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3.5 “S AÍ DAQUELE ABORTO PARA UMA GRAVIDEZ SEM NENHUMA ORIENTAÇÃO ”

Numa convergência direta com os companheiros e as gravidezes, uma categoria que emergiu da leitura das estórias foi a relação entre as duas anteriores e a ausência ou presença de educação sexual antes e depois da gravidez interrompida. O segredo, conforme apontamos antes, muitas vezes começa já na própria existência de uma vida sexual ativa, especialmente na adolescência e em famílias descritas como religiosas e/ou conservadoras.

“Eu namorava com ele sem minha mãe saber, imagine se ela sonhasse que eu fazia sexo”, diz a História 2. “Como minha mãe não iria aceitar jamais que eu tivesse relações sexuais, tive que ir com uma vizinha na ginecologista e comecei a tomar a pílula, que guardava a sete chaves, pois se me pegassem, e depois me pegaram mesmo, eu iria apanhar muito. E eu apanhei mesmo”, lembra a História 3. “Não tive orientação sexual em casa. Minha mãe casou virgem, aos 24 anos. Também engravidou na primeira relação”, relata a História 11. “Não falava de sexo com minha mãe, nunca ouvi ninguém me dizer ‘vá no médico, use camisinha, tome anticoncepcional’”, explica a História 23.

Queremos aqui identificar a hipótese desta constante no que diz respeito à ausência de informações sobre sexo seguro estar relacionada a uma estrutura social que espera das mulheres o não exercício da sexualidade. A História 9 consegue expressar isso de forma mais explícita: “Fui criada em uma casa evangélica, onde todos queriam que eu fosse uma santa, e não um ser humano”. A ideia de santidade se relaciona diretamente com a pureza, a castidade e a obediência,

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conceitos que usualmente não fazem parte da construção social da atividade sexual e, especialmente, do papel das mulheres no sexo.

Uma fala que confirma esta tese é a da História 3, conforme descrito logo acima. A jovem procurou se informar e cuidar da saúde sexual e reprodutiva por meios externos à família, uma vez que esta não aceitava o exercício da sexualidade; assim, pediu ajuda à vizinha e inclusive foi ao médico e começou a tomar a pílula, até que a mãe descobriu e a castigou. A presença do remédio confirmou que a adolescente estava a fazer algo que supostamente não devia: não é o uso da pílula ou a busca por cuidados, mas a prática sexual da adolescente que está a ser punida. Outro lado deste novelo de questões relacionadas à educação sexual e o consequente acesso ao sexo seguro é a postura dos homens em relação ao uso de métodos contracetivos. Nas narrativas, encontramos em relação à atividade sexual as mesmas atitudes de auto- desresponsabilização que mencionamos no tópico anterior: “Pedi para ele levar camisinha. Na cama, ele avisou que camisinha atrapalhava e que ele sabia controlar o gozo. Aliás, ao longo dos meus 28 anos de vida sexual, quase todos os homens com quem transei relutaram muito a botar a uma camisinha”38; “O anticoncepcional me fazia mal e ele não aceitava fazer uma vasectomia. Foi aí que engravidei, ele [o marido] havia concordado em controlar a ejaculação, mas não fez. Quando o pressionei, ele só disse ‘quem tem que se cuidar é a mulher, não é o homem’ (...) Você pode me ouvir e perguntar; por que não operou antes? Porque acreditei que ele faria a vasectomia. Porque depois do terceiro parto, o médico não aceitou fazer minha ligadura porque ele foi contra a operação. Ele dizia que eu ficaria gorda como uma porca capada. Sem ele saber, eu fiz a laqueadura escondida”39.

Identificamos, portanto, diversas marcações discursivas que indicam comportamentos masculinos de ausência de cuidados em relação à prevenção da gravidez que são resguardados por uma estrutura social de poder patriarcal: (i) a prioridade para o próprio prazer em vez de prevenir uma possível gravidez; (ii) a quebra de acordos durante o sexo; (iii) a ideia da mulher como única responsável pela contracepção; (iv) o impedimento de aceder à contracepção, numa situação que o médico opta por atender ao que o marido decide sobre o corpo da esposa e não o desejo da própria, com base num argumento relacionado a um ideal de beleza e não à saúde.

Além disto, podemos observar também o exercício do poder através do impedimento, por parte do homem, de que a mulher usasse métodos contraceptivos em relacionamentos descritos com marcas discursivas relacionadas ao abuso. A mulher da História 39 conta que usava a pílula

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até que o namorado a obrigou a parar: “Era um relacionamento abusivo, abusivo mesmo, ele me batia, nós tínhamos brigas violentas e ele desconfiava de tudo e de todo o mundo. Ele me mandou parar de tomar o anticoncepcional, eu podia traí-lo quando ele não estivesse ao meu lado”.

Finalmente, precisamos fazer uma última nota: ainda quando usados do jeito correto, todos os métodos contraceptivos, mesmo os considerados mais seguros, são passíveis de falhas. A ideia de que, se tomar os cuidados necessários, é impossível engravidar num momento indesejado não se confirma quando avançamos sobre a realidade. Podemos usar, como síntese, a História 35, que a mulher relata ter feito quatro abortos: “Camisinhas estouram, os caras não aceitam, a gente esquece o comprimido, ou ele falha. Não é azar ou mentira, essa é a vida real”.

Na tentativa de perceber as complexidades que envolvem as vidas vividas, é muito difícil estabelecer relações diretas de causa e consequência quando tratamos de fenómenos sociais. Entretanto, podemos refletir sobre como este somatório onde encontramos (i) a ausência de uma educação sexual que permita às mulheres terem conhecimentos que as deixem menos vulneráveis, inclusive a relacionamentos violentos; (ii) as expectativas de comportamento sexual pautadas no não exercício da sexualidade; e (iii) estruturas de poder que autorizam os homens a se desresponsabilizarem de todos os aspetos da reprodução, da contraceção ao cuidado, criam um contexto propício para gravidezes indesejadas e, consequentemente, para a possível realização de abortos clandestinos.

3.6. “EU SOU UMA MULHER PRIVILEGIADA.NÃO MORRI, EU TIVE DINHEIRO PARA IR NUMA