• Nenhum resultado encontrado

PRIMEIRO PERÍODO: CRISE DA PLANTATION E EMERGÊNCIA DA AGRICULTURA DE BASE

CAMPONESA (c. 1700-1760)

É o período que poderíamos chamar de “constitutivo”, “originário” ou “formativo” para as comunidades de cultivadores pobres livres de Pernam- buco e, num sentido mais amplo, dado pelas próprias fontes, do Nordeste oriental: Alagoas, Pernambuco, Paraíba, em menor grau Rio Grande do Norte e, com certa freqüência, a capitania do Ceará, que, embora distante, estava subordinada, como todas as outras, à autoridade dos governadores e capitães-gerais de Pernambuco. O característico dessa primeira fase repousa na constituição de comunidades de cultivadores pobres e livres através de um processo de conversão de homens e mulheres pobres em plantadores de culturas de subsistência e, crescentemente, conforme se avança em direção

à metade do século, produtores de tabaco.6 Simultaneamente, opera-se a

6 A elaboração dessa hipótese está apoiada na abundante documentação referente ao con-

trabando de tabaco em diversos distritos da Capitania Geral de Pernambuco durante a primeira metade do século XVIII. As informações nela contidas mostram uma surpreendente expansão desse cultivo no contexto de uma das maiores crises de oferta de mão-de-obra escrava de que se tem notícia na região e sugerem, por essa e por outras razões que serão adiante explicitadas, uma signifi cativa, se não predominante, participação dos cultivadores pobres livres nesse processo. Consulte-se, por exemplo, Documentos Históricos, publicados pela Biblioteca Nacional/Divisão de Obras Raras e Publicações em datas diversas (de agora

NEAD-Camponeses_brasileiros_v1_(FINAL).indd 150

151 transformação dos exíguos mercados originais da agricultura dos pobres livres, alterados e ampliados logo nas primeiras décadas do século XVIII pela ação conjunta de outros dois processos que proporcionam o pano de fundo da expansão camponesa: a crise da agricultura escravista do Nordeste oriental, que afeta principalmente Pernambuco e Paraíba, e a

gigantesca corrida às minas do Centro-Oeste do Brasil.7 Os efeitos desses

processos resultaram na constituição de mercados “externos”, formados

em diante DH), v.85, p.68-70 e 117; v.99, p.165-66 e 221, e v.100, p.148-49; AIHGB, Arquivo

do Conselho Ultramarino (de agora em diante ACU), v.14, fl s.76 e 80; Inventário dos docu- mentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da Marinha e Ultramar [...]. ALMEIDA, E. de C. e. (Org.). I. Bahia, 1613-1762, Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 31, 1909 (de agora em diante INV/ABN) 31, 27-31, 69-70 e 111-12. Cf. também CASTRO, J. de A. Memória sobre as espécies de tabaco que se cultivam na Vila da Caxoeira [...]. Vila da Caxoeira, c. 1788, reproduzido em LAPA, J. R. A. Economia Colonial. São Paulo: Perspecti- va, 1973. p.187-213; ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1982; GARCIA, R. A Capitania de Pernambuco no Governo de José Cezar de Menezes (1774-1787). RIAHGPe, t.84, s. d., p.539-40. Sobre a conversão de portugueses pobres, recém-chegados, em cultivadores não escravistas de tabaco, veja-se LUGAR, C. The Portuguese Tobacco Trade and Tobacco Growers of Bahia in the Late Colonial Period. In: ALDEN, D. e DEAN, W. Essays Concerning the Socioeconomic History of Brazil and Portuguese In- dia. Gainsville: The University of Florida Press, 1977. p.33. Visões gerais do problema podem ser encontradas em HANSON, C. Monopoly and Contraband in the Portuguese Tobacco Trade, 1624-1702, Luso-Brazilian Review, n.19, p.149-68, 1982, e em MELLO NETO, U. P. de. O fumo no Nordeste. RlAHGPe, v.XLIX, p.253-92, 1977. Um estudo recente que contesta o predomínio de cultivadores pobres não escravistas no plantio de tabaco na Bahia do século XVIII é SCHWARTZ, S. B. Colonial Brazil, c. 1580-c. 1750: Plantations and Peripheries. In: BETHELL, L. (Ed.) The Cambridge History of Latin America (a partir de agora, CHLA), v.11. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p.456-57.

7 A crise da agricultura escravista do Nordeste oriental, como a da própria Bahia, resultou

basica mente, como se sabe, da entrada do açúcar antilhano no mercado internacional a partir das últimas décadas do século XVII e da conseqüente queda violenta dos preços. No caso da capitania de Pernambuco e dos seus territórios anexos, a crise teve agravantes que lhe deram, ao que parece, aspectos por vezes verdadeiramente catastrófi cos. O endividamento da grande maioria dos proprietários de escravos e de terras, sua incapacidade para negociar novos fi nanciamentos e uma certa indiferença da coroa para com a sorte dos ex-rebeldes senhores de engenho que tinham ousado colocar em questão a autoridade da metrópole no incidente conhecido como a “Guerra dos Mascates” provocaram uma brutal descapitalização dos produtores de açúcar. Confrontados com ameaças de execuções judiciais eles tiveram de vender a melhor parte dos seus plantéis de escravos e, em muitas ocasiões, abandonar suas terras, pressionados pelos homens de negócios do Porto do Recife. Não existem estudos específi cos sobre a crise do século XVIII em Pernambuco, nitidamente mais violenta que a da Bahia. Para esta última, veja-se SCHWARTZ, S.B. Colonial Brazil, op. cit., e, especialmente, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society. Bahia, 1550/1835. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. Para Pernambuco, consulte-se a documentação das Câmaras das vilas sobre as execuções de senhores de engenho e vendas maciças de escravos para as minas do centro-oeste da colônia em DH, v.85, p. 30-31, 58 e 60; DH, v.99, p. 23-25 e segs., 85-86, 103-4, 165 e segs. e 212-13; DH, v.98, p.186 e 248; INV/ABN 31, p.28 e 321; AIHGB/ACU, v. 14, passim; Informação Geral da Capitania de Pernambuco. 1749. Anais da Biblioteca Nacional, v.28, p.350. Cf. também MAURO, F. Portugal and Brazil: Political and Economic Structures of Empire, 1580-1750. In: CHLA, v.I, p.457-64.

NEAD-Camponeses_brasileiros_v1_(FINAL).indd 151

152

pela movimentação interatlântica do Império Português no século da grande migração motivada pela descoberta das minas e pelo igualmente notável

incremento do tráfi co de escravos africanos, determinado pela mineração.8

Nessa nova conjuntura, ao que tudo indica, os cultivadores pobres livres, organizados e dinamizados, aparentemente, pelo peque no capital mercantil não monopolista representado pelos comissários volantes, ampliaram sua produção de alimentos e converteram-se em plantadores de tabaco, até que o banimento desses intermediários/contrabandistas, na metade da década de 1750, fechasse o mercado “exportador” para a produção camponesa de

8 As quantidades de mandioca e de outros gêneros alimentícios necessários para o sustento das

frotas transoceânicas não têm sido até agora dimensionadas, nem o seu signifi cado discutido em termos de agricultura comercial peculiarmente inserida no chamado mercado exportador. Existem, no entanto, numerosos indícios dispersos de que por trás do aprovisionamento das centenas de na vios que chegavam anualmente aos portos do Brasil, e especialmente do Nordeste, estava uma importante estrutura produtiva e comercial que nem sempre interes- sava às plantations escravistas, embora freqüentemente ocupasse segmentos de pequenos lavradores que trabalhavam com meia dúzia de escravos ou menos. Novamente a contem- poraneidade da crise desses lavradores, os primeiros a ser atingidos pelas execuções dos capitalistas do porto, com a expansão do cultivo de alimentos na capitania de Pernambuco (às vezes precisamente nos mesmos distritos mencionados como novos produtores de tabaco destinado ao contrabando), levanta a questão da participação intensa dos cultivadores pobres livres na produção de mandioca para o mercado externo. Informações para fundamentar essa hipótese e para dimensionar, nem que seja a grosso modo, o volume da demanda de alimentos representada pelo transporte interatlântico de escravos, de migrantes e de soldados podem ser encontradas, para Pernambuco e capitanias anexas, bem como para a Bahia, em DH, v.40, p. 9-10 e 141-42; DH, v.85, p.169-70 (onde se informa que a chegada da frota ao Recife acabou com o estoque de farinha de mandioca disponível na cidade), p.97-98 (onde o governador da Bahia solicita ao seu colega de Pernambuco o envio urgente de “toda a farinha que for possível” para resolver uma quebra da safra local e enfrentar as “matalotagens que precisamente se hão de fazer para todos os navios, naus de guerra e da índia”) e p.112; INV/ ABN 31, p.89-90 e 124, que, embora reproduzam documentos referentes à Bahia, reforçam, porém, a impressão da grandiosidade do comércio externo de mandioca, não só para as frotas d’EI-Rei, “provimento da Infantaria desta praça e guarnição das fragatas de Sua Magestade”, mas também para “os senhores dos navios, que navegam desta Cidade para a Costa da Mina e Angola, a resgate de escravos extraindo em cada um ano milhares e milhares de alqueires da dita farinha, pane para sustento dos ditos escravos e parte para negócio deste Reyno de Angola, onde se vendem por altíssimos preços […]”. O comércio de mandioca com Angola já era uma prática corrente em princípios do século XVII, quando a capitania do Rio de Janeiro recebia “as naus que navegam do Reino para Angola, onde carregam de farinha da terra, de que abunda toda esta capitania em grande quantidade [...]”. Cf. BRANDÃO, A. F. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977. p.60. Sobre a dimensão da corrente migratória transportada da Europa para o Brasil nas primeiras décadas do século XVIII pelas frotas portuguesas, veja-se MARCÍLIO, M. L. The Population of Colonial Brazil. In: CHLA, v.lI, especialmente p.47-51; WOOD, A.J.R. R. Colonial Brazil: The Gold Cycle, c.1690-1750. In: CHLA, p.554; Informação Geral da Capitania de Pernambuco, op. cit., p.146; CUNHA, L. da. Testamento político: ou Carta escrita pelo grande D.’ Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. Jose I antes do seu governo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p.74-75; SERRÃO, J. A emigração portuguesa. Sondagem História. 3.ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1977; LAPA, J. R. do A. A Bahia e a Carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, especialmente p.169-74, que tratam do abastecimento alimentar dos navios.

NEAD-Camponeses_brasileiros_v1_(FINAL).indd 152

153

tabaco e diminuísse o ritmo de expansão da agricultura dos pobres livres.9

No fi nal da década, as autoridades coloniais em Pernambuco constatavam o que parecia ter sido o principal efeito da sus pensão do cultivo de tabaco para exportação pelas comunidades camponesas da área: dezenas de milha- res de homens e mulheres pobres livres “ociosos”, isto é, ocupados apenas

com o plantio da sua própria subsistência.10

O estudo do período oferece alguns pontos de partida para discutir diversas impressões que não têm sido, até agora, renovadas dentro da historiografi a brasileira. Por exemplo, o velho problema da conceituação e do dimensionamento do “mercado interno”, cuja suposta exigüidade tem sido freqüentemente esgrimida como a causa primordial a explicar a hipotética inexistência de segmentos camponeses importantes no Brasil

colonial,11 quando, na realidade, o que tem sido exíguo e inexistente, no

caso, é a pesquisa sobre o tema (e/ou sua divulgação). Ou então a natureza “marginal’’ da produção não escravista durante o setecentos e o conteúdo preciso dessa dita “marginalidade” – uma noção ainda usada por vários autores. Ou, ainda, o perfi l sociocultural que as fontes, sobretudo as do fi m do século XVIII, transmitem sobre o que seriam os cultivadores pobres livres da época: indivíduos ignorantes, isolados, brutos (referidos por termos como “plebe”, “ralé” etc.), mantidos distantes da civilização pelo primitivismo das suas práticas e dos seus pensamentos, primitivismo decorrente da preca-

9 O vínculo entre os comissários volantes e os cultivadores pobres livres dedicados ao plantio

de tabaco nas terras costeiras do Nordeste oriental está, a meu ver, claramente sugerido pela automática suspensão das queixas dos negociantes do Recife e da cidade da Bahia sobre contrabando de fumo para a costa d’África imediatamente após o banimento desses pequenos intermediários-contrabandistas, e pela subseqüente desaparição de informações substanciais, nas fontes pernambucanas, sobre cultivo de tabaco em grande escala na capi- tania. A pressão contra os comissários pode ser constatada na Representação dos Homens de Negócios da Praça de Pernambuco a El-Rei, anexa à carta do governador Luiz Diogo Lobo da Silva ao Conde de Oeiras, Recife, 18 maio 1757, em AIHGB, ACU, v.14, fl s. 76 e 80. Consultem-se também, sobre os comissários-volantes, MAXWELL, K. R. Pombal and the Nationalization of the Luso-Brazilian Economy, Hispanic American Historical Review (de agora em diante HAHR), v.XLVIII, n.4, nov. 1968; FALCON, F. J. C. A Época Pombalina (política econômica e monarquia ilustrada). São Paulo: Ática, 1982. p.473-74; e Andrée MANSAY-DINIZ SILVA, A. Portugal and Brazil: Imperial Reorganization, 1750-1808. In: CHLA, v.I, p.489. Os decretos ordenando o banimento dos comissários volantes (sem referência específi ca ao problema aqui tratado) podem ser consultados em Collecção das Leys, Decretos e Alvaras que Comprehende o Feliz Reinado dei Rey Fidelissimo D., José o I [...], desde o ano de 1750 até o de 1762, Lisboa, Offi cina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1770. Vale advertir que nenhum dos estudos relacionados faz menção ao papel dos comissários na articulação da pequena agricultura do Nordeste oriental. A menção mais direta nesse sentido está em BRITO, J. R. de. Cartas Econômico-políticas sobre a Agricultura, e Commercio da Bahia, pelo desembargador [...] e outros [...]. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821. p.73-75.

10 Ver o longo memorial do governador e capitão-geral de Pernambuco Luiz Digo Lobo da Silva

a Sebastião José de Carvalho e Mello, Recife, 9 maio 1759, em AIHGB, ACU, v.14, fl s. 63-65.

11 A formulação mais explícita em termos do Nordeste está em EISENBERG, P. L. The Sugar

Industry in Pernambuco, 1840-1910. Modernization without Change. Berkeley: University of California Press, 1974. p.7.

NEAD-Camponeses_brasileiros_v1_(FINAL).indd 153

154

riedade da sua produção – embora seja possível visualizar, pelo contrário, com uma aproximação intencionada aos documentos, comunidades de cultivadores pobres livres fl uidamente integradas ao mercado exportador e, no geral, sempre à procura de “brechas” que permitissem furar o principal mecanismo dessa sua “marginalidade”, qual seja o bloqueio imposto pelo

complexo agroexportador ofi cial.12

Também é cabível questionar e rediscutir os elementos da suposta vinculação, ou dependência “estrutural”, da “agricultura de subsistência” – fora da plantation – à “agricultura de exportação”, pois que essa divisão setorial inexistia na prática: tanto as plantations produziam “agricultura de subsistência” e vendiam eventualmente para o mercado regional (sendo que, a partir das primeiras décadas do século XIX, essa eventualidade parece por vezes converter-se numa constância subordinadora do campesinato) quanto os cultivadores pobres livres “exportavam” tabaco e mandioca, por meio de esquemas não integrados, ao sistema geral – isto é, pelo contrabando dos comissários volantes. Essa interposição ou superposição setorial se dava em níveis muito mais signifi cativos do que os admitidos pela historiografi a

atual.13 Por conseqüência, cabe discutir um dos grandes lugares-comuns da

história da agricultura no Brasil, ou melhor, da história das relações sociais e das estruturas de poder econômico e político no campo: aquele que opera a magia de fazer retroceder a moderna subordinação camponesa e suas diferenciadas variantes contemporâneas e a apresenta como um elemento

12 Uma recente afi rmação dessa marginalidade está em GORENDER, J. O escravismo colonial.

São Paulo: Ática, 1978. p.297-99. O “perfi l” sociocultural dos pobres livres rurais (e da cidade também, pois tanto a origem quanto os resultados eram os mesmos) aparece já em diversas crônicas da “Guerra dos Mascates”. Cf., por exemplo, SANTOS, M. dos. Narrativa histórica das calamidades de Pernambuco sucedidas desde o ano de 1707 até o de 1715 com notícia do levante dos povos de suas capitanias. Revista do Instituto Histórico e Geográfi co do Brasil (a partir de agora RIHGB), t.53, 2ª parte, v.82, p.38-47, 1890. O mesmo paradigma sociocultural da pobreza se reproduz no setecentos, em cronistas pernambucanos tais como COUTO, D. D. L. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Rio de Janeiro: Offi cina Typographica da Bibliotheca Nacional, p.190-9l e 226-27. A culminação, dentro da tradição iluminista, está possivelmente representada pelas sentenças de VILHENA, L. dos S. Recopilação de Noticias Brazilicas Contidas em Três Cartas [...]. Noticiando-se das Capitanias de Pernambuco, e Goyaz, e Terminando Finalmente com a Recopilação de Alguns Pensamentos Políticos Applicados em Parte às Colonias Portuguezas no Brazil [...]. mss., s. l., 1802. Vilhena é uma das fontes em que Caio Prado Júnior se apóia para seus duros comentários sobre os “defeitos” das populações pobres do campo. Cf. JÚNIOR PRADO, C. Formação do Brasil contemporâneo, op. cit., p.161 e 281; História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977. p.42, e História e desenvolvimento. A contribuição da historiografi a para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1972. p.46.

13 A superposição das funções da agricultura de “exportação” e da de “subsistência” já tinha

sido notada por PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil contemporâneo, op. cit., mas foi em grande medida “esquecida” pela historiografi a subseqüente, que preferiu praticar uma dico- tomia mais ou menos radical, atribuindo aos cultivadores não escravistas funções exclusiva- mente voltadas para o abastecimento do mercado “interno” e à plantation, o monopólio da exportação, coisa que, se é verdadeira para o século XIX, pode ser contestada pelo menos parcialmente quando se trata do século anterior.

NEAD-Camponeses_brasileiros_v1_(FINAL).indd 154

155 intrínseco à própria constituição dos diversos segmentos de “agricultores de subsistência”. Creio que, muito pelo contrário, os cultivadores pobres livres formaram, durante a maior parte do século XVIII, comunidades coesas, autônomas e livres – nem que fosse pela notória omissão do Estado em tudo quanto lhes dizia a respeito – , independentes das determinações da

plantation escravista, que, na época, ainda estava longe de encarnar a fi gura acabada de forma dominante de produção e ninho das relações hegemô- nicas da sociedade regional que viria a adquirir no decorrer do século XIX (Forman, 1975), como veremos.

Por último, é possível destacar dois elementos derivados da recomposi- ção do período 1700-1760. O primeiro é a constatação de que a conjuntura formativa das comunidades de cultivadores pobres livres no Nordeste oriental termina numa grande expansão – espacial e numérica – desse tipo de unidade produtora, e que essa expansão, vista contra o pano de fundo do início das inovações tecnológicas da segunda metade do século e da difusão do cultivo comercial do algodão, fundamenta, no entendimento de alguns observadores contemporâneos do processo – observadores extraor- dinariamente bem situados, como o próprio governador de Pernambuco, Luis Diogo Lobo da Silva –, a idéia de que existe uma “alternativa campo-

nesa” ao escravismo.14 Isso já em 1760. O segundo é a óbvia vinculação

da agricultura dos cultivadores pobres livres do Nordeste oriental com o setor exportador e as necessidades determinantes do mercado mundial. É o núcleo desse mercado que comanda e realimenta os fl uxos de recursos destinados a viabilizar a exploração das minas, e no interior desses fl uxos emergem, juntos e contemporâneos, a crise das plantations e do escravismo nordestinos, a grande demanda por tabaco e os espaços para a articulação dos cultivadores pobres com a engrenagem internacional. De impulsos dela provenientes resulta, na primeira metade do século XVIII, a emergência da agricultura camponesa em Pernambuco.

SEGUNDO PERÍODO: REVOLUÇÃO INDUSTRIAL