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a) A produção de alimentos e o abastecimento na colônia

Garantir a subsistência de seus vassalos sempre foi uma das preocupações centrais da coroa, o que, de resto, se evidencia na relativamente extensa legislação promulgada a respeito. Tratava-se para o rei de uma questão de ordem social, sumamente importante, nem sempre assim entendida pelos interesses superiores do grande comércio e da grande lavoura. Era essa uma das atribuições das câmaras municipais que a exerciam através de um funcionário especial, o almotacé, por vezes chamado de juiz almotacé. O abastecimento incluía-se, pois, nas atribuições das câmaras municipais. Por outro lado, assegurar, por meio de medidas disciplinares, a cultura de subsistência básica à alimentação contra, na maioria das vezes, o interes- se da grande lavoura exportadora constituía-se como um dever social da coroa, decorrência de um poder que se situava, em princípio, acima das ordens e dos privilégios individuais. Tratava-se, para ela, de promover o bem geral do Estado.

De que modo, por meio de que instrumentos, poderia o Estado intervir na ordem privada? Apontamos dois: o institucional e a imposição legal. No primeiro caso, destacamos as já mencionadas câmaras municipais com atri- buição de poderes bastante amplos: regulamentação de feiras e mercados, realização de obras públicas e fomento da cultura da terra, entre outros. É óbvio que lhes faltavam recursos, até mesmo os mais elementares, para pôr

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121 em execução o que lhes competia. Por outro lado, estavam sujeitas a uma estrita legislação concernente aos impostos, à fi xação de preços, à decreta- ção de coimas e fi ntas. A penúria em que viviam, os imprevistos do clima, as distâncias que reforçavam o isolamento, o povoamento escasso, tudo isso criava um estado de quase desespero por parte de seus mais zelosos funcionários, com difi culdades de impor a lei e a ordem pública, como foi o caso do ouvidor Loureiro de Medeiros, no Ceará, em 1730, que assim se dirigia ao rei:

Não é menor a confusão que há nas ordenanças da terra, nascida de muita cópia de coronéis, tenentes-coronéis, sargentos-mores, comissários e outros ofi ciais de semelhante graduação, sendo a maior parte deles tão indigna que muitos são va- queiro e não poucos negros e mestiços, e alguns com presunção de que são escravos fugidos de seus senhores...2

Mesmo inefi cientes no exercício de suas atribuições, foram as câmaras municipais uma espécie de caixa de ressonância do jogo dos interesses locais, refl etindo as hierarquias do poder local ou a sua fragilidade.

Quanto ao poder de legislar exercido pela coroa, as medidas de controle aventadas foram pouco efi cazes como se pode depreender pela monotonia com que eram reforçadas e/ou alteradas. Bastante suspeita é a observação de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, historiador ofi cial dos primórdios do Império brasileiro:

o governo parecia apoderado do prurido de legislar para a América; mas sendo os legisladores pouco práticos do país revogavam a miúdo suas próprias obras, mau sinal para quaisquer estadistas, e para o estado que os admite,

acrescentando a máxima de Tácito, corruptissima republica, plurimae leges (Varnhagen, s. d., p.331).

O depoimento de João Francisco Lisboa, nos seus “Apontamentos para a história do Maranhão”; aproxima-se do de Varnhagen ao apontar para o caráter desordenado da legislação, para a ausência de uma codifi cação, para a defi ciência dos canais de comunicação entre as administrações locais e me- tropolitanas, “o mal defi nido, confuso e contraditório das leis”, reproduzindo, assim, um quadro bastante caótico (Lisboa, 1976). Fazendo-se os necessários descontos nos depoimentos de Varnhagen e João Francisco Lisboa, pela posição que ocupavam no cenário intelectual do Império, admitamos que sejam justos no essencial. No entanto, lembramos que, sobretudo nas grandes cidades, como Salvador e São Luís, foram freqüentes os confl itos internos nas câmaras municipais, refl etindo profundos choques de interesses, sempre

2 COLEÇÃO STUDART, livro 2, p.613, apud GIRÃO, R. História econômica do Ceará. Col.

Instituto do Ceará, p.103, 1947.

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escamoteados pela facção da “nobreza” dominante. Em ambas as cidades, era importante a representação das corporações de ofício e do comércio pelos juízes do povo e procuradores dos mestres, sendo que, pelo menos em um caso, à instância dos vereadores, foi levada à coroa uma petição pleiteando a supressão da representação popular nas câmaras (Salvador em 1713). Também na Bahia, em 1666, o juiz do povo dirigiu-se à coroa pedindo que se proibisse a construção de novos engenhos junto ao litoral e que só viessem a ser construídos no interior, em parte para permitir a preservação das matas. O protesto que se levantou contra tal proposta foi clamoroso: “... quem disse Brasil disse açúcar e mais açúcar, o qual, se não pode fazer

muito, em poucos engenhos, nem se pode limitar paragens nem número”.3

Mas contra isso argumentavam os partidários da “intervenção do Esta- do”: “quando o bem universal encontra a conveniência de um particular, pela conveniência particular se não há de destruir o bem universal”. Algo restou dessa querela. Datam dessa época medidas que estabeleceram limitações ao cultivo do tabaco e à localização das fazendas de gado (a pelo menos 10 léguas da costa e da beira dos rios) a fi m de que as faixas intermediárias fi cassem reservadas ao cultivo exclusivo da cana e da mandioca.

Com referência ao cultivo da mandioca, parece ter sido permanente a preocupação da coroa em evitar crises de abastecimento, na tentativa de corrigir a tendência para a monocultura de exportação. Já na Provisão de 24 de abril de 1642, é facultado aos “moradores do Brasil” o cultivo do gengi- bre e anil em terras impróprias para a cana, obrigando-se, entretanto, estes a “plantar de mandioca outra igual porção de terreno”. Portugal passava, então, por momentos difíceis que se iriam agravar com os anos de guerra contra os holandeses em terras do Brasil.

A coroa, recém-restaurada, ingressava numa crise que tenderia a ser longa e o Brasil começava a viver a experiência de ser colônia de uma metrópole empobrecida, que perdera quase todo o seu Império e mal tinha condições de manter a sua independência política em face dos interesses estrangeiros, sobretudo espanhóis. Por outro lado, a perda da situação de monopólio do açúcar brasileiro no mercado europeu provocaria a queda dos preços desse produto durante um longo período. Era o início de um ciclo depressivo do qual Portugal só sairia com a descoberta do ouro nas Gerais. Para a colônia, ele redundou em três conseqüências:

– a interiorização do povoamento e a ampliação, em extensão da área, das economias de subsistência, com o decorrente surgimento da pecuária sertaneja;

– a acentuação da tendência centralizadora da economia, através do con- trole sobre o comércio, que passa a ser monopólio da classe mercantil

3 Anais do I Congresso da Bahia, p.491-99.

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123 metropolitana representada nas companhias de comércio, cerceando, dessa forma, a autonomia dos grandes proprietários agricultores; – o desenvolvimento do fi scalismo como meio de suprir os défi cits

crônicos da administração metropolitana.

À medida que se reforçam os controles da administração sobre a econo- mia da colônia, mais evidente se torna o distanciamento entre os produtores locais e a coroa. Assim, as medidas propostas pelo poder metropolitano no sentido de proteger os consumidores da colônia não têm uma acolhida favorável e difi cilmente serão acatadas. Os interesses em pauta passam a ser divergentes. Aos súditos do primeiro século, agora se sucedem os colonos,

como bem assinalou Caio Prado Júnior (1953).4

A partir da segunda metade do século XVII, passaram a ser freqüentes as queixas contra a escassez de mantimentos nos centros urbanos. A Pro- visão de 24 de abril de 1642, que determinava a obrigatoriedade de plantar

mandioca em outra igual porção de terreno, ao lado dos produtos de exportação permitidos, acrescentava-se ao decreto do governador da Bahia Antônio Luis Gonçalves da Câmara Coutinho, recém-empossado, publicado em 10 de novembro de 1690, segundo o qual os moradores, 10 léguas ao redor da cidade, eram obrigados a mandar plantar quinhentas covas de mandioca, “para evitar a fome, que ameaçava a invasão dos inimigos, sob pena de $100.000 aplicados às fortifi cações”. Essa determinação do gover- nador seguia-se ao Alvará de 25 de fevereiro de 1688, que já compelia “os moradores do Recôncavo da cidade da Bahia, dez léguas ao redor dela, a plantar cada ano quinhentas covas de mandioca, por escravo que tivessem de serviço” (Varnhagen, s. d., p.324). Tais determinações só foram seguidas esporadicamente, em virtude das resistências opostas pelos proprietários lavradores de cana e senhores de engenho. O Alvará de 27 de fevereiro de 1701 reforça o de 1688, acrescentando medidas de restrições à “inovação do gado de criar”, impondo o cercamento dos pastos para que “ele não

pudesse sair a fazer prejuízos às roças e lavouras vizinhas”.5

É evidente, nesse decreto, a preocupação do legislador em disciplinar a produção, de modo a atender aos interesses da grande lavoura e ao abasteci- mento da população em geral. Por outro lado, ele refl ete as difi culdades com que se debatiam os moradores e as mudanças que se operavam na colônia. As duas últimas décadas do século XVII foram marcadas por severas secas no sertão nordestino, pelo surgimento da peste da Bicha (a invasão das bexigas, segundo Varnhagen), pelo registro na crônica política e policial de agitações urbanas e grande onda de criminalidade, por medidas de restri- ções às importações e ao consumo ostensivo (com o objetivo de minorar o

4 Ver também FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Nacional, 1977. parte 11.

5 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (ABNRJ), 31, 90-1, apud VARNHAGEN, A.,

p.324.

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défi cit da balança comercial portuguesa com a Inglaterra). Não há dúvida de que aquele fi m de século não parecia risonho a Portugal.

Diante de tantos males e óbices, o rei se encontra dividido entre a classe dominante, por cujos interesses imediatos é pressionado, e o futuro, ou seja, o bem geral do Estado. No interior da classe dominante, havia que considerar os interesses confl itantes dos grupos diversos que a compu- nham na metrópole (fi dalgos, comerciantes, clero) e na colônia (senhores de engenho, comerciantes reinóis, lavradores). Quanto ao bem geral do Estado, entre seus interesses situava-se o de preservar a paz social, daí a importância que assumia, sobretudo nos momentos de crise mais aguda, o problema do abastecimento de gêneros para o conjunto da população. Inclui-se aí o problema da subsistência e de como garanti-la no conjunto da economia de especulação.