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METAMORFOSES LOBATIANAS: FRUTOS DE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL.

4.2. A ÁGUA COMO ELEMENTO MOTOR DA METAMORFOSE.

No reino da imaginação, há uma “lei de quatro elementos”, baseada nas concepções filosófico-poéticas de Gaston Bachelard, classificando as diversas imaginações materiais, que possibilitam a interpretação textual a partir da materialidade dos elementos da natureza. Assim, com base nas idéias contidas na sua Poética,

julgamos ser possível encontrar elos entre o texto infantil lobatiano e a sua proposta metamórfica, levando em consideração a teoria do elemento água e sua carga simbólica nas interpretações voltadas para os propósitos de nossa pesquisa.

A teoria bachelardiana nos revela que a água é “um tipo de destino”, não só o

das imagens fugazes, o de um sonho que não se acaba, “ma s um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser”. Por isso, pensamos que o

elemento água tem peso dentro do texto infantil de Monteiro Lobato, pois em seu primeiro livro encontramos esse elemento como símbolo do ingresso da criança no universo mágico da Literatura Infantil. Deste modo, percebemos que na narrativa lobatiana a água surge como um leitmotiv da construção simbólica, representando a fluidez da vida e da linguagem.

O estudo de Bachelard (1998), por sua vez, vinculam-se ao poder psicológico da variação simbólica das águas: claras, primaveris, correntes, profundas, suaves e violentas. Assim, constatamos, através de sua teoria, que o termo água possui múltiplas significações e que sua simbologia permite a compreensão de acontecimentos reais e textuais que revelam potencialidades metamórficas, especialmente no que diz respeito à água como mestre da linguagem.

Lembrando um pouco as associações feitas por diversos povos, percebemos que a água é tida como a origem e veículo de toda vida, sobretudo nas tradições judaica e cristã. Ela é considerada como um dom do céu e símbolo universal de fertilidade e fecundidade, possibilitando etapas metamórficas que envolvem o ciclo da vida terrestre. Nestas associações, encontramos valiosas observações que contribuem para a compreensão da construção simbólica da água no texto infantil, visto que ela, ao agrupar imagens, dissolve as substâncias e ajuda a imaginação em sua tarefa de assimilação simbólica da materialidade de um elemento que representa o enigma da vida.

Ao nos depararmos com a idéia de uma água límpida e cristalina, associada à fluidez da vida e da linguagem, percebemos que esse elemento simboliza uma bela ação

metamórfica encontrada no texto lobatiano, pois nele a água aparece dotada de um poder transformador, que contempla a boneca Emília e a transforma no símbolo de suas metamorfoses.

Ao chegar ao Reino das Águas Claras, em sua condição de ser inanimado, a marquesa de Rabicó, até então, uma bruxinha muda feita de pano ordinário, como afirma tia Nastácia, sofre os efeitos metamórficos do reino aquático e passa a uma nova condição: a de ser uma “gentinha”, ou “evoluçã o gental”, de acordo com as próprias

palavras da boneca que marcará significativamente o percurso das aventuras da turminha do Sítio. Ao nos depararmos com esse fato, compreendemos, então, o grande valor da água na narrativa e identificamo-la como um elemento motor das propostas metamórficas de Monteiro Lobato.

Nos devaneios de Gaston Bachelard relacionados com as águas naturais, percebemos que elas representam uma linguagem idealizada, materializando-se em uma realidade poética que dá vida e voz aos elementos naturais. Assim, regatos e rios

sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, uma vez que as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, havendo, portanto, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra humana, justamente como acontece no texto lobatiano, quando Emília faz a aquisição da linguagem no Reino das ÁguasClaras.

Ao estudar a simbologia da água, percebemos também que esse elemento acentua qualidades femininas, ressaltando a sensualidade, a fertilidade, o desejo, o amor, entre outras. Com relação ao texto lobatiano, percebemos que no reino marinho Narizinho descobre sua condição feminina, despertando no Príncipe Escamado carinho, afeto, amor e o desejo de contrair matrimônio com aquela doce menina/mulher. É também neste reino que aflora em Lúcia um sentimento maternal que a conduz a atitudes de proteção do próximo, como demonstram suas atitudes destinadas às personagens Major Agarra-e-não-larga-mais e o Pequeno Polega r. No primeiro caso, ela recorre ao príncipe para suspender o castigo dado ao sapo, enquanto, no segundo, ela manifesta sua insatisfação com Dona Carochinha e tenta proteger o pequeno homenzinho que fugiu das histórias infantis, por estar insatisfeito. Deste modo, o elemento água faz aflorar comportamentos e associações simbólicas, que são de grande valor para o nosso estudo.

No primeiro texto infantil lobatiano, vemos que o elemento água é valorizado, pois, além de representar a aquisição e a fluidez da linguagem, também simboliza a fertilidade da vida, através dos seres marinhos, e sua vivacidade. Todavia, como reverso

da medalha, indicia a morte, pois é nas águas que supostamente o príncipe escamado morre, por desaprender a arte de nadar, afogando-se. Mais tarde, encontramos a explicação real deste fato, como podemos observar nos dois trechos seguintes:

1) Nem bem acabou de falar o gato Félix surgiu no terreiro, a miar aflito.

- Acudam!... O príncipe está se afogando...

Todos correram ao encontro do gato, sem compreender o que ele dizia.

- Afogando como, se o príncipe é um peixe?

- Sim, mas passou toda a tarde fora d’água e desaprendeu a arte de nadar.

Socorro! berrou Narizinho, disparando como louca na direção do rio para salvar o amado príncipe... 147

2) Por que não vem o príncipe? indagou Narizinho.

- Porque príncipe já não existe mais Murmurou o médico baixando os olhos.

- Como não existe mais? Que aconteceu? Fale!

- Não sei o que aconteceu. Mas depois daquela viagem ao sítio de dona Benta o nosso amado príncipe nunca mais voltou ao reino.

Narizinho recordou-se da cena. Lembrou-se de que o falso gato Félix havia aparecido para avisá-la de que o príncipe estava se afogando por ter desaprendido a arte de nadar. Lembrou-se de que correra para o rio para salvá-lo, mas nada encontrou. Ter-se-ia mesmo afogado?

- Acha que morreu afogado, doutor?

- Isso é absurdo, menina. Um peixe nunca desaprende a arte de nadar. O que aconteceu sabe o que foi?

- Diga...

Foi comido pelo falso gato Félix, aposto. 148

Lembramos que a água também marca o ingresso simbólico de Monteiro Lobato no universo da Literatura Infantil, pois foi justamente o relato de um conto de um peixe que morreu afogado, porque desaprendeu a arte de nadar, que levou o autor a criar seu primeiro livro como informa a transcrição seguinte:

Esse momento ocorreu quando Hilário Tácito o autor de Madame Pommery, romance-paródia editado por Lobato naquele ano contou-lhe a insólita aventura de um peixinho que morrera afogado por ter desaprendido a nadar. Instigado pela narração, transformou aquilo em um pequeno

conto a que deu o título de “A história do peixinho que morreu afogado”.

Até hoje segundo a dedicada pesquisadora do Museu Monteiro Lobato, Hilda Villela Merz, jamais foram localizadas cópias desse texto.

147

Lobato, 1970, p. 79.

148

Resolvendo desenvolver melhor a fábula, Lobato reaviva suas lembranças dos tempos de menino, repletas de cenas da roça onde passara a infância. E, assim inspirado, lança a primeira versão de A menina do Narizinho Arrebitado, narrando as peripécias de uma avó, a sua neta órfã, Lúcia, e à inseparável boneca de pano, Emília, além da negra tia

Anastácia, que moram “lá no fundo do grotão, muito sossegadas da vida,

sem inquietações nem aborrecimentos. 149

Admitimos que só a existência deste fato seria suficiente para considerarmos o elemento água como um fator de grande importância em nossa pesquisa. Na releitura da obra infantil lobatiana, passamos a tentar ouvir, com os poetas e filósofos, a “voz da água”, estabelecendo com o texto de Monteiro Lobato uma relação dinâmica e simbólica, que possa permitir uma compreensão das propostas metamórficas deste elemento, que parece estar recriando o universo aquático, através das suas potencialidades simbólicas. Deste modo, buscamos todos os rumos dessas águas e suas múltiplas imagens, fazendo-as fluir através de diversas associações, baseadas na potencialidade expressiva da palavra, que tenta desvendar sua carga simbólica e levar o leitor da presente pesquisa a contemplar a obra infantil lobatiana com um novo olhar, uma nova perspectiva, que revela uma carga intencional de sua escrita.

Esse elemento nos conduz a uma dimensão interpretativa que caracteriza o amadurecimento do ser humano, ao encontrar sua especificidade no sentir, no imaginar, no perceber, no significar. Enfim, ao envolver-se no ato da leitura, o leitor acaba descobrindo todo um sistema de idéias que o trabalham: desde os afetos e sensações comportamentais até a relação com os outros e o mundo, através de nossas possibilidades criadoras e inventivas. Abordaremos melhor as representações simbólicas e as propostas metamórficas desta personagem no capítulo seguinte.

149