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A água no contexto do capitalismo atual: uma mercadoria

Inicialmente gostaríamos de fazer uma reflexão sobre a forma como a terra pode ser vista como mercadoria. Na realidade tal raciocínio nos permitirá entrever que em relação à água o raciocínio poderá ser análogo. O caráter de mercadoria da terra (porção espacial) é dado por esta ter um preço e poder ser comprada e vendida no mercado, portanto, o conceito de mercadoria é aqui usado por analogia e extensão, e, não, no seu sentido primitivo, ou seja, algo que incorpore trabalho social para produzir seu valor de troca.

Julgamos importante, ainda, ressaltar o tratamento dado por Marx (1988, p. 112) à água, à terra e à renda fundiária: “Para completar, é preciso notar, aqui, por terra também se entende a água etc. [...], à medida que tenha um proprietário e se apresente como acessório do solo”. Nessa perspectiva, a condição de estar ligada à terra faz da água uma mercadoria, pois seu valor está intimamente vinculado à condição de estar confinada de alguma forma a canais fluviais, lagos etc., ou seja, pertencer a um domínio territorial. Se a terra pode ser tratada como mercadoria, igualmente a água pode receber o mesmo tratamento, ressaltando, contudo, a mobilidade desta última no ciclo hidrológico.

Procurando relacionar as discussões até aqui colocadas sobre a questão da terra e da água como mercadoria com o espaço produzido pela sociedade, vamos observar que

é através da apropriação desse espaço, formado por terra, água e objetos produzidos pela sociedade, que se torna possível torná-lo uma mercadoria. Nesse ponto seja na totalidade dos componentes do espaço ou em um dos seus elementos particulares, como a água, a apropriação assinala a condição principal para a existência da mercadoria.

É importante salientar que, mesmo sendo tratada como mercadoria na atualidade, a água não deixa de ser o elemento fundamental para a existência da vida sobre a Terra e essa condição deve permear a discussão sobre seu uso por parte dessa sociedade.

Assim, compreendendo que o espaço geográfico é produzido, sobretudo com a natureza terra e a natureza água, mediante o trabalho dos homens concretos, não podemos deixar de considerar que o espaço produzido nos dias atuais mostra a necessidade de superação da forma como os homens concretos vêm se relacionando entre si e a partir daí com a natureza terra e a natureza água. Tal afirmativa tem como maior fundamento as profundas transformações que a sociedade contemporânea tem provocado na dinâmica dos meios em todas as partes do planeta, gerando uma gama imensa de problemas ambientais, em especial os relacionados à poluição, contaminação e mudança no regime fluvial dos córregos, rios e lagos.

Na atualidade, de um elemento essencial ao metabolismo dos organismos vivos, a água ocupa lugar de destaque tanto como matéria-prima para a fabricação de mercadorias (uso consuntivo), quanto como fonte de força motriz para produção de energia e meio pelo qual se deslocam mercadorias e pessoas (usos não consuntivos).

Conforme essa exposição nasce a noção de que a água é hoje alvo de usos múltiplos para satisfazer as necessidades da sociedade, seja na sustentação da vida, seja na produção de mercadorias, ou seja, como via de circulação, originando uma série de debates sobre seu uso.

Uma primeira constatação é que a água que mais interessa à sociedade é a água doce9 e que essa água, particularmente, representa um percentual muito pequeno em relação às águas salgadas e salobras existentes no planeta. Acrescente-se a tal fato a irregular distribuição das águas doces nas terras emersas de nosso planeta.

Mas, o fato mais relevante é que, com o crescimento da economia e da sociedade capitalista, essa substância vem sendo objeto de uma infinidade de usos, muitos dos

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Verifica-se que 97,5% do volume total de água da Terra são de águas salgadas, formando os oceanos e somente 2,5% são de água doce. Ressalta-se que a maior parte dessa água doce (68,7%) está armazenada nas calotas polares e geleiras. A forma de armazenamento em que os Recursos Hídricos estão mais acessíveis ao uso humano e de ecossistemas é a água doce contida em lagos e rios, o que corresponde à apenas 0,27% do volume de água doce da Terra e cerca de 0,007% do volume total de água. (SETTI et al. 2001).

quais alteram suas propriedades, ocasionando com isso indisponibilidade para usos mais exigentes. Nesse caso, a alteração na qualidade das águas acaba por afetar sua disponibilidade qualitativa.

Um outro cenário possível pode ser visto quando um consumo permanece estável durante o período de um ano, mas devido a condicionantes climáticos ocorre um período de seca, que acaba por reduzir as disponibilidades hídricas por certo período de tempo. Tal fato acabará, de um lado, diminuindo a água disponível para uso e, do outro, poderá ainda levar a uma deterioração de sua qualidade, tendo em vista a diminuição da capacidade dos corpos hídricos em se autodepurarem e diluírem as possíveis cargas poluentes. Assim, fica evidente a relação quantitativa – qualitativa quando se trata de analisar a disponibilidade, ou não, de determinado recurso hídrico.

Enfim, o que ocorre na sociedade capitalista – não que em outros momentos históricos isso não tenha ocorrido, mas num grau infinitamente menor e por motivação diversa – é uma degradação acentuada dessa substância, ora transformada em mercadoria, seja pelo trabalho a ela incorporado transformando-a em insumo ou mesmo bem final de consumo (ex.água mineral), seja pela sua condição como substância agregada à terra (porção espacial).

A necessidade do capital de se reproduzir tem levado a uma descomunal apropriação e utilização dos recursos naturais para produção de mercadorias, diminuindo a disponibilidade de vários desses recursos tanto sob o aspecto qualitativo quanto sob o quantitativo. É cada vez maior a deterioração da qualidade das águas doces do globo devido à urbanização, à industrialização e à modernização da agricultura que, respectivamente, lança quantidades enormes de cargas de esgotos urbanos nos rios, lança nos corpos d’água toda sorte de efluentes industriais com substâncias poluidoras e contaminantes e, por fim, drenam para estes, solos erodidos e agrotóxicos.

É nesse cenário, de uso intensivo e múltiplo das águas doces da terra, que se situa a questão das águas nos dias atuais, ou, como preferem certos autores10 a questão dos recursos hídricos. Apenas a título de esclarecimento a água seria a substância natural, já o recurso hídrico seria a água a partir do momento em que é vista como recurso, matéria-prima, força motriz, via de circulação etc. dentro do sistema econômico dominante, o capitalismo.

Como propomos anteriormente, importante para nós é vermos como a produção do espaço geográfico no capitalismo tem levado a modificações profundas e

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preocupantes nos atributos da água, que é considerada, no contexto dessa produção como recurso hídrico.

As iniciativas de gestão dos recursos hídricos, que serão discutidas em capítulo posterior, encontram-se numa grande encruzilhada, na qual grande parte dos planejadores e gestores ambientais parecem acreditar na possibilidade de um planejamento e uma gestão dos recursos hídricos eficientes dentro do atual cenário sócio-econômico. Daí, não avançam, em suas reflexões, para além dos marcos regulatórios ditados pelo Estado e deixam de lado o movimento que se dá, na sociedade capitalista, da acumulação do capital, com todas as suas derivações na apropriação e utilização dos recursos hídricos de maneira desordenada, sem limites, insustentável.

Vejamos um exemplo disso nas palavras de um pesquisador do assunto:

Assim, a manutenção da qualidade necessária a um ou mais usos de determinado recurso hídrico é meta a ser alcançada em qualquer projeto que vise ao seu aproveitamento. Os programas de aproveitamento de recursos hídricos devem, portanto, considerar a preservação da qualidade da água, de modo a possibilitar os usos determinados para a mesma. A qualidade da água de um manancial, além dos seus usos, depende das atividades que se desenvolvem em suas margens. Pode-se dizer que a mesma está intimamente relacionada com o uso que se faz do solo em seu redor. Assim programas de preservação e conservação de recursos hídricos, devem considerar o todo água-solo, de modo que os usos dos mesmos resultem no menor impacto possível sobre a qualidade do líquido [...]. O disciplinamento do uso e ocupação do solo da bacia hidrográfica é o meio mais eficiente de controle dos recursos hídricos que a integram. Assim, em um programa de preservação de recursos hídricos, várias medidas de preservação de recursos hídricos devem ser adotadas considerando a bacia hidrográfica como um todo. (MOTA, 1995, p. 11-12).

Reconhecendo o valor do debate sobre a necessidade da preservação e conservação dos recursos hídricos e sua relação com o uso e ocupação do solo, acreditamos, parafraseando o autor quando diz que a qualidade das águas depende das atividades que se desenvolvem em suas margens, que a qualidade de uma análise consistente e o apontamento de caminhos sobre planejamento e gestão dos recursos hídricos depende daquilo que ocorre às margens do que tem sido posto em pauta, ou seja, depende do contexto sócio-espacial maior, onde as práticas de planejamento e gestão hídrica se encerram.

Assim, não há como falar em eficiente planejamento e gestão dos recursos hídricos sem considerar a produção do espaço no capitalismo e todas as contradições inerentes a esse modo de produção e organização da sociedade. É dentro dessa realidade que estão

inseridos os processos de planejamento e gestão dos recursos hídricos e, portanto, a lógica da acumulação capitalista atua sobre tais processos de forma muito acentuada.

Em cada formação sócio-espacial particular estarão presentes práticas que visam interesses diferentes e, em muitos casos, contraditórios. Tais interesses aparecem inclusive nas políticas implementadas pelo Estado. Assim, como já destacamos anteriormente, a própria desarticulação e falta de integração entre políticas públicas setoriais pode estar a demonstrar os interesses contraditórios entre um uso racional dos recursos hídricos para a sociedade em geral e um outro, associado a interesses de uma exploração mais agressiva dos recursos naturais voltada para a simples acumulação capitalista.

Essa reflexão será retomada adiante, mas registre-se aqui algumas questões: a) Torna-se temerário desconsiderar o contexto sócio-espacial em que nos situamos, ou seja, o capitalismo mundializado com todas as suas contradições, diante da necessidade em se proceder a um planejamento e a uma gestão dos recursos hídricos efetiva. b) Se ignorarmos tal contexto ficam mais limitadas as nossas práticas de planejamento e gestão hídrica, podendo assim se situarem mais distantes dos interesses da coletividade como um todo. c) Dessa forma abre-se uma grande chance para a existência de um planejamento e uma gestão hídrica que se firme no atendimento a interesses setoriais da economia e que, assim, fica seriamente limitada em atender a toda a sociedade.

Para Buscar inserir a questão do planejamento e da gestão hídrica em nossas bacias hidrográficas em um cenário sócio-espacial maior é que se voltam as nossas atenções.