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A METAMORFOSE REALMENTE EXISTE NO TEXTO LOBATIANO OU É SÓ UMA VIAGEM INTERPRETATIVA?

3.2. POR QUE TRATAR DE METAMORFOSE NUM TEXTO LOBATIANO?

- Como estes bichos sabem arrumar-se direitinho num mundo tão grande! murmurou Emília cada qual descobre um jeito. Por isso tenho tanta fé na humanidade futura, isto é, na humanidade daqui por diante a humanidade pequenina. Com a nossa inteligência, poderemos operar maravilhas ainda maiores que os insetos. 96

A decisão de abordar a metamorfose no texto lobatiano resultou da constatação da existência de alguns pontos comuns entre a obra infantil do escritor e suas atitudes sociais, identificada na presente pesquisa, como uma estratégia pedagógica. Com efeito, a natureza criativa do homem se constrói no convívio sócio-cultural. Ora, a literatura, como parte integrante deste convívio, pode agir como um meio de desenvolvimento psíquico do leitor.

Assim, Monteiro Lobato apresenta às mentes pequeninas uma motivação para criar ou moldar seus próprios valores. Focando as metamorfoses, faz com que seu leitor perceba que é necessário se envolver, como uma lagarta, num casulo de idéias, deixando que as mudanças necessárias ocorram, para, enfim, surgir o momento tão esperado: o estado perfeito de evolução, no qual o novo ser, dotado de asas, pode lançar vôo e atingir os sonhos mais impossíveis. Logo, o pequeno leitor, neste novo estágio, se contempla como um ser metamorfoseado, sendo capaz de lançar vôo, através do pensamento, e, enfim, atingir o estado adulto, tendo todas as condições mentais possíveis para manifestar suas idéias e realizar as transformações sociais necessárias.

Ao escrever histórias infantis, Lobato sugere um pacto entre a leitura e o

desenvolvimento da criança, cabendo-lhe aceitar embarcar nessa emocionante viagem

de aquisição de conhecimento, enquanto se diverte com as aventuras da turminha do Sítio. Tal pacto criativo passa por várias etapas: desde o estado de comodidade e inércia até ao de inquietação e maturação, ou seja, o lugar privilegiado de conscientização, idealizado pelo escritor.

Um exemplo disto é a questão do papel social desempenhado pelas mulheres da época em que o autor criou o mundo encantado do Sítio do Picapau Amarelo. Muitas meninas e senhoras eram submetidas às vontades masculinas, tendo sua liberdade de expressão sufocada por regras de uma sociedade essencialmente machista. Assim,

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percebendo os equívocos cometidos por seus contemporâneos, Lobato lança idéias revolucionárias que visavam a valorização da figura feminina na sociedade.

É curioso como o autor trata com bom humor questões tão espinhentas, que causam desconforto e injustiças sociais, colocando a bonequinha de pano como espevitada e implicante, porém brilhantemente esperta, que tenta ajeitar o mundo de acordo com sua visão particular, ignorando ou, até mesmo, solucionando os aludidos espinhos sociais. Com muita independência, Emília tenta resolver tudo a seu modo, às vezes, trazendo maiores complicações para a narrativa, criando, contudo, saborosos e edificantes momentos de reflexão coletiva.

Neste caso, deve-se observar a postura progressista de um autor que valorizou a figura feminina, pois, além de a colocar como ser pensante, atuante em todo o processo da história, também concede a ela o direito de se movimentar com total liberdade. Narizinho, Emília, Nastácia e Dona Benta, em momentos estratégicos, são responsáveis por atitudes nunca antes evidenciadas e valorizadas na figura feminina: elas são verdadeiras representantes da sociedade moderna. Em um prefácio do livro No Carinho da Luz, de Josefina Sarmento Barbosa (1921), Lobato nos deixa o seguinte recado: "A mulher não é inferior nem superior ao homem. É diferente. No dia em que compreendemos isso a fundo, muitos mal-entendidos desaparecerão da face da terra.

Esse modo de ver o mundo entra em choque com as idéias tradicionalistas que vêem na obra lobatiana um ameaça às regras vigentes.

O admirável é que, mesmo ferindo os brios da sociedade e promovendo agulhadas constantes nos valores defendidos por ela, mesmo assim, a obra obteve grande sucesso, o que levou o autor a saborear um reconhecimento até fora das fronteiras do país. Mas não há aqui a intenção de afirmar que os tradicionais membros da sociedade assistiram a tudo pacificamente, muito pelo contrário: fazemos questão de registrar que a Igreja97 e algumas famílias se levantaram contra o autor e seus escritos. O que mais incomodou o clero foi a imagem de ruptura dos laços sagrados do matrimônio. Segundo vários sacerdotes, a escrita infantil do autor era uma afronta aos

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A Liga Universitária Católica Feminista se levantou contra os livros infantis de Monteiro Lobato, e

segundo Vasconcellos (1982) promoveu verdadeiros “atos de fé”, chegando a queimá-los nos pátios dos

colégios e a publicar em folhetins artigos que combatiam a aquisição dos livros nocivos, segundo a visão da Igreja. Atitudes como essas deram origem a muitas outras como a edição de um livro que revelava a periculosidade da obra de Monteiro Lobato: A Literatura Infantil de Lobato ou Comunismo para Crianças (Brasil s/d). Uma figura importante nesta luta contra a obra lobatiana é justamente o padre Sales Brasil, autor da obra citada.

valores cristãos, pois Lobato apresentava às crianças uma personagem, Emília, casando- se por interesse e, em seguida, afirmando contundentemente que desejava romper com os laços matrimoniais. Ao fazê-lo, estaria pregando a libertinagem, que corromperia as mentes pueris. Basicamente, muitos trechos da obra engrossaram a lista de acusações e, por este motivo, cabe-nos ilustrar três deles:

1) - Não coma esse leitão, Pedrinho! É o Rabicó. Aquela diaba feia nos enganou e assou no forno o coitadinho...

O menino, apesar de duro para chorar, ficou com os olhos cheios

d’água, e ergueu-se da mesa furioso com a preta.

Emília, porém pulou de alegria. Estava viúva! Podia finalmente casar-se com o Visconde de Sabugosa ou outro fidalgo qualquer. Chegou

a bater palmas e a cantar o “Pirulito que bate-bate”, que era sua música

predileta. 98

2) - Eu quero tanto bem a Emília explicou Narizinho - que tenho

vontade de desmanchar seu casamento com o marques para casá-la com o gato Félix. Emília não está sendo feliz no primeiro casamento.

- Porque, se não é indiscrição?

- os gênios não se combinam. Além disso, Emília não se casou por

amor, como nós. Só por interesse, por causa do título. Emília não é mulher para Rabicó. Merece muito mais. Merece um senhor sacudido e valente como o gato Félix. É verdade que ele está a serviço da corte?

O príncipe mostrou-se surpresa.

- Gato Félix? disse franzindo a testa. Não conheço esse freguês... - como não, se foi ele quem trouxe a notícia da sua visita, príncipe? - Não pode ser! Mandei um recado por uma sardinha... 99

3) - O feminino de Rabicó é Emilia, porque ela é a mulher de Rabicó.

Emília, que já há muito tempo se havia divorciado de Rabicó, ficou danadinha e disse: - Nesse caso o masculino de Narizinho é bacalhau... Todos arregalaram os olhos sem perceber a idéia da boneca. 100

Obviamente, tal independência assustou a Igreja e os conservadores da época do autor, que não se calaram, ao verem que Emília, “independência ou morte”, abria margens para o desvio da conduta feminina, uma vez que, ao evidenciar um lado da mulher que a sociedade não aceitava, ela representaria uma ameaça. A bonequinha lobatiana era demasiado emancipada para os padrões vigentes na época, segundo os quais a figura feminina era associada a um ser submisso e dependente dos homens que governavam a sociedade patriarcal.

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Lobato, 1970, p. 54 (grifos nossos)

99

Lobato, 1970, p.70. (grifos nossos)

100

O autor, através de suas personagens fortes e independentes, mostrava que o casamento funcionava apenas como muleta para a mulher que não era capaz de andar pelas próprias pernas, necessitando de uma figura masculina que direcionasse sua vida, ou pudesse ampará-la, quando necessário. Tal pensamento pode ser facilmente contemplado na passagem seguinte:

- Errou de porta, minha cara. Isto aqui não é asilo de inválidos. Se

está doente vá para a casa de seu sogro.

- “Perdão” – disse a triste mendiga. É que não tenho casa nem sogro, e estou morrendo de fome e frio. Se a senhora não me dá uma folhinha para

comer e um cantinho para me abrigar, certo que morrerei a míngua.”

- É o melhor que tem a fazer” respondeu a formiga. “Que fazia no

bom tempo? 101

Na transcrição, a formiga repercute idéias tradicionais de uma família patriarcal, dizendo que o local da cigarra é ao lado de um homem que a possa acolher, pois, se não possui marido, deveria estar na casa do sogro ou em um asilo. É conveniente lembrar que idéias deste teor são dissolvidas ao longo da narrativa infantil de Lobato. Transcrevemos, a propósito, uma passagem que evidencia a existência de fortes idéias feministas que surgem como uma verdadeira proposta metamórfica:

- Lá se foram! exclamou. Acabaram-se as inquietações, os medos de cobra, formiga ou vento. E também se acabou o desaforo de todo o trabalho de botar e chocar os ovos caber só à fêmea. Os homens sempre

abusam das mulheres. Dona Benta diz que nos tempos antigos, e mesmo hoje entre os selvagens, os marmanjos ficam no macio, pitando nas redes, ou só se ocupam dos divertimentos da caça e guerra, enquanto as pobres mulheres fazem toda a trabalheira, passam a vida lavando e cozinhando e varrendo e aturando os filhos. E se não andam direitinhas, levam pau no lombo. Os machos sempre abusam das fêmeas, mas agora as coisas vão mudar. 102

Com idéias revolucionárias de uma nova organização social, Lobato demonstra que suas personagens estavam além da atual condição de seus contemporâneos. Na passagem transcrita, Emília exterioriza idéias feministas que

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Lobato, 1970, p. 139. (grifos nossos)

102

demonstram a exploração masculina e o desejo de metamorfose desta realidade, chegando a afirmar que, a partir daquele momento, as coisas iriam mudar.

Narizinho, no primeiro livro, encanta um príncipe e casa-se, contrariando a postura da avó, que não acha conveniente o matrimônio entre seres tão diferentes. E, falando na doce Dona Benta, ela é retratada como uma mulher de atitude, proprietária do Sítio, que tem em suas mãos os poderes característicos do universo masculino, pois, na condição de viúva, ela logicamente, responde por toda a parte administrativa, social e econômica daquele pequeno mundo, dando assim um exemplo de capacidade e equiparação da figura feminina com a masculina.

Emília é uma figura simbólica que nos dá a grande luz da modernidade, quando decide acabar com a guerra, no livro A chave do Tamanho, mostrando que uma mulher seria capaz de pôr ordem no mundo e de conceder à humanidade uma atitude sensata, o que os homens estavam longe de manifestar, já que eles eram os causadores da maior insensatez humana: a guerra.

Em A Reforma da Natureza, Lobato coloca duas mulheres como o maior exemplo de democracia, capazes de trazerem a paz e a serenidade para o mundo pós- guerra, com o podemos observar nos dois trechos seguintes:

1) Só conheço disse ele - duas criaturas em condição de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. Apequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

Mussolini, enciumado, levantou o queixo. - Quem são essas maravilhas!

- Dona Benta e tia Nastácia respondeu o Rei Carol as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Picapau Amarelo, lá na América do sul. Proponho que a conferencia mande busca r as duas maravilhas para que nos ensine o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! aprovou o duque de Windson, que era representante dos ingleses. A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno

país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos a paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. 103

2) –Eu conheço as idéias de “vovó” – disse ela. A primeira coisa que vai fazer na Conferência é transformar o mundo numa Confederação Universal. Todos os países ficarão fazendo parte dessa confederação, como

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os Estados dos Estados Unidos. E vai acabar com os exércitos e as marinhas, com os canhões e as metralhadoras.

A Rã, que entendia um pouco de política, achou que as grandes nações eram muito orgulhosas para se sujeitarem a ser simples Estados dum grande Estados Unidos.

- Pois se não se sujeitarem, pior para elas declarou Emília. Dona Benta acha que os homens devem formar no mundo uma coisa assim como as formigas. Elas são de muitas raças, ruivas, pretas, saúvas, sarassarás, quenquéns, etc., mas vivem perfeitamente lado a lado uma das outras, sem se guerrearem, sem se destruírem. Se as formigas conseguem isso, por que os homens não conseguirão o mesmo?

- Mas acha que os grandes de lá os reis, os ditadores, os homens importantes vão seguir os conselhos de Dona Benta e tia Nastácia?

- E que remédios? respondeu Emília. Enquanto eles se guiaram pelas suas próprias cabeças só saiu piolho: desgraças e mais desgraças, destruições sem fim. Eles devem estar convencidos de que, apesar de toda a importância, não passam duns tremendos pedaços de asnos. 104

Como podemos perceber através das transcrições, Lobato coloca nas mãos femininas a responsabilidade de transformarem a humanidade em uma “Confederação Universal”, para que todos possam viver em harmonia e felicidade, coisas que os

homens não haviam conseguido durante seus governos. Com esse posicionamento, o autor diz aos milhares de leitores que as mulheres são capazes de realizar coisas socialmente importantes, tidas pela sociedade patriarcal como obrigações ou responsabilidades masculinas. Deste modo, o texto convida as pequenas mentes a refletirem sobre os rótulos sociais, sobre imposições tolas, que impedem as mulheres de demonstrarem suas potencialidades e oprimem uma classe de pessoas pela inflexibilidade de pensamentos arcaicos. Portanto, pensamos, a partir destas e muitas outras passagens existentes em sua obra infantil que, Lobato propõe uma mudança de atitude com relação às mulheres, propondo uma verdadeira metamorfose de valores sociais.

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3.3. ESCRITOS PESSOAIS E TEXTOS INFANTIS: