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3.2 “E STÁ DIFÍCIL FALAR , MAS QUERO JÁ DEIXAR UM ALERTA : EU QUERO E PRECISO SER OUVIDA ”

Começamos pelo facto que faz esta análise poder existir: a realização da Campanha #EuVouContar. Construída através das respostas das mulheres a um convite para que relatem suas experiências de aborto clandestino, o projeto culmina na publicação destas mesmas estórias numa plataforma pública. Tratamos, portanto, como primeira categoria, da ruptura dos silêncios individuais, num processo que faz com que as narrativas se constituam num discurso de luta que rompe também silêncio coletivo sobre a questão.

As marcas discursivas sobre silêncio, segredo e a necessidade de encerrá-los são recorrentes e diversas: existem as mulheres que dizem nunca terem contado suas histórias a ninguém e que fizeram tudo escondido; as que contaram e foram punidas por ter engravidado e/ou feito o aborto; as que já começam seus segredos antes, desde o relacionamento – namoram e/ou têm relações sexuais escondidas da família; as que foram descobertas através de complicações e precisaram pedir ajuda à família; as que contaram para amigas ou outras mulheres à procura de ajuda.

Se não existe unanimidade na relação com o silêncio e o segredo e eles cumprem diferentes papéis nas estórias, existe, por outro lado, um certo consenso sobre a possibilidade de rompê-lo, que é realçada e valorizada: “Eu nunca me senti à vontade para falar a respeito. Nem na terapia. A minha memória falha, a garganta chega a doer só de pensar no assunto. (...) Foram 20 anos em silêncio (...) Eu não me arrependo, mas o silêncio me oprime, por isso resolvi contar minha história”20; “É bom ter alguém para conversar sobre isso. Sabe, é estranho não poder contar (...)

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Eu preciso dividir esse sentimento de silêncio que guardo em mim”21; “(...) como milhares e milhares de mulheres, essas histórias estavam guardadas no fundo do armário da alma. Elas esperavam uma chance para vir à tona”22.

Uma ideia que perpassa diversas narrativas é que o não contar, associado ao medo da lei formal ou do julgamento e das punições informais de conhecidos e familiares, é parte da penalização por ter feito algo considerado errado no regime de verdade estabelecido. “Não contei isso a ninguém, era uma autopunição por ter matado. Você acredita nisso? Eu assimilei a lição”, reflete a História 38. “Eu não podia me abrir com ninguém. Como poderia contar a alguém que sou uma criminosa? Eu não queria ser presa, eu tentei até falar antes de hoje, foram umas duas ou três vezes, mas os olhares de condenação, os olhares de reprovação, me fizeram recuar e não mais contar essa história”, explica a História 36.

Noutro sentido, a ruptura deste segredo, seja com familiares em busca de apoio emocional ou com médicos a partir de complicações decorrentes do procedimento, poucas vezes foi sinônimo de acolhida ou cuidado: “Depois do procedimento, precisava de cuidado, precisava contar a verdade para minha família. Falei para minha mãe que foi supermoralista comigo, minha irmã havia acabado de ter um bebê”23; “Eu tive infecção e tive que contar para minha família. Claro que todos me julgavam, e ouvi coisas horríveis dos médicos”24; “Eu gritava de dor, os médicos e enfermeiras eram muito rudes comigo. Eles sabiam que eu tinha provocado um aborto”25.

O silêncio, assim, é sustentado por uma dupla estrutura. Por um lado, a ausência de partilha sobre o que está a acontecer impede qualquer possibilidade de acolhimento das famílias e amigos num momento difícil; além disto, no desconhecimento, os profissionais de saúde ficam impedidos de oferecer orientações adequadas e necessárias. Por outro, o segredo muitas vezes se configura como uma estratégia de autoproteção para evitar as diversas formas de violência e punição que têm origem inclusive nestes supostos lugares de cuidado.

O discurso sobre a partilha de histórias, por sua vez, é explicitamente identificado como uma forma de apoio e cuidado coletivo. Alguns relatos, como o da História 4, mostram que conhecer as vivências de outras mulheres que fizeram aborto foi importante para o próprio processo de perceber e se resolver emocionalmente com o vivido. Neste caso, a escola atuava como a principal 21 História 6

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agente de punição, obrigando a adolescente a repetir o ano letivo e, de alguma forma que é explicada, todos ficaram sabendo que ela tinha feito um aborto voluntário. A narradora conta que estava a viver um ano difícil, “uma verdadeira humilhação”, e esses sentimentos mudaram a partir do conhecimento de outras histórias: “Eu tenho uma lembrança vívida de um colega me tirando do fundo do poço. Um dia ele me trouxe uma revista que na capa tinha várias mulheres famosas que tinham passado por essa experiência [do aborto]. Ele não disse nada, ou eu não me lembro de ele ter falado. Me ficou um sentimento de apoio pela independência ao ver aquelas mulheres junto comigo”.

Na mesma perspectiva, a História 33 traz a relevância de saber e compreender outras experiências para entender e ressignificar a própria: “Recentemente, li um livro de histórias de aborto: daí entendi que fui uma bela mãe naquele momento pensando no futuro e na vida de outro alguém. Eu queria poder dizer isso a muitas mulheres que já fizeram aborto: você não fez nada de errado. Você não tem culpa”.

Muitas narrativas expressam a ideia de que o conhecimento das vivências publicadas pela campanha fará com que outras mulheres que também fizeram aborto se sintam acolhidas e ressignifiquem a própria história, provavelmente atravessadas pelas mesmas dificuldades e pela mesma solidão. Além disso, algumas falas avançam de que as informações sobre outros vividos são também um mecanismo de proteção e aprendizado para enfrentar situações similares; a partilha, assim, tem também a intenção de evitar que outras mulheres passem pelas mesmas situações difíceis através da propagação do conhecimento construído no processo. Esta é uma das dimensões do cuidado coletivo que a apresentação da campanha expressa, além da evidente disputa a que se propõe no que diz respeito à verdade sobre a questão.

Podemos citar algumas: “Estou aqui para compartilhar com todas as mulheres que passaram pelo mesmo que eu, não tiveram apoio, ou que não sabiam dos seus direitos, eu quero que elas saibam que não estão sozinhas”26; “Por favor, conte minha história. Nenhum médico pode fazer o que foi feito comigo”27; “Por que eu resolvi contar? Acho que para ajudar. É fundamental falar, embora eu não tenha coragem de fazer isso em público”28; “Só consegui falar disso 12 anos depois, no pré-natal do meu filho. Depois eu conheci outras mulheres com a mesma história que

26 História 8. Realçamos que este é um caso de aborto legal de feto anencefálico, autorizado pelo STF desde de 2012. Entretanto, a mulher desconhecia os direitos, inclusive o processo para aceder a este género de interrupção voluntária da gravidez, e os serviços de aborto legal.

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a minha. Agora, outras mulheres irão conhecer a minha história, que deve ser como a história delas”29.

Por fim, é somente por causa da ruptura deste silêncio que pudemos conhecer estes relatos e investigá-los. As experiências vividas, portanto, vão também subsidiar estudos que tenham como objetivo produzir conhecimento científico sobre as questões que as atravessam. Elas, agora, não existem mais apenas para quem as viveu; deixam de ser um segredo de mulheres e tornam-se informação no mundo, passíveis de serem acedidas por qualquer pessoa com um computador ou telemóvel ligado à internet; são discursos que convivem, integram, se relacionam, afirmam e negam os demais discursos sobre o tema.

3.3. “EU NÃO DESEJAVA FAZER UM ABORTO, NÃO EXISTE ISSO ‘AH, EU DESEJO FAZER UM