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3.4 “S EMPRE DEI AZAR COM OS HOMENS ”

“Eu fiz 4 abortos no Brasil, todos clandestinos. Todos foram de humilhação, sofrimento e solidão. Sem companheiro, como estou agora. (...) Camisinhas estouram, os caras não aceitam, a gente esquece o comprimido, ou ele falha. Não é azar ou mentira, essa é a vida real. Eu fiz 4 abortos e

34 IBGE, 2017, citado no primeiro capítulo deste trabalho. 35 História 17

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nenhum deles eu fui de mãos dadas com meus companheiros. Sempre fui sozinha, eles são covardes, mentirosos, machistas”36.

Existe uma exceção no segredo que circunda a prática do aborto: os companheiros. Eles sempre sabem. Embora muito se fale do aborto como uma escolha da mulher sobre o próprio corpo, as histórias analisadas mostram que os homens usualmente têm um papel determinante no processo de decisão, por presença ou ausência, e em prover meios materiais para que o aborto aconteça, seja pela aquisição dos remédios ou o dinheiro para pagar a clínica. Neste sentido, ainda que reconheçamos a diversidade da categoria “homem”, construímos esta análise a partir da postura em relação às mulheres, conforme relatada por elas, na situação da gravidez indesejada.

Uma marca discursiva recorrente nas narrativas é a auto-desresponsabilização dos homens em relação à gravidez e à hipótese de tornarem-se pais, com conivência e até mesmo apoio da família e da sociedade. Muitas vezes, isto acontece na forma do abandono da mulher grávida: “Fomos juntos fazer o exame de sangue, e enquanto eu chorava por tudo, mas principalmente porque minha mãe me expulsaria de casa, ele só dizia que não ia ter este filho. (...) Depois do exame, o meu ex-namorado desapareceu”, relata a História 2. “Ele consultou a mãe dele, pediu ajuda e ela me deu os remédios. Ela já tinha ajudado outras namoradas dele. Eu namorava escondido dos meus pais, eu sabia que meus pais seriam contra. Ele chegou com os remédios e disse com naturalidade, ‘Minhas namoradas todas abortaram. Não é agora que vou ter um filho’. Ali eu tive certeza que eu, por vontade própria, também não teria”, lembra a História 11. A História 13, por sua vez, conta que “ele já tinha um filho, era um pai ausente. Nem precisei me explicar muito, ele já foi gritando: ‘você vai tirar. Ou quer você também ter um filho sem pai? (...) Sabe, eu até acho que essa seria minha decisão também, mas foi antes dele que minha. Ele sumiu, não me ajudou em nada”.

Outra faceta deste postulado é a expressa na História 15, que o então companheiro sequer reconhece a paternidade: “Era uma gravidez de um namorado que havia terminado comigo há um mês. Ele tinha outra namorada ao mesmo tempo, uma ex dele. Quando eu me descobri grávida, eu já sabia o que ele ia me dizer – ‘de quem?’. Pedi para uma amiga ir até ele, e foi isso mesmo que ele disse. Me vi sozinha. Com dois filhos, meu ex-marido, e grávida de um namorado que duvidava de mim”.

Ainda neste sentido, existe a desresponsabilização masculina em relação aos cuidados com as crianças, conforme relatamos no ponto anterior. Esta não acontece na gravidez, mas na sequência do nascimento, na desigualdade da divisão dos trabalhos domésticos. Ainda quando

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atuam como um casal e a família já tinha optado por ter filhos, sendo o caso aborto subsequente a outras gravidezes levadas a termo, a estrutura se replica.

Além disto, existem outras consequências relacionadas à gravidez que são sofridas apenas pela pessoa que gesta, nomeadamente uma série de alterações no corpo, limitações e eventuais questões de saúde física e mental posteriores que fazem parte deste processo. Podemos citar o caso da História 32: “Eu tinha uma filha bebezinha, não poderia ter outra. Engravidei em meio a uma depressão sofrida do pós-parto. Nem poderia cogitar ter aquele filho”. A idealização e a visão romântica da gravidez e da maternidade, a partir da atribuição de uma série de significados positivos, e mesmo dos relacionamentos afetivos, estão, na verdade, muito distantes da realidade cotidiana.

O segundo papel desempenhado pelos homens é o de garantir materialmente que o aborto aconteça. São eles, na maior parte das vezes, que conseguem o dinheiro para pagar os remédios, compram os remédios, pagam por procedimentos em clínicas clandestinas. Entretanto, os discursos não trazem indicações que isto possa representar uma divisão de responsabilidades em relação à gravidez da qual eles também são protagonistas. Nas ocasiões que o é, o apoio do companheiro não é apenas material, como mostra a História 25: “Meu namorado da época vendeu o celular para comprar os 4 comprimidos. (...) Nós fizemos isso juntos. Eu fui para a casa dele, até porque minha mãe não poderia saber. Ele me apoiou muito. Me apoiaria se eu tivesse querido manter a gestação, mas me respeitou e cuidou de mim na decisão”.

Noutras vezes, todavia, a presença do parceiro no momento do aborto acontece para ter certeza de que a vontade dele de não ter o filho será efetivada. Este indicativo aparece na descrição da sequência de ações em relação ao procedimento abortivo quando não aconteceu abandono prévio: “O meu namorado deu um jeito de arrumar dinheiro para pagar o médico que fez o aborto e fomos na consulta com o dinheiro na mão, caso tivesse que pagar adiantado. Quando chegamos, ele me deixou na porta do prédio e falou que era melhor eu ir sozinha. Eu era muito boba e estava com tanto medo, que peguei o elevador sem ele”, lembra a História 3.

O caso da História 36 pode ser realçado devido aos múltiplos cruzamentos que se ligam a este tema. Antes mesmo de ter a primeira relação sexual, o jovem já tinha perguntando à adolescente se ela faria um aborto. Com a confirmação da gravidez, “ele disse ‘eu não posso assumir, eu não vou assumir, eu não tenho condições e você vai abortar’. Eu diria que não foi uma escolha naquele momento, foi uma ordem. Eu não tinha o apoio dele e nem da sociedade ao meu redor, para dizer que eu ia ser uma mãe solteira numa cidade do interior, aos 16 anos e sem pai. Ele ainda me dizia, como para me ameaçar, que a minha mãe e o meu irmão iam-me abandonar, iam-me botar para fora de casa, ou seja, eu não ia ter ninguém, só o julgamento”. Na

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sequência, a mulher lembra que após algumas tentativas com chás e outros remédios, o então namorado conseguiu o Citotec e “marcou dia e horário para eu estar com ele para fazer o aborto (...) Eu fui para casa dele, tomei os medicamentos, e ele ficou ao meu lado assistindo todo o processo do abortamento”.

A estória citada acima pode ser usada também como exemplo para relacionamentos afetivos nos quais existe uma relação de poder muito desigual, o que autoriza uma das partes a tomar decisões baseadas nas suas prioridades sem levar em conta as vontades e sentimentos da outra, mesmo quando a interferência direta é sobre esta. Outras formas de relacionamentos abusivos também são identificadas ao longo dos relatos, desde aqueles que envolvem inclusive violência física até aqueles onde existe exclusivamente a violência psicológica. Na História 39, inclusive, é o relacionamento abusivo que faz com que a mulher decida por interromper a gravidez pela segunda vez: “Um dia, eu já não tomava mais a pílula, eu sabia que estava fértil. Eu já não queria mais me relacionar com ele. Ele me ameaçou surrar e me obrigou a ter sexo com ele, foi aí que eu engravidei novamente dele. Eu tinha 18 anos, eu sabia que aquilo não tinha futuro, por tudo o que eu já tinha vivido e pelo o que eu estava vivendo com esse homem violento. (...) Eu não queria um homem como aquele sendo pai do meu filho. Nós terminamos e ele nunca soube desse meu segundo aborto”.

No entanto, de forma a não generalizar, façamos uma nota sobre a História 19; até o momento do relato para a Campanha, a mulher afirma continuar com o mesmo companheiro de quem fez dois abortos. Ela relata que não recebeu nenhuma ajuda do então namorado no primeiro aborto e sequer o menciona na descrição do segundo. Entretanto, afirma: “Você pode estranhar isso, mas entre trancos e barrancos a gente resolveu encarar esses erros”. Quando constrói sua narrativa, temos o aspecto reflexivo do discurso como prática social (Chouliaraki e Faircloguh, 1999): ela analisa sobre as situações anteriores e as identifica como erros assumidos pelo casal, num indicativo de que estão a tentar construir uma relação afetiva baseada no companheirismo e na divisão de responsabilidades.

Reconhecemos que tentamos tratar de uma esfera muito íntima: os relacionamentos afetivos e a forma como eles intervêm em outras decisões, nomeadamente a decisão pela interrupção da gravidez. O “azar com homens” que nomeia este tópico não foi escolhido ao acaso, pois as posturas masculinas relatadas não se constituem numa questão de sorte ou azar relacionadas à personalidade ou caráter de cada ser humano específico. Ao contrário, traduzem uma estrutura de poder patriarcal com consequentes relações de privilégio e exclusão, também atravessadas por outros eixos de desigualdades. Estas se replicam em relações de poder na esfera íntima, materializadas nestes casos em tentativas de influenciar a decisão a partir do não querer assumir

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o filho até a ordem explícita para o aborto aconteça, a violência física e psicológica e mesmo a não partilha das tarefas sobre o lar e as crianças.

Padrões sociais nesse mesmo sentido são identificados também no abandono paterno desde a descoberta da gravidez e na responsabilização dos homens por garantir meios materiais para o aborto. Temos, assim, uma réplica daquilo que está estabelecido como papéis sociais e comportamentos de género aceitáveis e esperados. Estas desigualdades são apontadas muitas vezes e de formas diferentes a depender dos outros elementos estruturais que atravessam a experiência de quem narra. Entretanto, para finalizar este tópico, podemos citar este relato da História 39 como exemplo das contradições e desigualdades que envolvem as relações de género: “Fui eu que falei para ele a primeira vez sobre aborto, ele logo me chamou de vagabunda, disse que não, ao mesmo tempo em que dizia que não queria ter aquele filho comigo”.