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Há dois modos de escrever. Um, é escrever com a idéia de não desagradar ou chocar ninguém (...) Outro modo é dizer desassombradamente o que pensa, dê onde der, haja o que houver - cadeia, forca, exílio. 122

Falando de literatura, podemos ter em mente o uso de recursos específicos que fazem da escrita algo de especial. Através dos tempos, a escrita literária foi contemplada como um enigma que transformava em arte o cotidiano, dando aos fatos reais uma dimensão especial. Com o caminhar dos Estudos Literários, foi possível descobrir que esta arte abrigava diferentes recursos, que podem constituir um enigma, uma idealização do real, ou uma proposta de mudança de atitude social. É justamente na terceira opção que encaixamos o texto lobatiano, uma vez que suas atitudes sociais e literárias deixam clara a objetividade de sua escrita.

Ele soube contextualizar a infância em seu discurso e, seu texto, a partir de então, abriu a possibilidade de dialogar com saberes pedagógicos que visam à aquisição do amadurecimento psíquico da criança. Assim, sua literatura infantil passou a ser marcada pela intencionalidade. Desafiando muitos pedagogos tradicionais, por acreditar na potencialidade da criança, sua forma de ver o ensino tradicional apontava um total despreparo dos professores que subestimavam a capacidade de compreensão da criança, reduzindo-a à ingrata função de decorar regras e nomes que não faziam sentido algum para seu mundo. Com a criação de sua obra infantil e a doação de 500 exemplares às escolas, o autor oferece um novo caminho para a educação brasileira. Desde então, as narrativas do Sítio passam a abordar os mais variados assuntos, auxiliando a formação das crianças e revelando que, muito embora os textos infantis tragam uma grande carga simbólica significante, eles não são inacessíveis, muito pelo contrário: a literatura infantil traz para as crianças o ganho do conhecimento empírico.

Assim, os textos infantis de Monteiro Lobato não subestimam a capacidade da criança, convidando-a adentrar num mundo mágico, para nele poder fazer uma viagem

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de descoberta de si própria e do mundo, através da interpretação das construções simbólicas encontradas na escrita. Sempre carregando seu texto com ironia e simplicidade de linguagem, faz-se compreender, ao mesmo tempo que consegue divertir, encantar e educar as crianças. Suas intenções não são obscuras, fazendo sempre questão de comentá-las em sua correspondência:

1)Surgiu uma literatura sob medida que não se impõe à criança, mas deixa-se impor pela criança e desse modo satisfaz de maneira completa às exigências especialíssimas da mentalidade infantil [...]. Porque gostam as crianças de ler meus livros? Talvez pelo fato de serem escritos por elas mesmas através de mim. Como não sabem escrever, admito que me pedem que eu faça. 123

2) “A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite

literário. O enfeite literário agrada aos oficiais do mesmo ofício, aos que compreendem a beleza literária. Mas o que é beleza literária para nós é maçada e incompreensibilidade para o cérebro ainda não envenenado das crianças... Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura dos meus livros infantis. A cada revisão nova nas novas edições, mato, como quem mata pulgas, todas as literaturas que ainda a estragam. 124

As citações demonstram a empolgação e o encantamento que o autor sentia ao escrever para as crianças. Na primeira, revela como surgiu sua escrita infantil, enquanto, na segunda, manifesta sua estratégia de como envolver o pequeno leitor, dando uma receita de como escrever para crianças. Em muitas passagens de suas cartas, encontramos depoimentos que explicitam que, no campo literário, o que mais empolgou o escritor foi descobrir o universo infantil.

Tendo como fonte de análise a produção literária de Lobato, em especial a sua obra infantil, podemos perceber que ele preza a criança, não a desvalorizando e não oferecendo limites à sua capacidade psíquica, para que ela ganhe respeito, reconhecimento e credibilidade diante do mundo dos adultos. Podemos dizer que falar de Lobato é falar da criança, pois seus textos nos patenteiam, de forma simbólica, representações da infância e tais representações remetem para a reflexão sobre a criança na atualidade. Sendo assim, lançamos aqui o seguinte questionamento: já que o foco dos textos infantis de Lobato é a criança, podemos dizer que, ao narrar suas histórias, ele também constrói a história da infância no Brasil?

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Lobato, 1961, p 249.

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Ora, é do conhecimento de todos que o pai da Literatura Infantil Brasileira abriu novas perspectivas para as crianças e que apostou tanto em suas potencialidades que pretendeu construir um mundo melhor através delas. É bem verdade que a Igreja, em determinados momentos, proibiu a circulação de sua obra infantil, por trazer, segundo a visão do clero, uma afronta aos padrões religiosos. A verdade, porém, é que sua atitude literária promoveu uma repercussão tão grande na sociedade que seus feitos ainda não foram superados por nenhum autor da Literatura Infantil Brasileira.

Como é possível fazer tal afirmação?

É simples. Ele lutou com atitudes e palavras para construir uma trajetória de tentativas nunca antes ousadas. E, como se não bastasse a Literatura, ofereceu aos seus leitores um exemplo de otimismo e perseverança, através de sua própria figura, pois ele, como ninguém, soube abraçar idéias e lutar com bastante afinco para torná-las possíveis, servindo como referência nos dias atuais.

Desta forma, podemos entender sua atitude literária como uma prática simbólica, na qual há formulação de outras realidades que podem ser contempladas de ângulos diferentes, oferecendo uma visão particular do autor com relação ao real. O texto de Lobato oferece, assim, a possibilidade de construir imagens que passam a habitar o inconsciente do leitor, causando nele uma visão diferenciada de sua realidade, instigando-o a cultivar o desejo de ser agente transformador, atuando extra- textualmente, tal como ele e suas personagens.

Neste sentido, a Literatura Infantil de Lobato agiu e age nas crianças de forma positiva e instrutiva. Seus textos, ao mesmo tempo que apontam uma visão da infância e seus contornos na relação com os adultos, também definem um repertório de ações e comportamentos atribuídos à criança, mapeando o ingresso do leitor não só no mundo ficcional, como também no real. Por isso, pensamos que é coerente afirmar que os seus questionam as normas e os comportamentos sociais, induzindo os pequenos leitores não só à reflexão sobre o seu cotidiano, como também a tentarem mudar sua realidade. Deste modo, o texto lobatiano deixa de ser um enigma e passa a representar uma proposta real de metamorfose social.

É curioso notar a habilidade da sua escrita, que trabalha os mais diversos assuntos complexos do mundo adulto, de forma tão simples e divertida, fazendo com que tudo possa fluir naturalmente de modo a conduzir seu leitor à reflexão e à ação. Numa carta ao amigo Godofredo Rangel, enviada de São Paulo, em 01/02/1943, revela seu segredo de escrita:

O certo em literatura é escrever com o mínimo possível de literatura. [...] Campão revelou-me o segredo da aquarela: não empastar as cores, não sobrepor tintas, pois só assim alcançamos o que nesse gênero há de ser mais belo: a transparência. No estilo literário dá -se a mesma coisa: o empastamento mata a transparência, tal qual naquelas. [...] Como nos procuramos Rangel e parece que nos achamos... Faltou-me naquele tempo uma Dupré, mas a mim me salvaram as crianças. De tanto escrever para elas, simplifiquei-me, aproximei-me do certo (que é o claro, o transparente como o céu). 125

A simplicidade da linguagem é o segredo da compreensão. Ela pode ser utilizada como arma contra a obscuridade da ignorância, facilitando a leitura de um complexo universo de significações. Através dela, o autor pode atingir o mais alto grau de construção simbólica, sem comprometer a objetividade de sua mensagem.

A quem perguntar se há diferença entre a escrita adulta de Lobato e a infantil, fazemos questão de afirmar que essa diferença está, justamente, na simplicidade de representar os fatos sociais, pois a criança necessita de um texto menos complexo, por não possuir uma carga de leituras prévias que facilitam a sua compreensão. É importante lembrar, no entanto, que ambas são feitas com uma carga de intencionalidades do autor: a conscientização do grande e do pequeno leitor e seu amadurecimento, através da abordagem de fatos sociais.

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Capítulo IV

METAMORFOSES LOBATIANAS: