba de adquirir mais de 2 milhões de sementes pré-germinadas. A proposta do consórcio, que será o maior produtor de óleo palma das Américas, é a de ter 9,3 milhões de mudas plantadas em uma área de 60 mil hectares até 2013”. Quase três anos depois, em 28 de janeiro de 2011, a Vale S.A. adquiriu o controle acionário da Companhia, por 173US$ milhões (MÔNICA CIARELLI, 2011). Em 2012, a Biovale produziu 73 mil toneladas de Cacho de Fruto Fresco (CFF), produto agrícola extraído do Ativo biológico - termo usado por técnicos e imprensa especializada - iniciando suas operações de comercialização do mesmo ano, em maio, com produção de 14 mil toneladas de óleo de palma em bruto (DOE, 2/08/2013, p.1). (AQUINO JUNIOR, 2016, pp. 27-28)

Segundo o levantamento de Silva, Magalhães e Farias (2016), as terras apropriadas pela Biopalma são da ordem de 240 mil hectares, segundo registro no SIMLAM. Esta quantidade destoa da apresentada na literatura, o que será retomado no capítulo 2. Chamo a atenção,

destarte, para como esse desencontro de informações pode ser menos equívoco do que a própria dinâmica acelerada de apropriação de terras pelo agronegócio do dendê.

Tabela 1 - Concentração de Terras no Vale do Acará, com destaque para a Biopalma.

Fonte: Silva, Magalhães e Farias (2016), sem grifos no original.

Após a aquisição das terras de fazendas – lembrando que segundo informações de campo fazendeiros agiram como “atravessadores de terras” -, iniciou-se o piquetamento das áreas através de uma empresa terceirizada. Antes disso já havia sido realizado o aplainamento e limpeza das terras, desnudando-as do capim e possivelmente de vegetação secundária e capoeiras, que ainda podem ser vistas em fazendas da área que não foram convertidas em monocultivo de dendê. Este preparo da terra, chamado de “gradeamento”, foi realizado por tratores e trabalhadores que foram marcando os lugares das covas para os pés de palma, na metragem indicada pelos técnicos agrícolas da empresa.

Nessa fase, segundo um morador do Ramal que trabalhou em uma das terceirizadas, a passagem do ônibus para os campos da Biopalma era por volta das três horas da manhã e o retorno para casa se dava no início da noite, por volta das 18 horas. Devido à extensão e distâncias entre áreas em Acará, Tomé-Açú e Bujaru, a contratação de pessoal foi “harmônica” com o regime de trabalho: ambos marcados pela intensidade.

Com as covas demarcadas, iniciou-se a fase do plantio. Num primeiro momento, o plantio era feito em duplas: um trabalhador cavava a terra com enxadeco enquanto outro seguia depositando as mudas. A cada cova ou planta o trabalhador recebia 35 centavos (R$ 0,35). Após um tempo, esses dois trabalhos passaram a serem acumulados por um trabalhador, recebendo 70 centavos por cada cova e muda plantada, acelerando o processo de plantio nas áreas.

Cornélio, que foi um dos trabalhadores dessa empreita, calcula que entre a fase do piqueteamento e do plantio passou cerca de um ano. Ele foi um dos poucos trabalhadores residentes em São Francisco do Cravo que migrou para a Biopalma quando foram

dispensaram os peões das terceirizadas. Segundo sele, seu “fichamento” (assinatura de carteira) na empresa foi por conta de que “a gente tinha equipe que dava sangue”.

Segundo outro entrevistado que trabalhou e chegou a ser contratado diretamente pela Biopalma, não era bem assim: a avaliação de cada trabalhador era realizada por fiscais que nem sempre consideravam o desempenho produtivo. O morador da extensão do Ramal chamada Monte Carmelo contou que sua demissão ocorreu logo após retornar de férias, em razão de ter ficado “marcado” pelo fiscal de sua área após reprovar seu modo de dirigir críticas a um trabalhador, humilhando-o. O demitido teria no momento reclamado do tom e das palavras dirigidas pelo fiscal ao colega peão.

Antes de ser demitido, esse trabalhador executou tarefas pós-plantio, adubagem, coroa (limpeza da área ao redor da palma medida pelas extremidades dos ramos), rebaixamento e poda, tendo se dedicado efetivamente e executado com primor as tarefas. Ele lembrou ainda que uma equipe específica ficou responsável pelos “tratos culturais” (nome dado àquelas funções) das mudas de dendê que vieram da Malásia para testes de adaptação e produtividade. Afora estas espécies asiáticas, os plantios foram divididos basicamente em dois grupos:

virense, de coloração mais clara, e nigrense28, com tons mais escuros.

As colheitas iniciaram em 2014, a produção sendo ainda bastante reduzida, segundo Cornélio. Em 2015, ele ascendeu de função e passou a trabalhar na área de logística. Inicialmente, ele outros colegas mudaram de função na prática, mas no papel permaneceram como trabalhadores da agrícola. Somente após pressionarem a empresa sua função na carteira de trabalho foi alterada conforme os novos cargos.

Ainda que a área de logística tenha equipes ligadas diretamente à Biopalma, boa parte da circulação que entra e sai da indústria é terceirizada: nos 3 principais pólos de plantio, Tomé-Açú, Concórdia e Vera Cruz, operam as empresas Rodonorte e Conan, esta última responsável pela maioria das balsas e com sede no próprio município.

Cada equipe confere, documenta e libera de 40 a 60 contêineres por dia, num volume que varia entre 600 e 900 toneladas de cachos de fruto fresco (CFF). Cada container, que carrega 15 toneladas, pode custar entre R$ 1.800,00 e R$ 3.000,00. Entrementes, segundo o pessoal da indústria o desperdício pode chegar a 1/5 da produção. Mesmo com as perdas, a comercialização tem rendido lucros para os acionistas - ainda que se some às perdas de produção o contexto de retração da economia brasileira nos últimos anos. O acelerado fluxo dos caminhões-tanque com óleo de palma é um indício disso também. Em horários de pico

28 Os termos foram empregados por um dos funcionários que trabalhou da época das terceirizadas até o contrato

(final da manhã e tarde), algumas vezes a poeira nem “senta” entre um caminhão e outro, permanecendo muito material em suspensão no Ramal do Cravo.