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2.1 A produção do espaço no capitalismo

2.1.2 A produção do espaço

Aqui retomamos as reflexões sobre a produção do espaço no capitalismo com o intuito de estabelecer uma relação dessa produção, dos processos de apropriação e do uso do território com as formas de gestão dos recursos naturais promovidas nos vários âmbitos de poder existentes no país.

Para tanto, é importante, antes de tudo, ater-nos um pouco mais nesse específico modo de produção que se estende pela quase totalidade do mundo de hoje.

É importante ressaltar que muitas colocações já foram feitas quando da apresentação do item anterior, contudo, aqui retomamos a discussão do modo de produção para avançarmos em nossa análise.

Gomes (1990) mostra-nos que no transcurso da história, a sociedade, com seus diversos níveis de desenvolvimento entre povos e nações, apresentou modos de produção distintos, como o primitivo, o escravagista, o feudal, o asiático e o capitalista. Salienta ainda que cada modo de produção foi necessário para o desenvolvimento da sociedade em cada período histórico distinto.

Esse autor afirma que o surgimento do modo de produção capitalista está relacionado à superação do modo de produção feudal na Europa e que daí evoluiu até alcançar sua expressão nos dias atuais, ou seja, o modo de produção capitalista de monopólio financeirizado.

No tocante ao modo de produção capitalista, Moreira (1981) afirma:

Visto na sua aparência o modo de produção capitalista é um modo de produção de mercadorias. A produção de mercadorias, contudo, mascara a produção da mais–valia. Visto na sua aparência apresenta-se como um modo de produção movido pelo interesse do lucro, mas o lucro é a mera forma que assume a mais–valia após a mercadoria que a contém em germe ser vendida e transformada em dinheiro. A mercadoria, o lucro e o dinheiro são aparências que assume a mais-valia. O trabalho produz mais–valia produzindo mercadorias. A mercadoria, pela sua venda gera a transformação da mais-valia nela contida em lucro. O lucro expressa-se em forma monetária e forma um ciclo para abrir outro. A mais valia na sua expressão monetária será reinjetada na produção para a geração de mais–valia. [...] Esta é a dialética do capital, seu móvel e objetivo: a acumulação de capital. (MOREIRA, 1981, p. 94-95).

Como vimos, esse modo de produção específico tem como objetivo a produção de mercadorias e a obtenção de lucros por determinada classe social. Contudo, ao

estabelecer como prática a apropriação dos recursos naturais e sua utilização de forma insustentável acaba por gerar toda sorte de ambientes degradados. É nesse contexto que devemos refletir sobre todo e qualquer processo de gestão territorial, inclusive a hídrica.

Nesse momento torna-se necessário voltar a atenção sobre a categoria espaço dentro do temário geográfico, ressaltando algumas conceituações para alcançarmos o entendimento do que é aqui colocado como produção do espaço e sua vinculação com o modo de produção capitalista.

Em um esforço de síntese, Corrêa (2000) faz uma leitura da utilização da palavra espaço na produção geográfica. Antes, porém, o autor salienta a variedade de significados com o qual esse termo tem sido empregado. Resulta daí uma necessidade de esclarecermos com qual conceito de espaço estaremos trabalhando.

A expressão espaço geográfico ou simplesmente espaço, [...] aparece como vaga, ora estando associada a uma porção específica da superfície da Terra identificada seja pela natureza, seja por um modo particular como o Homem ali imprimiu suas marcas, seja com referência à simples localização. Adicionalmente a palavra tem seu uso associado indiscriminadamente a diferentes escalas, global, continental, regional, da cidade, do bairro, da rua, da casa e de um cômodo no seu interior. (CORRÊA, 2000, p. 15).

Como visto, o autor lembra também o fato de haver uma variedade de escalas a que tal conceito é dimensionado, favorecendo a generalização com que o mesmo é empregado. Fazendo uma leitura da categoria espaço nas principais correntes do pensamento geográfico, o referido autor aborda o que, enfim, nos interessa no momento: a categoria espaço no seio da Geografia Crítica6, em especial no seu viés marxiano.

Corrêa, ao destacar o debate acerca da presença do espaço na obra de Marx, centra sua atenção na análise do espaço na teoria marxista, colocando:

O desenvolvimento da análise do espaço no âmbito da teoria marxista deve- se em grande parte, “à intensificação das contradições sociais e espaciais tanto nos países centrais como periféricos” (SOJA e HADJIMICHALIS, 1979, p.7)7, devido à crise geral do capitalismo durante a década de 1960. Crise que transformou o espaço por ele produzido em “receptáculo de múltiplas contradições espaciais. (SOJA; HADJIMICHALIS, 1979, p. 7), que suscitaria a necessidade de se exercer maior controle sobre a reprodução

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A Geografia Crítica em sua vertente marxista consistiu em um dos caminhos abertos pelo Movimento de Renovação da Geografia Brasileira, que teve grande expressão a partir da década de 1970, e que procurava realizar uma leitura que desse conta de explicar e explicitar a realidade contraditória e diferenciada do espaço geográfico brasileiro.

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SOJA, H e HADJIMICHALIS, C. Betweem Geographical Materialism and Espatial Fetishism: Some Observations on the Delevopment of Marxist Spatial Analisys. Antipóde, Worcester, p. 3-11.

das relações de produção em todos os níveis espaciais. (CORRÊA, 2000, p. 24-25).

Nesse ponto, encontramos no pensamento de Lefebvre (1994) os contornos que nos permitiram situar de forma mais clara o conceito de espaço. Para esse autor a reprodução da sociedade se torna efetiva através do espaço. Um espaço, na atualidade, totalmente inserido dentro da lógica da produção capitalista.

Assim, Lefebvre salienta que é nesse espaço homogeneizado, fragmentado, reduzido a pedaços que aqueles que detêm as forças produtivas as empregam em um novo momento de (re)produção do espaço, das relações sociais e das contradições aí presentes.

As forças produtivas permitem que os que delas dispõem disponham do espaço e venham até a produzi-lo. Esta capacidade produtiva estende-se ao espaço terrestre e transborda-o; o espaço social natural é destruído e transformado num produto social pelo conjunto das técnicas, desde a Física à Informática. Mas este crescimento das forças produtivas não para de gerar contradições específicas que re-produz e agrava. (LEFEBVRE, 1994, p. 247).

Para Lefebvre (1994) o espaço supera a condição de receptáculo e de produto social, ele aparece assim como o local da reprodução das relações de produção. Esse pensamento coloca para nós a perspectiva com a qual avançaremos em nossas discussões.

Portanto, a gestão hídrica há de considerar que o espaço deve ser entendido enquanto porção territorial, na qual se dão relações de poder, que visam tanto à reprodução de relações sociais quanto à produção de mercadorias para a obtenção de lucro; processos esses que acabam por se relacionarem profundamente com toda e qualquer prática de gestão dos recursos territorializados.

Também, como Lefebvre, o pensamento de Milton Santos igualmente vê o espaço enquanto uma realidade imbricada com a sociedade, ou seja, um espaço social. Para Milton Santos, modo de produção, formação social e espaço são três categorias interdependentes. Por isso “todos los processos que, juntos forman el modo de producción (producción propiamente dicha, circulación, distribuición, consumo) son histórica y espacialmente determinados em um movimiento de conjunto, y esto através de uma formación social.” (SANTOS, 1996, p. 22). Daí surge uma das grandes contribuições desse autor, a idéia de uma formação não apenas social ou sócio-econômica, mas que, mais adiante, vai ser encarada como uma formação sócio-espacial.

Com esse autor ainda podemos encontrar a seguinte afirmação: “Los modos de producción se tornan concretos sobre una base territorial históricamente determinada.

Deste punto de vista, las formas espaciales serían um linguaje de los modos de producción.” (SANTOS, 1996, p. 23).

Dessa forma, evidencia-se a idéia de que somente através de uma base territorial se torna possível a concretização do modo de produção. Ainda podemos extrair dessa citação a idéia de que as formas espaciais, materializadas no espaço, acabam se tornando em uma linguagem dos modos de produção. Isso ocorre pela presença cumulativa nas paisagens, das transformações aí materializadas pela ação da sociedade.

Corrêa (2000), comentando a contribuição de Milton Santos na compreensão do espaço e da sociedade, afirma:

O mérito do conceito de formação sócio-espacial, ou simplesmente formação social, reside no fato de se explicar teoricamente que uma sociedade só se torna concreta através de seu espaço, do espaço que ela produz e, por outro lado, o espaço só é inteligível através da sociedade. Não há, assim, por que falar em sociedade e espaço como se fossem coisas separadas que nós reuniríamos a posteriori, mas sim de formação sócio- espacial. (CORRÊA, 2000, p. 26-27).

Buscando mais subsídios para nossas reflexões vamos encontrar em Santos (1978) a reflexão sobre o espaço como fator social indo além da mera idéia de que esse seria apenas um produto social.

Ora, o espaço, como as outras instâncias sociais, tende a se reproduzir, uma reprodução ampliada, que acentua os seus traços já dominantes. A estrutura espacial, isto é, o espaço organizado pelo Homem é como as demais estruturas sociais, uma estrutura subordinado-subordinante, e como as outras instâncias, o espaço embora submetido à lei da totalidade, dispõem de uma certa autonomia [...]. (SANTOS, 1978, p. 45, grifo nosso).

Ainda em Santos (1978) vamos encontrar, no diálogo que se procura fazer com Henri Lefebvre, a concordância de que o espaço não é produto qualquer, uma vez que envolve as coisas produzidas e abarca as relações que levaram a essa produção. Apresenta-se como ordem ou desordem relativas; é o resultado de um conjunto de operações, não podendo, por isso, ser reduzido a um simples objeto. O espaço, assim, as sugere ou as proíbe, ou seja, ele influencia o processo seguinte para a produção de novos objetos e mercadorias.

Acreditamos ser oportuno destacar que os processos de transformações espaciais envolvem, igualmente, práticas sócio-espaciais (conforme o conceito de formação sócio-espacial de Milton Santos) e que, segundo Correia (2000):

São práticas espaciais, isto é, um conjunto de ações espacialmente localizadas que impactuam diretamente sobre o espaço, alterando-o no todo ou em parte ou preservando-o em suas formas e interações espaciais. Resultam [...] dos diversos projetos, também derivados de cada tipo de sociedade, que são engendrados para viabilizar a existência e a reprodução de uma atividade ou de uma empresa, de uma cultura específica, etnia e religião, por exemplo, ou a própria sociedade como um todo. As práticas espaciais são ações que contribuem para garantir os diversos projetos. São meios efetivos através dos quais objetiva-se a gestão do território, isto é, a administração e o controle da organização espacial em sua existência e reprodução. (CORREIA, 2000, p. 35).

É necessário salientar que as formações sócio-espaciais vão confinar uma série de práticas espaciais visando, como visto anteriormente, assegurar a gestão do território, entendida como administração, controle da organização espacial, sua existência e reprodução. Neste ponto interessa-nos delimitar o alcance de nossas reflexões acerca dos processos de produção do espaço e os limites que a abordagem escolhida acaba por ter. Para nos auxiliar recorremos a Moraes (2002), quando discute as bases epistemológicas da questão ambiental. Para o autor as tentativas de expandir as análises de conteúdo marxista para além dos estudos da sociedade revelaram desvios positivantes com o empobrecimento do componente dialético proposto. Assim, Moraes (2002) elucida os limites de uma abordagem marxista da questão ambiental:

Sintetizando, tem-se uma abordagem em que os fenômenos naturais são tomados nas suas implicações com o processo de produção da vida humana, isto é, como recursos dinamizados pelo trabalho. Observa-se que o movimento interno de tais fenômenos não é enfocado, numa perspectiva centrada no entendimento da sociedade, esta se projeta na paisagem alterada, pois as formas espaciais criadas pelos Homens exprimem as relações sociais vigentes na época de sua realização. [...] Diante do apresentado, observa-se que uma abordagem marxista da questão ambiental vai encará-la como uma manifestação de processos sociais, pelos quais uma dada sociedade organiza o acesso e uso dos recursos naturais disponíveis, organização que se articula na própria estruturação social, constituindo parte do processo global de sua reprodução. Em suma a questão ambiental será avaliada no contexto de um modo de produção e de uma formação econômico-social [...]. “O ambiente como recurso, como condição de produção, como mercadoria, como objeto de intervenção do estado etc.” (MORAES, 2002, p. 74-78, grifo do autor).

Julgamos pertinentes as colocações feitas por Moraes (2002), pois se de um lado há o reconhecimento explícito de uma dinâmica própria dos fenômenos naturais alterados pela sociedade, de outro vê a aplicação mais efetiva da abordagem marxista aos estudos dessa sociedade em seu movimento de apropriação e uso dos recursos naturais. Nesse sentido, ao propormos trabalhar com temas como produção do espaço e gestão hídrica e

territorial nos parecem esclarecidos os caminhos trilhados e a delimitação de nossas preocupações, ou seja, entender os processos sociais que levam tanto à existência da produção do espaço como às práticas sócio-espaciais de administração e gestão territorial, principalmente a gestão hídrica.